As lâminas da cebola

Sci-Fi
Novembro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Malha do Multiverso

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
As lâminas da cebola
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O tempo estava uma droga. A velha cadeira de praia já tinha voado pra longe, e os arbustos eram arrancados pela raiz, mas Victor ignorava esses arrotos climáticos. Abriu uma garrafa de vinho, acendeu um cigarro e colocou uma música para tocar no streaming do celular, enquanto preparava o jantar para um.  Porém, não foi chuva que caiu do céu a ponto de trepidar as vidraças.

- Puta que pariu! – gritou quando abriu a porta curioso e o vento o jogou de volta para dentro.

O tempero já queimava na panela e a fumaça se espalhava pelo trailer, quando o segundo estrondo aconteceu, seguido de mais outros três. Não eram trovões. Pela janela da cozinha, viu o céu mudar de cor e parte de grandes pedaços de metal no chão do jardim. “Um satélite? Fragmentos de uma estação espacial?” Pensou que essas coisas costumavam cair em solo russo, no mar, mas não no seu quintal. Queria ligar para alguém, mas quem viria num vendaval daqueles? 

Por sorte, nenhum despencou sobre sua cabeça, mas nada poderia garantir.

Ele deu um tempo, esperando por algo mais, quando um tornado surgiu do céu de chumbo, como um grande ralo ao contrário. Havia muita tecnologia para prever uma coisa dessas, mas nada foi avisado com antecedência. Não era típico da primavera. 

Com um barulho ensurdecedor, o tornado sacolejou o pequeno trailer e passou a sugar tudo o que via pela frente, inclusive os objetos recém-caídos. O chão tremeu, o vinho derramou sobre o celular e tudo começou flutuar. Agachou-se em um canto enquanto o trailer era içado, impedido apenas pela resistência de uma corrente que prendia o eixo a um carvalho, mas não aguentaria por muito tempo. 

Ele chacoalhou como M&M’s dentro do saquinho, queimou-se e se cortou com os objetos que rodopiavam dentro da pequena casca que chamava de casa. Não havia a quem pedir ajuda, e esperava que restasse algo dele quando o redemoinho passasse e o jogasse em algum lugar remoto. 

Quando tudo parou, fez-se um silêncio absoluto. Levantou devagar, maldizendo os machucados e estragos. 

Ouviu batidas na porta. Alguém tinha vindo em seu socorro. Mas, quem viria tão rápido?

A cabeça doía, mas foi cambaleando assim mesmo até o que restou da janela. Do lado de fora não havia nada, apenas um breu assustador. Achou que, quem quer que fosse, tinha ido embora, mas as batidas voltaram mais fortes e insistentes.

- Quem está aí? – perguntou vacilante.

- Abra logo. Sou eu! – gritou alguém do outro lado.

A voz não soou estranha, mas não fazia a menor ideia de quem poderia ser naquele momento. 

Abriu a porta devagar e seus olhos se arregalaram. Era como se olhasse no espelho. O cara a sua frente era idêntico a ele, só que com roupas diferentes. Também segurava um martelo em uma das mãos e um cigarro na outra.

- Por que demorou tanto? Tava mijando?

Victor ficou mudo. Esticou uma das mãos para tocar o rosto do sujeito, mas ele se esquivou abrindo passagem e entrando no pequeno aposento.

- M-mas quem é você? – Victor perguntou.

- Espero que não se importe com esse velho hábito. – o estranho falou levantando o cigarro em sua mão. - Não recebeu minhas mensagens? Tenho tentado me comunicar com você há meses. Enfim, pelo que pode ver, sou você. Não tá na cara? Sou uma versão sua, o Valter.

A informação dita assim, na lata, era difícil de processar. Talvez fosse um gêmeo perdido, mas seu parto tinha sido filmado e mostrado, para seu constrangimento, em algumas reuniões de família.

Não, não tinha um gêmeo. 

Vendo que Victor estava atônito, Valter deu uma baforada no cigarro e continuou.

- As apresentações já foram feitas, agora preciso que venha comigo. Estão querendo nos matar.

- Matar? Quem? Por quê? – Victor alarmou-se.

- Não viu os estragos no seu quintal? Estamos desintegrando e não temos muito tempo para chegar a um lugar seguro. As portas temporais são muito instáveis. 

Valter agarrou Victor pelo colarinho e saiu flutuando pela porta, empunhando seu martelo.

A clareira havia sumido e o carvalho também. Estavam numa espécie de túnel, envoltos por uma aura nebulosa, multicolorida e reluzente, mas Valter parecia não se preocupar com nada disso e sabia que direção tomar. Victor o seguia em estado de catatonia. Passaram por algumas paredes de estrutura gelatinosa que ofereciam certa resistência, mas conseguiram ultrapassá-las e chegar a um quadro semelhante ao de sua clareira, com uma enorme construção no lugar onde deveria estar seu modesto trailer. Valter se aproximou de um dispositivo ao lado da porta e colocou um dos olhos no que deveria ser um leitor de retina. A porta se abriu:

- Isso ainda é meio primitivo, mas me serve. Adoro uma sucata. – informou, dando uma piscadela. - Espere aqui um segundo. Tenho que pegar umas coisas. – disse deixando a porta entreaberta e olhando de soslaio para trás. 

Victor não prestou atenção e o seguiu bem devagar. Olhava para tudo como se estivesse em um sonho. Em um canto do enorme salão, reconheceu um cenário idêntico ao interior de seu trailer. Tinha até o fogão de duas bocas, e na pia estava o que seria os restos do jantar que não teve o prazer de comer. Não tinha bebido o suficiente e muito menos apertado o beck de todo fim de tarde para alucinar desse jeito. Não, ele estava limpo. Limpo como a alma de um recém-nascido. Saiu do torpor ao ouvir Valter gritando para o nada: “Crianças, papai chegou!”. Ele não tinha mencionado que tinha filhos. Vai ver que estava apressado por causa deles – pensou. No entanto, no lugar de crianças, um exército de nano dispositivos, do tamanho da unha de um dedo mindinho, saiu de todos os cantos, como várias formigas pretas, escurecendo o assoalho e vindo em sua direção.

Victor deu um grito de susto e subiu na cópia do seu sofá.

- Não se assuste com meus bebês. Elas apenas querem conhecer o tio. São meus nanos, prontos pra qualquer tarefa que o papai mandar. “Não é mesmo, meus fofinhos?”. Já que entrou, senta aí e tome um trago, enquanto arrumo uma mochila pra gente. – disse fazendo um gesto que parou os nanos. – Acho que você vai precisar.

Victor ainda não tinha percebido que a garrafa sobre a bancada era da mesma marca que tinha aberto cerca de uma hora atrás. Desceu devagar, pegou-a, e bebeu de um gole só  todo o conteúdo pelo gargalo. Esperava pelo momento em que sacudiria o pé, com aquela sensação de quem está caindo durante o sono, e despertaria. Valter achou graça naquilo.

- Vai com calma aí cara!

- O quê significa tudo isso? –Victor perguntou num sussurro, olhando vagarosamente ao redor.

- Bem, eu precisava saber como interagir com você e... 

- Não, você não me entendeu. Quero saber, o que significa tudo isso? – disse ampliando os braços. – Tenho certeza que você não construiu essa parafernália toda penas por minha causa. 

- A solidão pode estimular a criatividade de uma pessoa com tédio, sabia? – Valter desconversou.

Victor pensou se ele queria mesmo saber de alguma coisa. Tinha dado um jeito em sua vida e se afastado de tudo que pudesse levá-lo novamente àquele estado de estresse paralisante, mas Valter o instigou.

- Você é mais enrustido que o cara do outro trailer. – falou enquanto abria gavetas e colocava coisas dentro de uma mochila.

- Como assim? Tem mais de nós? 

Valter tinha marcas de expressão no canto dos olhos, diferentes das esculpidas pelos anos de tensão no meio da testa de Victor. Parecia cansado, mas ao mesmo tempo obstinado.

Um barulho surgiu dos fundos da construção, fazendo com que Valter se apressasse e não desse muita atenção para a cara de incredulidade de Victor, que ainda tentava processar a gelatina pela qual tinham passado. 

Victor sabia que ele tinha escutado, mas não esperou pela resposta. Resolveu investigar de onde vinha o som de batidas persistentes, quando deu de cara com enormes painéis de vidro do chão ao teto, repleto de fórmulas, cálculos, números, letras, imagens e pontos luminosos que se assemelhavam a uma árvore de Natal dos anos 80.

- Bem, foi difícil te encontrar. Algumas das tentativas não deram muito certo, mas o que importa é que te achei.

- E por que me achar era tão importante assim? – disse rodeando os painéis.

- Porque estamos em 2.080, e ainda não descobrimos ninguém lá fora.

Victor estacou. Aquilo sim o tirou do eixo. Já tinha visto muita coisa, mas nada se comparava a ser arrancado de seu tempo. Tudo estava se desconstruindo em sua cabeça e era difícil de assimilar na cara dura. Pegou a garrafa na intenção de virar o resto do conteúdo pela goela, mas estava vazia.

- Isso é loucura! Preciso de mais. – disse Victor hiperventilando e esticando a garrafa com o gargalo voltado para baixo.

Parecia que Valter estava preparado para uma situação dessas. Pegou algumas revistas, jornais e calendários previamente espalhados sobre uma bancada, além de mostrar a data por meio da tela de nióbio aderida a seu pulso.

- Vai com calma cara. Preciso de você sóbrio para o que vem por aí. 

Valter pegou outra garrafa de vinho em meio a outras tantas dentro do armário, mas pensou melhor e retornou com ela à prateleira e estendeu-lhe um saco de papel para que pudesse se acalmar. 

- Como? Como isso é possível? – Victor engasgava respirando no saco.

Valter, vez ou outra, observava as mãos de Victor, como se estivesse procurando por alguma coisa diferente, uma marca talvez. Aproximou-se dele e colocou o braço ao redor de seu ombro, como em um gesto fraternal de proteção, mas apenas para investigar seu pescoço.

- Sou um cientista, um tipo de cara bastante inteligente e que gosta de desvendar coisas, sabe? – Olhava profundamente nos olhos de Victor procurando por alguma reação mais significativa, mas nada. - Estudei muito e, quanto mais me aprimorava, mais ficava intrigado com o tanto de dinheiro gasto em estações espaciais, pesquisas, sondas e incursões a outros planetas, sem qualquer resultado contundente. Acho que aborreci gente muito importante e fui obrigado a me afastar. Acabei aqui nessa clareira semelhante a sua. Como havia lhe dito, a solidão e o tédio fazem coisas estranhas com a cabeça da gente. Com um pouco de empenho e uma dose de indignação, descobri que a verdade não estava lá fora, mas aqui dentro, e bem mais perto do que se podia imaginar. Estávamos esse tempo todo separados de outras realidades apenas por uma fina cortina, assim como as lâminas de uma cebola. Achei que não faria mal algum em convocar alguns assistentes.

- Mas como isso foi possível? 

- Sei lá! Estava tentando provar a existência de outras formas de vida, mais inteligentes e, num belo dia, tropecei em um algoritmo, que me levou a uma equação idiota. Resolvi a equação. Daí foram mais de uma centena de cálculos para localizar a fenda entre as lâminas e passar. Algumas tentativas deram errado, por isso acho que deixei cair uns pedacinhos de metal no seu quintal. Eu conseguia te ouvir e até te ver, por isso achei que você tinha recebido minhas mensagens. 

 - Isso tudo tem a ver com o tornado? 

- Pois é... O tornado foi a maneira que encontrei de levar as coisas de volta para os seus devidos lugares, mas não saiu bem como eu esperava. As amostras deram defeito.

- Entendi... E como é que eu vou voltar pra casa?

O som de batidas vieram novamente dos fundos da construção, interrompendo a conversa, fazendo com que os nanos reativassem sozinhos e corressem naquela direção. Victor lembrou que estava indo pra lá antes e seguiu os nanos. Parecia que Valter não estava mais com a pressa de antes e serviu calmamente vinho para os dois.

- Victor, seu vinho. – disse estendendo-lhe uma taça.

- Fica pra depois. Preciso de lucidez. Se não se importa, quero ver pra onde essas coisinhas estão indo.

- Não é nada de mais, talvez uma porta batendo. – disse Valter interrompendo seu caminho.

- Suas portas são de correr. 

Victor desviou de Valter e apressou o passo atrás dos dispositivos, que cruzaram o grande salão, como baratas atrás de restos de comida. Os dispositivos se aglomeraram ao redor de uma grande lona de onde as batidas vinham mais intensas, aguardando por uma ordem que não veio. Intrigado, Victor pulou o cerco sem tirar os olhos de Valter e puxou a cobertura, revelando um trailer semelhante ao seu. Rostos desesperados se revezavam por trás das pequenas janelas de vidro, implorando por um pouco de ar fresco. Eram muitos, cerca de uns vinte talvez. Pareciam sedentos e famintos.

- O que significa isso? Solte-os já!

- Não dá, perdi as chaves. - respondeu impassível.

Victor desviou dos nanos e correu para a sala principal em busca do martelo de Valter, mas por mais que golpeasse, não conseguiu romper o emaranhado de lacres que travava a porta. 

- Pare com isso Victor, ou serei obrigado a tomar medidas nada agradáveis.

 - O que pode ser mais desagradável que isso?  - perguntou apontando para as janelas. 

Os semelhantes gritavam do interior do trailer, implorando para que fossem soltos, mas Valer ordenou aos nanos que subissem pela estrutura tapando a visibilidade das janelas.

- Por que eles estão presos? 

- Não era para ser assim...

- Por que não me colocou com eles?

- Você foi o único que não apresentou as marcas.

- Marcas...?

Valter explicou que, assim que desvendou o algoritmo, viu que precisaria de ajudantes para a conclusão de sua pesquisa em busca de outros mundos. Quem melhor do que ele mesmo para ajudar? Os requisitos eram simples: gênero masculino, capacidade cognitiva acima da média e boa saúde, mas ele era a versão mais adequada e atualizada de si mesmo. Não podia contar com suas versões animal, androide, criança, adolescente, idoso ou feminina. Precisava de força física, higidez, saúde perfeita e nenhum sentimentalismo. O mundo estava envelhecendo e a sociedade decidiu não produzir mais humanos na escala que estava levando o mundo à fome e decadência. Os robôs estavam ocupando o lugar dos humanos e dos animais durante essa nova etapa do planeta e não podia permitir tal coisa. Precisava intervir para proteger a raça humana da extinção. 

Valter acreditava que seus motivos eram nobres, portanto os meios se auto justificariam quando entrasse para a história. Entretanto, não contava com tantos erros iniciais e efeitos colaterais de ordem bioquímica e fisiológica em suas cópias mais promissoras.  Ficavam deprimidos, instáveis e agressivos em poucas horas ou dias e ao menor estímulo tátil ou gustativo, apresentavam erupções cutâneas que ainda não sabia controlar. Não achava um jeito de mandá-los de volta para um momento anterior sem o risco de os perder no processo, mas também não achava certo matá-los. 

- É claro que ficaram instáveis! Você os arrancou de seu mundo! Devia ter parado quando viu que deu erro. Você não pensa que afetou vidas, gente com sonhos, família...? Vai me trancafiar também se eu te der um murro na cara? – Victor se aproximou das janelas, mas os nanos o ameaçaram com descargas elétricas. – Quantos você pegou? 

- Ao longo de três anos... Acho que fiz uns cinquenta procedimentos.

- Cinquenta...? Mas, quem você pensa que é? Deus? Não podemos deixá-los assim! É cruel demais! Eles não são cópias, são pessoas! 

- Infelizmente, não são mais.

- Você é louco!

- Não, sou um visionário, mas preciso de ajuda. Você é a prova de que estou no caminho certo. Joguei fumaça na sua cara, te dei bebida, está há horas sem comer, te mostrei um martelo, mas você não se alterou.

Valter se aproximou, pegou o braço de Victor e arregaçou a manga de sua camisa. Victor.

- Está vendo? Nenhuma erupção. Você é perfeito!

Victor entendeu que Valter era um sujeito desequilibrado, meticuloso e capaz de ardis para alcançar seus objetivos. Ficou pensando pelo que os outros tinham passado.

- Não. Não sou a pessoa que procura, nem sei para que serve a equação de Bhaskara, mas me comprometo a te ajudar se der condições dignas a eles, pelo menos até acharmos um jeito de reverter essa merda toda que você fez e poder voltar pra minha clareira.

 - Realmente, você não decepciona. Não é atoa que foi um grande lobista. 

Por alguns segundos Victor voltou ao passado. Suas memórias ainda eram dolorosas. A crise de consciência foi algo que chegou aos poucos, insidiosa.  Primeiro roubando noites de sono, depois o uso de barbitúricos e drogas mais pesadas. Por sua causa, famílias perderam tudo e pessoas morreram. Levou tempo para descobrir que as consequências sempre chegam, mesmo que seja por meio de uma justiça poética. Ouvir Valter falando daquele jeito fazia com que vislumbrasse seu alterego. Foi um tempo que agora parecia bem distante, mas que evidenciava o que a obstinação pelo trabalho e o vício pelo poder podem fazer com a mente de uma pessoa. Valter era seu lado obscuro, num bizarro upgrade tecnológico.

- Temos um acordo? – Victor esticou uma das mãos.

- Feito. – Valter a apertou com força.

Os dias se passaram com uma lentidão enfadonha e mínimos avanços. Os nanos faziam a limpeza e mantinham as luzes constantemente acesas, dificultando a percepção do dia e da noite. A clareira poderia ser um lugar de relaxamento para tamanha tensão a que estavam submetidos, mas o céu parecia oscilar e, vez ou outra, sons estranhos ecoavam do firmamento. As cores se alteravam com rapidez, como se o universo estivesse sofrendo de uma grande avaria.

Revezavam em turnos, mas quase não dormiam. Ainda que bem alimentados e tratados com humanidade, as cópias não se recuperavam. Valter tinha ferido a ordem cósmica tirando as pessoas dos lugares a que pertenciam. Estavam cada dia mais fracos, como se passassem por uma desmineralização óssea difusa, do tipo que sofrem os astronautas que passam muito tempo no espaço. 

Ainda que toda a tecnologia e meios econômicos estivessem ao dispor, em poucas semanas, Victor pôde ver um deles se desintegrar bem na sua frente, como se desvanecesse no ar. Pouco a pouco os mais antigos seguiam o mesmo destino com intervalo semelhante ao que foram capturados. Não havia mais corpo, não teriam um funeral, e suas famílias jamais saberiam o que houve com eles. 

Victor estava indignado e obscurecido pela dor. Sentia-se corresponsável por aquela barbárie futurista. Contudo, mesmo aprendendo a aplicação de Bhaskara e mais e mais a cada dia, não haveria tempo hábil para acharem uma resposta antes que o último deles desaparecesse. Inclusive, ele mesmo. 

- Tempo... – Victor divagava em frente a mais um quadro de vidro com novas fórmulas e cálculos.

- O que disse? – perguntou Valter.

- Você conseguiu perfurar as camadas do multiverso, mas não conseguiu dominar o tempo, não é mesmo?

- Isso, mas aonde quer chegar?

Victor se lembrou do comentário de Valter, sobre não poder contar com animais, androides, crianças, adolescentes, idosos ou mulheres, apenas com homens na idade produtiva, saudáveis e extremamente inteligentes. Apesar de tão capacitado, era um boçal. A arrogância o levou a cegueira preconceituosa e sexista, que pode ter custado semanas de avanços nas pesquisas. Infelizmente, eles teriam que usar dos mesmos artifícios do sequestro para consertar a lambança. Mentes brilhantes estavam à espera. Só precisariam buscar os certos, fossem humanos ou não. “Como não tinha pensado nisso antes?”.

- Temos que buscar gente nova.

- Mas você mesmo disse que eu tinha feito merda. O que é isso agora? – interpelou Valter.

- Pretendo fazer uma maior ainda. Pra levá-los de volta ao tempo certo, temos que ter mais tempo para descobrir o vórtex temporal. Para isso, precisamos dos melhores de nós.

- Mas já tínhamos.

- Não todos.

Victor tinha aprendido a dinâmica, mas preferiu coordenar as abordagens do laboratório para não haver o risco de mais coisas caindo na cabeça das pessoas. Em poucos dias, um considerável número de virtuoses em ciências exatas, de todos os tipos, sexos e idades estavam reunidos no grande salão. Todos tinham a letra V em seu primeiro nome e, apesar de relutante a princípio, Valter estava em êxtase. Destinou tudo que amealhou durante a vida; salários, premiações e até um Nobel, para que o melhor da tecnologia disponível fosse utilizado para extrair a resposta daqueles cérebros magníficos. Todavia, precisavam ser rápidos. Não havia muito tempo para explicações, pois as reações se manifestariam em poucos dias ou horas.

Surpreendentemente, semanas se passaram sem que nenhuma das mulheres apresentasse qualquer alteração. Ao fim de um mês, ainda que tenham perdido mais cinco gêmeos, a equação foi descoberta e a máquina do tempo enfim construída. 

Era uma geringonça ovoide, da mais pura platina reluzente, que refletia o exterior como forma de camuflagem. No cockpit, apenas para dois tripulantes, um painel cheio de botões com luzes multicoloridas que programavam dia, mês, ano, hora, temperatura e estabilidade, mas não conseguia precisar o local com exatidão. Precisariam de várias viagens.

Alguns dos remanescentes exigiram compensações pelo o transtorno sofrido. Foram pedidos pequenos como: tempo para se despedir de alguém; voltar antes do resultado de um jogo; presenciar o nascimento de um filho... Entretanto, até isso precisou ser estudado, para não causar um efeito borboleta. 

- Eureca! – gritaram todos, em um grande brinde. 

Comemoravam a volta para casa, e de quebra, acreditavam conseguir alterar alguns fatos desnecessários em prol do futuro pleno e saudável da humanidade.

Porém, ao ligarem a geringonça diáfana e que emitia um som quase celestial, outra máquina idêntica apareceu no grande salão e dela saiu um organismo cibernético, da estatura de um homem adulto, armado, e com intenções nada amistosas.

A estrutura ovoide era mais alta e comprida, e de mesma engenharia, com certeza. Emanava o mesmo som etéreo da que foi ligada um pouco antes, apresentando apenas algumas avarias em sua estrutura externa que oscilavam sua camuflagem. 

O ciborgue estava sozinho e portava um armamento acoplado em seu antebraço direito. As botas pesadas pareciam abaular a superfície a cada pisada. Um silêncio sepulcral envolveu o ambiente, fazendo com que todos dessem um passo para trás. 

O ciborgue procurava por alguém. Escaneava rosto a rosto, na medida em que circulava pelo salão. Um gêmeo correu assustado, e foi alvejado pelas costas, caindo no mesmo instante. 

- Por que fez isso? – gritou Victor estupefato.

- Ele só foi tonteado. - disse o ciborgue, com voz metalizada.

- O que quer de nós?

- De vocês, nada. Quero apenas ele. – anunciou, direcionando o ponto luminoso da arma em seu braço para a cabeça de Valter.

A coragem de Valter ainda não tinha sido testada, mas Victor sabia de antemão que todo sujeito arrogante no fundo era um covarde. Contudo, Valter tinha demonstrado uma grande evolução de caráter nos últimos meses, até aquele momento em que se agachou por trás dos adolescentes e ordenou que os nanos atacassem. Foram reduzidos a nada.

- Saia já daí, seu verme! – gritou o ciborgue.

Victor deu passos lentos para trás, até chegar perto do grupo de adolescentes, sem desviar o olhar do inesperado visitante.

- O que você fez? É esse o cara que você tinha dito que queria nos matar? – Victor sussurrou por sobre o ombro.

- E-eu não sei! Não tenho a menor ideia do que é essa coisa! – gaguejou de volta.

Três meses haviam se passado desde que Victor foi arrancado de sua clareira, e acabou se esquecendo da paranoia de Valter. Teve muito que assimilar durante esse tempo, a ponto de calcular a gravidade do que poderia ser destruído em instantes. Aquele seria seu momento de redenção para todos os pecados que tinha cometido na vida. Se a criatura queria levar alguém, que fosse ele, pois não teria capacidade de conduzir o grupo ao seu multiverso e no tempo preciso sem Valter. 

- Sei que você deve estar chateado com alguma coisa, e não tiro sua razão, Valter pode ser um completo idiota, sem a devida supervisão. Entretanto, dada às circunstâncias de que pessoas inocentes podem ser machucadas, peço que me leve no lugar dele. Pode ser?

- Uma vez lobista, sempre lobista. Não é mesmo Victor?

O espanto foi geral. Como o ciborgue sabia seu nome e seu passado? Contudo, ao olhar novamente para o OVO, tudo fez algum sentido. Aquele não era um ser do futuro, mas um viajante do tempo.

- Quem é você, afinal? 

Os brios de Valter e sua vaidade tinham sido profundamente atacados. Num arroubo de valentia, saiu de trás dos adolescentes e caminhou duro até o lado de Victor.

- Você quase conseguiu me pegar no tornado. Victor está certo. Fui um grande idiota, mas não posso deixar que ele assuma um erro que nem sei qual...

Valter não consegui terminar. O ciborgue o acertou bem no meio da testa.

Gritos ecoaram pelo salão, mas não houve tempo para uma grande comoção. Um tornado de grandes proporções surgiu do nada, abalando a estrutura da enorme construção. Os pedaços da cobertura foram sugados, desaparecendo em pleno ar. Parecia que a morte de Valter detonara a ruptura do espaço tempo. O ciborgue o arrastou por uma das pernas e o jogou porta a fora como um saco de lixo, e gritou:

- Entrem na nave agora! 

Ainda que assustados e indecisos, o rachar das paredes e os objetos que flutuavam foram argumentos irrefutáveis para que o grupo corresse em direção à nave. Não havia portas no grande ovo, apenas uma passagem apareceu como por magia ao leve passar da mão mecânica em sua estrutura externa. Cada acento era identificado com o primeiro nome de cada um dos cinquenta e cinco remanescentes. Por sorte, não havia homônimos. 

Percebendo o temor estampado em cada rosto, o ciborgue gritou:

- Não se preocupem com nada, o destino e o tempo de cada um já está acionado em cada dispositivo instalado em suas poltronas, basta que estejam no lugar certo. 

Alheio a tudo que acontecia e ainda parado no meio do grande salão, Victor via meses de pesquisas sumirem no ar, assim como aquele que há pouco passara a considerar como um amigo. Nem se deu conta quando foi carregado para a nave menor, enquanto a outra desaparecia em um vórtex pluri dimensional espiralado, sem tempo para despedidas.

A sensação de estar desintegrando o tirou da catatonia e percebeu que estava dentro da nave que havia ajudado a projetar com uma criatura com poucas partes humanas. Era um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo, pois não tinha ideia de como entrara ali e nem o destino do grupo. Victor hiperventilava, seu coração batia descompassado e a sensação de quase morte o angustiava, até que recebeu uma pequena descarga elétrica. 

- Calma, não vou te matar.

Victor podia jurar ter visto um sorriso de deboche naquele rosto desfigurado por componentes eletrônicos e placas de metal. Não fosse os seres estranhos com os quais tinha convivido por semanas, ficaria apavorado, mas a sensação de similaridade era mais forte a cada minuto que passavam lado a lado na pequena cápsula. 

A nave se materializou no parqueamento de um condomínio de luxo. Não poderia ser identificada devido ao módulo camuflagem, mas isso não diminuiu a estranheza de ver pessoas dando de cara em algo que não devia estar ali. 

- Entregue na porta de casa. Pode me dar cinco estrelas?

- Como você pode brincar numa situação dessas?

Em um lapso de segundo, Victor percebeu que o esquisito a seu lado estava mais que atualizado com seu cotidiano, e isso o intrigou. ”UBER? Sério? Tá de sacanagem!”

- Essa não é minha clareira. Pra onde você me trouxe?

- Realmente, não é sua clareira. Você não reconhece mesmo o lugar?

Ele olhou ao redor com mais atenção e reconheceu a quadra poliesportiva e seu Mustang vermelho a poucos metros de distância.

- Não pode ser... Voltamos a cinco anos atrás, mas por quê?

- Para você ter a chance de fazer diferente. Você ainda é jovem e não merece ter esse destino aqui. – disse o ciborgue apontando para si mesmo.

Victor piscou os olhos várias vezes. Não podia acreditar que estava falando consigo mesmo. 

- Você é um assassino! – gritou. – Por que diabos fez aquilo com o Valter?

- Porque foi ele que nos transformou nisso! – gritou - Ele estava enganando a todos e só pude perceber depois que, a cada viagem, eu não conseguia mais monitorar os Vs. Todos fomos manipulados com aquela historinha barata de salvar o mundo das máquinas, mas a verdade é que aquele maluco queria ser Deus. Ele alterou o curso e desintegrou os Vs. Apenas me poupou para ser seu escravo tecnológico. Quando tive meios para fugir, voltei no tempo e salvei a todos, inclusive você.

- E o que acontece agora? E os outros?

- Os outros estão bem. Arquivei os pedidos e os mandei para o tempo que queriam. - disse tocando na placa em sua cabeça. – Consegui dar outra chance a eles. Quanto a você, vai poder mudar aquela vidinha de merda que quase o levou a uma overdose. Pode evitar as manobras políticas que desgraçaram a vida daquelas famílias. Aproveite pra ter uma vida de verdade e decente. Valter está morto.

Aquele seria o maior dos presentes “Uma segunda chance... Quantos podiam se dar a esse luxo?” – pensou.

- E quanto a você? Vou te ver novamente?

- Pelas lei da Física, nem poderíamos estar tendo essa conversa. Dois corpos não podem permanecer no mesmo tempo e lugar, lembra? Mas, nós alteramos a merda toda e ainda não sei se, acabando com Valter, consegui consertar o estrago que ele fez no multiverso. Ele desencadeou guerras com os desaparecimentos e coisas maravilhosas deixaram de ser criadas. As mortes de algumas de nossas versões geraram um efeito borboleta difícil de reparar. Entretanto, agora tenho conhecimento suficiente para tentar colocar as coisas em seus devidos lugares.  Ao menos vou tentar.

- Então, isso é um adeus?

- Acho que sim. Se um dia olhar para o céu e notar algo de diferente, pense que sou eu te dando um oi.

Ambos deram o mesmo sorriso tímido e trocaram um aperto de mão. A versão ciborgue de Victor teve o cuidado de usar a mão humana, que o segurou por um tempo a mais. Era difícil se despedir de si mesmo depois de tudo que aconteceu.

Victor olhou para fora para assimilar sua velha nova vida. Esperou que a barra estivesse limpa e saiu da nave. Quando olhou para trás, ela não estava mais lá.


Ele passou um tempo tendo pesadelos. Vez ou outra se pegava olhando para o céu de uma clínica para transtornos mentais, esperando por aquele “oi” que nunca veio, e isso de certa forma era bom. Quando recebeu alta, decidiu arriscar o mercado literário no qual se deu muito bem e se tornou um grande escritor do gênero sci-fi. Atualmente, promove saraus e é Grão Mestre em RPG.

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