Prólogo
Epílogo
Conto
O som da aldrava ecoou casa adentro. O homem, sentado na sala tragando
o seu cachimbo enquanto contemplava as chamas da lareira, levanta-se lento e com
esforço, gemendo um bocado, se arrasta até a porta para atender a quem o chama.
— Já estou indo! Já estou indo! — disse o homem ao ouvir novamente baterem
na porta — O que deseja? — indagou seguido de uma forte tragada no seu
cachimbo após finalmente abrir a porta.
— Bom dia, meu senhor! — respondeu a visita — Sou um mascate viajante e
estou aqui para lhe oferecer uma mercadoria: um porco de ótima qualidade e de bom
preço.
O homem, segurando o cachimbo em mãos, olha curioso para aquele estranho.
Um homem que nitidamente era mais velho que ele, vestindo um sobretudo
cashmere chocolate de aparência bem cuidada, que parecia conter todo o ar frio daquela
noite. Seu chapéu, por outro lado, parecia que já estava muito surrado pelo
uso em excesso. Sua barba era excepcionalmente branca, tão branca quanto o leite.
Embora fosse um desconhecido, sua aparência, seu olhar e a sua forma de falar, de
imediato, lhe transmitiu um ar de que fosse um homem de bem. Talvez um velho
que ainda se dedica ao fardo do trabalho em ter que andar de casa em casa. Tudo isso
foram o bastante para ganhar o fio primordial de confiança e continuar com aquela
conversa.
— E por quanto estais vendendo?
— Por pouco, quase nada. Basta me dar algo seu. Qualquer coisa, até mesmo
uma gota de sangue.
— Sangue?
— Sim!
— Por uma mísera gota de sangue eu compro. Nunca fiz um negócio tão fácil.
— Garanto que não, meu senhor — concordou o mascate.
— Mas, não estou vendo o porco. Onde está?
— Agora que já o vendi, tratarei que trazê-lo amanhã, logo após o raiar do sol.
— Então sendo assim, também só lhe pagarei amanhã.
Na manhã seguinte, como acordado, logo que o sol clareou no céu, o mascate
surgia ao longe na estrada, cruzando os cômoros verdejantes de relva, puxando o
porco. O animal era deveras majestoso e de ótima aparência, uma raça exótica que
ninguém conhecia, porém, qualquer criador gostaria de tê-lo em sua propriedade.
— Como trato, aqui está o teu animal — disse o mascate estendendo a corda
com o bicho preso.
O homem ficou encantado com tamanha formosura do animal adquirido.
— Bem! Como trato, também quero a minha gota de sangue como o pagamento.
— Sim, sim! Espere, que buscarei um espinho para alfinetar o meu dedo.
— Não há necessidade. Tirarei do meu jeito — disse o mascate.
O vendedor retira da sua cartola um sapo também peculiar. Um sapo gordo e
gigante, e com uma aparência nada amigável.
— Ponha um dos seus dedos na boca do sapo — ordenou o mascate.
O homem, mesmo sentindo asco do sapo, se atreveu a pôr o dedo na boca do
bicho que lhe mordeu quase que instantaneamente. O sangue então acabara de ser
coletado pelo próprio sapo.
— Parabéns pela compra do porco — disse o mascate despedindo-se e partindo
de imediato de lá, deixando para trás o homem confuso com aquela compra misteriosa,
porém, ao mesmo tempo, contente por ter um porco de altíssima qualidade.
***
Alguns anos haviam se passado desde a compra do porco, até que, quando o
animal estava muito maior e gordo, o seu dono resolveu abater o animal para comer
de sua carne, e assim o fez.
Dias depois, o proprietário do falecido porco, acordou com um enjoou, mas,
logo cessou. Posteriormente, ele passou a sentir uma fome tão insaciável que parecia
que nada era o bastante para a sua fome. A busca por comida era tamanha, que ele
abocanhava comida estragada e restos mofados de pão que encontrara esquecido no
seu armário da cozinha. Tal fome foi responsável para que ele logo ganhasse alguns
quilos a mais.
Com o decorrer dos dias, mais coisas estranhas vinham surgindo, como a
vontade de fuçar a terra e buscar tubérculos e vermes.
Na outra semana, seu corpo também passou a mudar, além do seu ganho de
peso exacerbado, agora as suas orelhas começaram a crescer ao ponto de tombar
em seus ombros. Nesse estágio, o homem já não saia de casa com vergonha de sua
aparência um tanto horrenda. Uma deformidade que muitos poderiam o considerar
como um demônio.
A modificação continuava sem cessar, até mesmo a sua voz foi danificada,
tornando-se rouca, depois, sem pronunciar palavras, somente sons de grunhidos.
Suas mãos e seus pés afunilavam prejudicando o seu manuseio com os objetos, tendo
que se alimentar unicamente com a boca. Esta que também já havia ganhado um
saliente alongamento e presas bem proeminentes.
Por fim, antes de perder a sua última característica humana: a inteligência,
autonomia e racionalidade, ele pôde tomar consciência que estava condenado a
transformar-se em um animal, em um porco. Algo que lhe assustou completamente
e logo se lembrou do porco comprado por uma gota de sangue aquele mascate viajante
misterioso. Estou sobre uma maldição, concluiu o homem.
Antes mesmo de procurar uma cura, o homem perdeu a sua racionalidade
humana e tornou-se um animal incapaz de lembrar que um dia fora um homem. Não
tardou e o mesmo mascate que havia lhe vendido o porco, chegou por lá, segurando
uma corda que serviu para amarrar no seu pescoço e ser guiado pelo mascate, talvez,
para ser vendido para mais um tonto ambicioso que não meça as consequências de
coisas fáceis demais.
Dizem que o mal por si mesmo se destrói. Porém, esse provérbio faz mais
sentido quando há um grupo de malfeitores agindo juntos, onde, a ganância de um,
destrói os seus próprios companheiros. Mas, e quando apenas um homem age sozinho?
Quem garantirá que ele será punido?
Esse mascate é a entidade mística do submundo responsável por essa tarefa
de fazer com que os corruptos e malfeitores venham a cumprir parte da sentença dos
seus pecados cometidos em vida e, para aquele homem que havia se transformado em
um porco gordo, só fora parte do seu castigo por seus malfeitos. Assim, o trabalho
dessa entidade misteriosa é fazer com que se cumpre o provérbio popular em que o
mal por si mesmo se destrói: onde um homem pecaminoso abate outro pecaminoso,
fazendo apenas com que esse ciclo se feche. E, para aquele porco abatido por outro
homem, só lhe resta que a morte chegue para buscar a sua alma.