Prólogo
Epílogo
Conto
Sem a neve, a taïga perdia um pouco sua majestade. As folhas amareladas anunciavam, porém, que o calor se despedia.
Naquele ponto da floresta, pouquíssimas pessoas se arriscariam fazer uma trilha ou até uma caminhada por entre aquela vegetação. Mesmo no século 21, alguns temiam mais que assaltantes.
Remota, a velha cabana aparentava estar vazia. Fora construída sobre caules cortados de carvalhos que, após crescerem, faziam questão de mostrar o tempo que a mesma existia.
Entorpecida pela dor, Madeleyn, amarrada na cadeira, olhava seu dedo mínimo estraçalhado sobre a mesa.
Seu sangue nas roupas estava misturado ao de Piotr, que teve sorte bem pior, em Moscow, antes de levarem-na para a floresta
Por entre seus longos cabelos ruivos, observava seus algozes.
Impaciente, Dimitri abotoava e desabotoava o paletó, como se a qualquer momento fosse encerrar tudo aquilo.
Próximo à porta, Hugh acariciava o revólver no coldre e observava a floresta.
Kriger, pelo contrário, não retirava os olhos da cena. Apertava com força a submetralhadora com as mãos suadas.
Ao fundo, uma senhora idosa, sentada num banco redondo, observava tudo com um sorriso idiota enquanto batia uma vara de madeira na mão.
De pé, no outro lado da mesa, o brutamontes Oksana segurava um martelo ensanguentado e arrumava a máscara de madeira que insistia em usar.
- Confesso estar surpreso, camarada Madeleyn. – comentou Dimitri – Não acreditei que aguentaria. Piotr cedeu por bem menos.
- Deve ser porque seu capanga bate feito uma matrioshka. – disse ela, entre os dentes ensanguentados.
O resultado foi uma martelada em seu dedo anelar direito.
- Porque fez isso? – questionou Dimitri em censura ao gigante. – Quem tem que se descontrolar aqui é ela, não você!
E olhando para Madeleyn, que tinha a cabeça baixa e o rosto escondido pelos cabelos:
- Conheço bem seu jogo, Madeleyn. Não irá funcionar. Não desta vez. Agora, vamos de novo. – E levantando o rosto dela pelos cabelos, ele ordenou: - Me fale onde estão os diamantes!
Vagando, a mente de Madeleyn retrocedia. Pairava em um quarto de hotel, num passado não muito distante. Piotr e ela, deitados na cama, contavam os diamantes.
- Se a Bratva nos descobre, sabe que estamos mortos. Comentava Madeleyn, admirando uma das pedras, que reluzia no ar.
- Não se preocupe, Laaleyn. – falou Piotr. – Tenho um trunfo. Um salvo-conduto, caso a Bratva nos incomode.
- Você está muito confiante, depois que roubou estas belezuras. O que é?
- Na hora certa, Laaleyn. Na hora certa.
No canto de seu olho, Madeleyn pareceu enxergar uma sombra, como de alguém escondido.
- Não estamos sozinhos...
- Quem está aí? – gritou instintivamente Piotr., sacando seu revólver e apontando para o nada.
E ambos, em silêncio, reviraram o apartamento vazio.
Os olhos verdes dela não possuíam brilho. Olhava nos olhos castanhos de Dimitri, mas era como se não enxergasse.
- Escute, Madeleyn. – falou ele, em tom paternal. - Outras mulheres não teriam o tratamento que estamos lhe dando. E você sabe disso. Você já viu. – E olhou para Kriger, que apertava sua submetralhadora para disfarçar o prazer que sentia com a situação. – Mas você não é qualquer uma. Era uma de nós.
A senhora estava por trás dos ombros de Dimitri. Os cabelos brancos emaranhados não conseguiam esconder o brilho sobrenatural de seus olhos, negros e profundos como uma noite sem estrelas. Naquele olhar enigmático, o olhar de Madeleyn se encontrou.
- Vejo que temos uma reação, enfim. – comentou Dimitri. – Então?
- Os diamantes... – Madeleyn sussurrou - ...estão entre minhas pernas...
- Oksana, lembre minha filha o que acontece quando ela dá a resposta errada.
E o gigante martelou o dedo médio de Madeleyn.
Com a dor, a mente dela foi mais longe. Uma recordação de seu tempo na Bratva.
Um homem no chão gemia, enquanto Piotr chutava-o vigorosamente. Logo atrás, Madeleyn observava tudo apenas. Tinha um sorriso sombrio nos lábios. As torturas sempre a agradavam. Ficava extremamente excitada com a dor alheia, como se essa a alimentasse. Porém, com este homem havia algo diferente, incômodo. Não conseguia olhá-lo nos olhos. Não entendia o porquê. Até uma voz lhe sussurrar ao ouvido.
- Chega, Piotr! – Madeleyn ordenou, num sobressalto.
- Ele ainda respira. – falou Dimitri, atrás de ambos.
Com olhos vivos, o idoso olhou diretamente para Madeleyn.
- Me dá um motivo para não te matar. – disse Piotr, entre um chute e outro.
- Um... salvo-conduto... – murmurou o agonizante, um homem de idade avançada, falando algo nos ouvidos de Piotr. Este, ao ouvir as palavras, estremeceu e recuou.
- Não pode ser... isso é mentira... – e encarava novamente para o homem. – Não posso mais fazer isso. Não com ele. – falou Piotr, olhando atordoado para Madeleyn.
- O que foi? – ela indagou-o.
- Não posso. Não com este aqui.
- Chega, eu faço. – Sacando o revólver, Dimitri atirou na cabeça do homem. – Não há perdão para traidores.
A dor estava gritando em cada célula do corpo de Madeleyn. Com suas poucas forças, tentava puxar a mão amarrada para si, em vão.
- Você se lembra do apelido de Oksana?
- Baba... yaga...
- Isso mesmo, E foi você quem deu, lembra? – Dimitri acariciava a cabeça de Madeleyn – Agora, sobre os diamantes. Para onde vocês os levaram?
- Me mata... de uma vez... – murmurou Madeleyn.
- Não dá. Não sem os diamantes. Até porque o Baba-Yaga está se divertindo muito.
- Baba...? – e ela viu a idosa se afastando.
- Não se lembra? O apelido? – perguntou Dimitri – Até hoje não entendi porque você o deu.
Ela sentia o sangue em sua boca. Não sabia se o engolia ou cuspia. – Isso explica tudo...
- Tudo o que, Madeleyn?
- Usar um nome assustador quando ninguém se assusta com quem o usa.
- Sua tática não vai funcionar. Conheço seus truques. Afinal, fui eu quem os ensinou, lembra?
- Sim, - respondeu ela, cuspindo o sangue em sua boca - , porque era fraco demais para fazer os trabalhos sujos e se escondia atrás de uma menininha...
As costas da mão aberta de Dimitri alcançaram com força o rosto de Madeleyn, fazendo-a ir ao chão com a cadeira.
Uma menina de oito anos olhava para o nada no corredor do manicômio.
À certa distância, dois homens conversavam.
- Tem certeza, camarada Dimitri? Não há outra forma?
- Não, camarada. Sua mulher agora está naquele quarto branco. Ela era nossa melhor agente, nossa melhor assassina. Seu defeito foi escolher se envolver com um ladrãozinho vil como você. Esta foi sua ruína. E, agora, esses delírios. Mas eu mudarei isso. Ensinarei sua filha a ser a melhor também. Os talentos dela serão bem úteis para a Bratva. E então, um dia, ela me substituirá. E, com o tempo, poderá ser a próxima líder da Bratva.
- E quanto a minha dívida?
- Deixando a menina comigo, sua dívida estará quitada. Será seu salvo-conduto, mas deve manter isso em segredo. Ela será minha filha de agora em diante. Eu serei seu pai. E ela esquecerá quem foi você.
- E se...
- ... terminar a frase, se sequer terminar seu pensamento, a Bratva te mata e leva a menina assim mesmo.
- Posso, ao menos, me despedir? – implorou o pai.
Com os olhos marejados, o homem ajoelhou-se em frente a menina.
- É verdade, papa? – perguntou a menina, ao homem – Verdade que as vozes deixaram a mama louca? Que ela vê coisas que mais ninguém vê?
- Sua mãe é uma mulher especial, Laaleyn. Mas não entendeu o que estava acontecendo com ela.
- Sei que você vai embora.
- Você é tão parecida com ela. Tão mais forte que eu. E por isso é tão difícil para mim ir.
- Sentirei sua falta.
- Eu estarei sempre com você. Eu e sua mãe...
Abrindo os olhos, Madeleyn notou que estava sentada. A mão ainda amarrada aberta sobre a mesa. Três dedos estraçalhados pela marreta de Oksana. Sangue escorria de sua boca e testa. Precisava de um plano. Era a melhor nisso. Porém, naquele momento, não via alternativas.
Dimitri estava sentado.
A marreta de Oksana, de pé, estava próxima ao indicador de Madeleyn.
- Vamos terminar com isso, de um jeito ou de outro.
- A noite está chegando. – comentou Hugh.
- Então, me matem... e vão embora... – ordenou Madeleyn.
- Isso está mais cansativo do que imaginávamos. – Reclamou Kriger.
- Então é melhor se retirar, camarada. – Furioso, Dimitri levantou-se e deu um tiro na cabeça de Kriger, que caiu morto. Com a mesma arma, apontou para Madeleyn:
- Onde você e Piotr esconderam os malditos diamantes?
- Você teria que ser ele para saber. – Madeleyn o desafiou.
- Bata no restante dos dedos, Baba-Yaga!
No instante em que a marreta caiu sobre a mão dilacerada de Madeleyn, ela viu a senhora fazer um gesto que significava ficar em silêncio.
E tudo escureceu em dor e sangue.
Silêncio.
Ao abrir os olhos, Madeleyn viu-se na floresta.
Não teve coragem de olhar sua mão.
Percebeu que havia alguém ao seu lado.
- Isso é um sonho, não é?
- É o que você quer que seja? – disse a velha senhora.
- Entendi. Você é a Morte. Só me aguardando.
- Não, não sou a Dama Inevitável. Sou outra. Assim como você. Se quiser.
- Quem é a senhora realmente?
- Os homens evitam falar meu nome.
As crianças que se perdem me encontram.
As mulheres escutam minha voz.
E me invocam em seus sonhos.
Baba-Yaga...
- A senhora era voz em minha mente...
- Sou. Mas não só.
Ao redor delas, inúmeras mulheres surgiram, detrás das árvores. Inclusive a mãe de Madeleyn.
- Acompanhamos você o tempo todo, minha pequena Laaleyn. Todas nós.
- Então, as vozes que escutei são magia.
- Não. O que você escuta são recitações de feitiços. Para serem usados. Magia de verdade é você entender que para se conseguir algo, você deve oferecer algo em troca. Toda decisão custa um sacrifício. Equilíbrio.
Use isso. Seja você mesma.
Agora, abra seus olhos.
Dimitri estava com a arma apontada na cabeça de Madeleyn.
- Fale agora! Ou atirarei!
Madeleyn ergueu a cabeça, o sangue escorria da boca e testa, o rosto repleto de hematomas, a mão estraçalhada. Os olhos, porém, eram negros e profundos como uma noite sem estrelas.
- Recedit! – ela disse e Dimitri foi lançado para o outro lado da sala.
Do canto onde Madeleyn vira a senhora pela primeira vez, voou para sua mão intacta algo semelhante a uma varinha.
- Pulveris! - Com um movimento rápido, Madeleyn apontou para Hugh que, aparentemente transformou-o em cinzas.
Um movimento depois, Madeleyn apontou para o gigante Oksana que pretendia acertá-la com a marreta.
- Ossa fractionis! – e o homem sentiu todos os ossos de seu corpo se quebrarem.
Com dor desesperadora, o homem suplicou:
- Me mate...
- Com prazer. – E ela girou a varinha. – E pensar que você deixava que te chamassem de Baba...
BANG!
A bala acertou-a em cheio, fazendo Madeleyn cair.
- Te disse que isto terminaria de um jeito ou de outro... – mas a mão do homem tremeu e esse caiu, ao ver que a mulher se levantava, e cuspia o projétil.
Erguendo sua varinha, Madeleyn imobilizou o homem.
- Irá me matar também?
- Não. – Ela disse, passando a varinha no rosto dele. – Primeiro porque preciso que avise à Bratva que irei reivindicar meu lugar de direito. Afinal, vocês são a única família que me resta. – E, erguendo a varinha: - Em segundo, porque para eu ter minha mão de volta, preciso tirar a de alguém que está vivo.
Ninguém ouviu o grito de dor de Dimitri que, logo em seguida, desmaiou.
Madeleyn saiu da cabana segurando a varinha com a mão esquerda e admirando sua mão direita reconstituída.
-Agora, - falou ela para a floresta, - preciso voltar para Moscow, encontrar o corpo de Piotr, retirar os diamantes que estão em seu estômago. E reivindicar meu lugar como líder da Bratva.
E sorriu para as bruxas antes dela.