Prólogo
Epílogo
Conto
Há muito tempo que queria contar esta história, mas acontece que por medo
de que me fosse destinada a honraria de ser a primeira alma a habitar o espaço, optei,
até o momento, por não o fazer. Sei que poderá parecer uma desculpa airosa, uma
vez que a maior parte das histórias que vivi, que ouvi ou que testemunhei ficarão por
contar por inabilidade e preguiça. Mas esta, asseguro-vos, tal como a do cinema que
morreu virgem na mesma zona e circunstâncias, constitui exceção. Acontece que
com a idade vamos perdendo o medo e os perigos mais contundentes são aqueles aos
quais escapámos; os que se perfilam mais à frente parecem cada vez mais inócuos.
Mas passemos aos factos: no longínquo ano de 1931 existia uma localidade
ameaçada pelo avanço das areias, na qual se reuniu um Conselho de Sábios com o
objetivo de travar a fome do deserto ao qual fora arrancada. A vila tinha apenas
saída para o mar e orgulhava-se de ter curvas doiradas por toda a sua extensão, em
dunas imensas de suaves ondulações, como um mar cor de castanha de caju. Já nessa
época era vulnerável, pois a natureza, que tem sempre a última palavra — quantas
vezes feroz e indignada, ao cabo de eternidades de silêncio e tolerância — reclamava-
a insistentemente. Nessa altura era conhecida pelo nome de Porto das Areias.
Durante quatro décadas foram aí plantadas muitas árvores ao longo de dezenas de
hectares, e o deserto pareceu conformar-se com essa cortina verde durante algum
tempo. Estaria, provavelmente, a planear uma nova estratégia, sabendo que o tempo
dos homens é finito e não sabe esperar. As areias, ao contrário, pareciam divertidas
com as artimanhas que conheciam desde o primeiro dos seus grãos; sentaram-se à
espera, em contemplação quieta, que era o que melhor sabiam fazer para ludibriar a
vigilância das populações e dos engenheiros agrónomos e vencê-los pelo cansaço. A
espera silenciosa seria recompensada: na década de 70 do século passado, as populações,
envolvidas numa guerra sem quartel, viram-se obrigadas a recorrer à madeira
das árvores para transformá-la em combustível e suprir as suas necessidades mais
imediatas: como era de prever, em apenas dez anos a fileira de árvores plantadas estava
consideravelmente reduzida e o deserto ria estrondosamente nas suas noites mais
frias, fazendo com que milhares de microscópicas areias voassem e se espalhassem
pelo céu para depois caírem de novo nos seus braços, como pequenas estrelas órfãs.
A fera fala a linguagem da fome e da sobrevivência e o deserto age também de acordo
com a sua própria natureza: não há maldade nem violência nas suas exigências. Profere
ameaças e tempestades com a naturalidade do vulcão ou do tornado; devem ser
levadas a sério, mas não levadas a mal.
Quando avisou que ia tomar conta do cemitério local ninguém lhe deu ouvi-
dos; até que o novo sofreu o mesmo destino sem que ninguém tivesse lá sido sepultado.
Nunca foi inaugurado e acabou por desaparecer debaixo da areia… conta-se que
uma quadrilha de ladrões e de caçadores furtivos passava certo dia pela zona e decidiu
esconder o produto de um grande assalto no cemitério inativo. Além de diamantes
e certa quantidade de marfim, levavam um projeto encontrado num antigo posto
fronteiriço. Um deles tinha reconhecido o desenho de uma estranha peça encontrada
no meio do nada: para ele não fazia sentido, mas mais por instinto do que por
conhecimento, decidiram juntar o conjunto de desenhos à documentação já meio
amarelecida e esconder tudo no cemitério. Mas esses quatro homens nunca mais foram
vistos e diz o povo que foram tragados pela mesma areia que cobriu o cemitério,
embora a versão oficial dê conta de uma perseguição policial na qual a carrinha em
que seguiam teria sido abalroada. O deserto tudo ouve, sem comentar: consta, no
entanto, que ofereceu um colar de diamantes e uma jarra de marfim a uma amiga
welwítschia por quem andava em tempos perdido de amores. Por essas e por outras
não escapa à fama de predador e de insaciável senhor do outrora Porto das Areias,
hoje chamado Porto dos Mistérios. Quanto ao projeto, nunca mais se soube dele e as
peças espalhadas pelas areias desapareceram na memória dos homens.
Várias estradas foram engolidas com a mesma sofreguidão pelas areias que
viajam com o vento, assim como parte do quartel dos bombeiros e um cinema, joia
da arquitetura construída pouco antes da independência do país. Trata-se de um
cinema onde jamais se exibiram filmes, abandonado à nascença e convertido precocemente
em fantasma, inspirado nos projetos do grande mestre Niemeyer. O espaço
mantém a sua grandiosidade de estátua muda, soberba dama caída em desgraça. Muito
embora sirva hoje de recetáculo de lixo e de toda a espécie de objetos rejeitados, e
de valhacouto de pequenos traficantes, conserva uma monumental estrutura depurada
assente em linhas sinuosas; tem a forma singular de um cogumelo gigante ou de
uma nave espacial e enormes janelas redondas como as dos paquetes. Ali se projetam
secretos espetáculos sobre a malograda quadrilha e se coreografam bailados sob o
murmúrio do vento, quando as areias se alinham na escuridão e de vez em quando se
maquilham com o brilho branco da lua.
Mais recentemente foram plantadas milhares de estacas de arbustos de crescimento
rápido, os quais, juntamente com outras espécies, deverão fixar as dunas.
Formam um cerco em torno da pequena vila. O deserto vai olhando curioso para
o esforço contínuo e o desespero dos técnicos e dos habitantes locais enquanto se
espreguiça, sedutor, alternando côncavos e convexos movimentos musculares e bocejos
de vento forte no horizonte, molhando o dorso no Atlântico. Sabe que resistirá
até ao último sopro.