Carta de inexistência

Terror
Maio de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Viagens pelo Desconhecido

Sinopse

Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :D

Um dos nossos maiores medos é sumir, desaparecer ou, simplesmente, deixar de existir. A inexistência nunca pareceu algo palpável, real, ou até mesmo, uma possibilidade. Pelo menos até uma visão de um pequeno "ponto cego".

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Carta de inexistência
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Se você ainda existe, parabéns. Ou talvez não, não tenho certeza. Enquanto escrevo isso, ainda existo. Enquanto escrevo esta carta, demonstro o aspecto mais humano de minha existência, que é a auto-afirmação dela. Se você consegue ler, o mais provável é que eu ainda exista, ainda que isso não diga muito em relação à minha vida.

Eu sempre vivi no centro da cidade. Tal fato não regra para outros locais, mas por aqui, isso significa que sua vida é potencialmente ruim. Esta é uma parte suja e maltratada da cidade, repleta de prédios antigos e mais pessoas do que seria saudável ter ao redor. Qualquer um que passar aqui tem contato direto com a pobreza, doença e crime, pequenos lembretes sobre as nossas falhas e eventual morte. Não que isso não exista em outras partes da metrópole, mas é que este é um dos pontos de concentração, diferente da forma diluída dos outros bairros.

A vida urbana faz com que muita gente tenha que passar pelo centro por um motivo ou outro. A cidade, assim, faz com que todos desenvolvam uma distância de outros seres humanos, nesta região. Passos apressados, olhar desfocado e ouvidos moucos.

Não pense que aqui exista qualquer juízo de valor de minha parte. Entendo todas essas pessoas. Ninguém quer pensar no que o lado ruim da cidade representa, ou ver qualquer coisa que os lembre da morte. Quando as pessoas se fecham para outras pessoas, é o instinto mais antigo de preservação humana que está falando, a ideia de que a desgraça alheia poderia se tornar infecciosa, mesmo quando não é doença.

Não sou melhor que qualquer uma dessas pessoas. Se entendo o que elas fazem e seus motivos, não é tanto por uma capacidade de análise externa e uma consciência mais evoluída, mas apenas porque fui exposta o suficiente para compreender. Já vi como a couraça funciona em frente à feiúra do centro e como desaparece, ou se ameniza, em qualquer região mais segura e bela. A existência ou não do medo da morte é uma questão estética.

A distância e o comportamento de autoproteção que os seres humanos desenvolvem afeta diretamente outros seres humanos. Desenvolve-se, assim, um tipo de agressão passiva, um emanar de desejo de destruição, derivado da noção compartilhada de que todos ao redor podem causar a morte. Se todos são o inimigo, devemos ser inimigos de todos. Mas, é claro, ninguém age até que o outro crie justificativa para tal.

Eu trabalho em um escritório, o que provavelmente é uma das maiores falhas humanas. Sento em uma cadeira igual a muitas, em um cubículo igual a muitos, e cuido de documentos muito parecidos com tantos outros sobre registros de incontáveis pessoas, que em minhas mãos são apenas nomes e números. Esses documentos se referem a seguros de vida, uma das ações de defesa da humanidade por medo da morte.

Neste ponto preciso explicar que o que eu chamo de “medo da morte” não é o que as pessoas geralmente pensam. Sim, a incapacidade de viver, de fazer tudo que é do domínio de seres vivos é algo que nos assusta o suficiente para nos preocuparmos com nossa segurança e cuidarmos de nossos corpos, mas há algo mais básico em tudo isso, que o ser humano médio é incapaz de enfrentar de frente: a capacidade de existir.

Nós só nos reproduzimos porque nossos filhos são o registro de que já existimos. Toda arte e tecnologia, todo aspecto de criação só existem porque são registros de nossas existências. Idem para nosso dinheiro, nosso sucesso e até fracasso. Nossa existência é nossa glória, e mesmo na pior das situações, enquanto temos consciência, é o conhecimento de que existimos de qualquer maneira que nos realiza.

Talvez haja algum problema biológico nisso. Dizem que somos seres gregários, que vivemos em sociedade e formamos relacionamentos em um esforço de conservação. Talvez nós só sejamos assim porque tais esforços validam nossa existência, mesmo com nossa morte. Não sei qual a vantagem para a biologia, nisso, mas é fato que ela é falha.

A composição do olho de um ser humano é uma desgraça específica que fala muito sobre esse sentido. Um órgão feito basicamente para uma função, que - independentemente de condições de saúde adversas - sequer consegue cumprir com plenitude seu trabalho por falhas de projeto, com pontos cegos que comprometem nossa visão da realidade.

Não é exagero. Existe um ponto específico no olho humano que é incapaz de perceber o que está à frente, mas ele não é percebido conscientemente, na maior parte das situações, simplesmente porque nossos cérebros são treinados para compreender que isso não é aceitável. Do mesmo jeito que narizes se tornam invisíveis aos olhos quando não recebem atenção, o ponto em que não se enxerga é um ponto de visão comum. Nossa própria biologia nos diz que nada pode “não existir”.

A primeira vez que confrontei a inexistência foi há pouco mais de um mês. Flutuava a alguns metros acima de uma praça arruinada do centro da cidade, no meio do caminho entre meu apartamento e o escritório. Não era uma mancha, nem um ponto cego de meus olhos, mas um ponto cego da própria realidade.

É certo que existem muitas coisas de errado comigo, e a minha capacidade, naquele momento, de registrar em minha mente a inexistência era apenas mais um ponto de uma imensa lista. Dizer que eu a “enxergava” ou “via” são termos errôneos para explicar uma experiência que não deveria fazer sentido dentro de nossos sentidos. A inexistência era o ponto em que meus olhos não enxergavam, em meio a tantos que eles eram capazes de enxergar.

Nenhuma das pessoas que caminhavam por ali pareciam ter notado a inexistência, nem quando me vi incapaz de movimento, encarando a direção em que a realidade se recusava a ser vista. Pensei em questionar os transeuntes, em um desespero momentâneo, mas logo me lembrei que era o centro da cidade, e que nunca seria capaz de ter a atenção deles.

Eu poderia ter passado a manhã inteira ali, tentando desvendar o que minha mente se recusava a me mostrar, mas eu vi um pássaro inexistir. Era uma pomba, tão pomba quanto qualquer outra. Ela voava do chão para os fios elétricos alguns metros acima do ponto de cegueira. Creio que ela, tal qual as pessoas a meu redor, era incapaz de enxergar o obstáculo, pois seu vôo levou-a diretamente para seu centro.

Parte de mim esperava vê-la desaparecendo em um buraco, como se aquela falha em minha visão fosse algum tipo de descostura no tecido da realidade e ela fosse entrar ali e depois sair novamente. O efeito real, porém, foi o desaparecimento completo. Não havia uma sombra se sobrepondo à imagem, como veríamos em qualquer ser penetrando em um buraco. Tampouco havia qualquer profundidade ou um respingo de um líquido ou qualquer coisa que significasse uma transição.

A única coisa que evitou que eu me convencesse que havia visto uma ilusão foi um tipo de imagem residual completamente estática que permaneceu por alguns instantes sobre o ponto de cegueira. A pomba com as asas abertas, algo enxergado sobrepondo o ponto impossível de enxergar. Mas lentamente a imagem se tornou mais bidimensional, menos detalhada e, como se fosse espuma se dissolvendo, logo só encarava novamente o que não podia ver. Incapaz de entender, corri.

Meu cubículo no escritório não tinha janelas. Ele era cercado por outros cubículos, com outros humanos e mais papéis representando outros humanos. As janelas cercavam o ambiente como um todo, ao redor, visíveis apenas no caminho para salas de reunião, banheiros, ou para a pequena copa e cozinha. Quando eu me levantava, eu podia ver através das janelas a inexistência acima da praça. Mesmo com a distância, mesmo sendo uma mancha pequena, eu distinguia com clareza a inexistência.

Tentei utilizar o ambiente seguro do escritório para apontar para outras pessoas a inexistência, mas foi em vão. Não a identifiquei como o que eu achava que era, chamando-a de “mancha”, simplesmente em uma tentativa de preservar a ilusão de sanidade, mas ninguém era capaz de ver. Confundiam com alguma mancha no vidro da janela, ou com qualquer coisa no ambiente, ou diziam não ver nada, me encarando com algo como receio fracamente disfarçado.

Quando voltei para casa, a inexistência parecia maior. Do meu apartamento, pela posição de minha janela, eu não conseguia vê-la, e talvez apenas por isso eu tenha conseguido dormir. O que não quer dizer, na prática, que meu sono tenha sido tranquilo. Na manhã seguinte, ela parecia ainda maior.

A verdade é que, em um primeiro momento, eu não tinha certeza do que chamar aquela forma que flutuava. O nome “inexistência” veio como uma sugestão inicial quase instintiva. Sugestões mais racionais como “vazio” ou “nada” me pareciam indevidas, porque ambos sugeriam, de algum modo, a presença de espaço, ou a oposição a algo ainda dentro do âmbito de existência.

Eu não sabia explicar como é que sabia que aquilo era o que era, mas eu sabia. Nós identificamos uma cor que já conhecemos: o azul é azul, o vermelho é vermelho. Se as vemos, podemos dar um nome. Mesmo que o nome possa não significar o mesmo que significa para outras pessoas que os enxergam, há uma consistência de nossas mentes em sua significação.

A pergunta maior era: como é que eu compreendia, e ainda compreendo, a inexistência? Nossos olhos não compreendem todo espectro de luz, e mesmo nosso conhecimento dele não o torna visível para nós. Não foi minha observação dos humanos que me permitiu entender mais que eles e a inexistência, não foi algo que aprendi a ver. Talvez a minha capacidade de observação seja apenas mais um sintoma de algo maior. Só consigo crer que seja um erro de biologia, um instinto de preservação que eu não tenho, permitindo que minha mente não tenha que realizar o esforço de ocultar a diferença, tal como faria com os pontos cegos em nossos olhos.

Certamente havia algo de preservação ali. Eu vi isso quando, dias depois, a inexistência se ampliara e agora ocupava uma imensa mancha vertical, flutuando a poucos centímetros da calçada ao lado da praça. As pessoas que por ali passavam, por algum efeito de autopreservação, naturalmente desviavam a rota para não tocarem naquele erro da realidade, mas sem reconhecê-lo ou encará-lo. Mesmo multidões se espremiam e desviavam, como se ali não existisse espaço para passarem.

A morte podia causar pânico. A destruição é identificável, e fala a nossos instintos mais primitivos. Ao queremos viver, nós queremos “não morrer”. Ao existir, queremos “não deixar de existir”. Só que quando essa última circunstância não é igualada com a primeira, ela é de concepção mais abstrata e, ao ser humano médio, impossível. Mas algo em nossas consciências compreende esse conceito, e era isso que fazia com que as pessoas, sem qualquer esforço consciente, desviassem.

Isso não quer dizer que não haviam outras inexistências acontecendo. Eu vi folhas de árvores, pássaros, cães. Muitos tocavam aquela região da realidade, deixando apenas uma ilusão de óptica temporária como um rastro, e ninguém mais notava seus desaparecimentos. O motivo para tal, no começo, apenas adicionou às dúvidas sobre minha própria sanidade, mas com o tempo eu descobri o que ocorria, e decidi que a insanidade talvez fosse uma saída mais reconfortante.

A sensação de ver um ser humano deixar de existir é um desespero muito específico. Quando algo genérico deixa de existir, você não sente diferença. Um pombo é um pombo, igual a qualquer outro. Idem para uma folha. Até mesmo um cão, se não nos é familiar o suficiente. Quando qualquer um desses seres passa a inexistir, a ideia deles não desaparece, pois eles já não são muito, especificamente. São apenas o reflexo de um todo. Uma pessoa, por mais que ela tenha toda a couraça e modus operandi de distanciamento que os transeuntes do centro possuem, é para qualquer outra pessoa mais do que a ideia genérica de um ser humano.

Quando a inexistência seguiu se ampliando, algumas pessoas não se desviavam dela. Não sei dizer se havia um impulso de morte maior que o normal naquelas pessoas, ou se elas possuíam alguma outra variação biológica como a minha, mas que em vez de lhes dar percepção, tirava até mesmo a proteção inconsciente que parecia predominar nos outros humanos que por ali passavam. Vi várias pessoas caminhando diretamente para a inexistência e se tornando espuma de percepção, desaparecendo momentos depois. Eu não as parei. O impulso estava lá, como a aflição de quem sabe que alguém irá se ferir, mas eu percebia que seria tratada como louca. Que, mesmo se eu impedisse ali mesmo, nada adiantaria em outro momento, e eu não estava disposta em me tornar uma guardiã daquele ponto, só porque enxergava a inexistência.

Eu também não faria isso porque a aflição que a imagem da inexistência humana causava era forte demais para mim. Eu via como as pessoas, em minha mente, se tornavam subitamente genéricas, como eu não podia me lembrar com detalhes da imagem de nenhuma delas, tão logo inexistiam.

No decorrer dos dias, os casos foram se tornando mais frequentes conforme a inexistência crescia. Em algum momento, certa manhã, algo estava diferente nos arredores da praça, e demorei algum tempo para notar que era a disposição dos postes. Demorei para me lembrar que antes havia fios elétricos passando no ponto onde a inexistência se projetava para cima. Naquele ponto, não havia nem fios e nem postes. Aquele lado da rua não tinha passagem de fiação visível.

Minha mente simultaneamente se fixou e rejeitou aquele pequeno detalhe. Ao mesmo tempo em que eu tinha certeza de que os postes haviam mudado, algo queria me dizer que sempre havia sido daquele modo e que não havia importância. Aquela causalidade me confundia - meu reflexo era pensar que, em contato com a inexistência, os fios apenas desapareceriam, mas algo a mais havia acontecido ali. Dias depois, outra situação me fez entender.

Foi um casal. Ele usava terno, ela usava tailleur. Os dois pareciam arrumados demais para o centro, mas as maletas indicavam que provavelmente estavam por lá a trabalho. Ela caminhava no lado de dentro da calçada, próxima ao muro do canto da praça. Ele caminhava mais para o meio, seguindo diretamente para a inexistência. Os dois conversavam. Ela passou ao lado da mancha. Ele não. Ela continuou andando, e já não conversava. Em seu rosto, a expressão indiferente de todos do centro da cidade. Nem um olhar que procurasse o namorado ou marido. Ele inexistia para ela e para todos.

Foi então que compreendi: ele não havia inexistido naquele momento. Ele havia deixado de jamais ter existido. Como os fios dos postes, e os postes por extensão. Essa compreensão me veio como uma luz, mas ela se apagava com a mesma velocidade que eu esquecia o rosto do homem e com a mesma velocidade com que o meu desespero crescia. A inexistência não era uma força de morte, mas de não-nascimento, de não-concepção.

Me recusando a pensar mais, fui ao trabalho. E depois do trabalho, voltei para casa.

Uma vizinha minha costumava fazer uma rota parecida. Ela também trabalhava em um dos prédios do centro, em outro escritório genérico. Não éramos próximas, até onde eu me lembre, e nem sempre nos encontrávamos. Mas me lembro quando me tornei fixada na necessidade de utilizá-la para testar minha teoria sobre a inexistência. Me lembro quando esperei até que saísse, a segui, e empurrei seu corpo para dentro da inexistência. Seu nome era Marta, ou Marcia ou Marcela. O fato de que eu não conseguia mais me lembrar mesmo enquanto sua imagem gradualmente se apagava na inexistência me dizia muito.

Quando voltei para casa, no fim do dia, ninguém sentiu sua falta. O apartamento dela era alugado por uma outra pessoa, e havia sido assim há anos, porque Marta, ou Marcia, ou Marcela jamais havia existido para alugá-lo. De algum modo, eu sabia daquilo. As duas informações existiam na minha mente, com a existência original se apagando e sendo esquecida enquanto a realidade vista tomava o seu lugar. O desespero daquela informação atacava meus sentidos, e eu tinha vontade de rir por ser dona de tal segredo.

Algumas pessoas falam sobre carma, sobre causa e efeito em tudo que fazemos. Não sei se foi isso, se chamei a atenção da inexistência ao oferecer aquela mulher como sacrifício, mas na manhã seguinte de inexistir minha vizinha, acordei com uma mancha de inexistência em minha cozinha. Ela flutuava, imóvel, onde antes havia - e simultaneamente nunca havia existido - uma mesa de jantar pequena.

Eu não sabia se era uma ameaça ou um aviso, nem se havia inteligência por trás daquilo. Talvez aquela outra amostra de inexistência fosse um fato aleatório, ganhando algum significado e interpretação puramente porque minha mente precisava disso. Fosse o que fosse, aquilo me assustava. Fosse o que fosse, me desviei dela para sair de casa, colando as costas nas paredes como se fosse se mover ou se expandir em minha direção.

Tranquei a porta e saí. Tomei café da manhã na rua e segui para o trabalho. Na praça, a inexistência continuava crescendo. No trabalho, não tive certeza mais se todos meus colegas que já haviam estado ali permaneciam ali. Se deixaram de existir e eu não me lembrava, ninguém mais saberia.

Quando voltei para casa, eu não tinha mais lar. Ninguém parecia se importar com o imenso espaço onde havia um prédio de quitinetes arruinadas, porque nunca havia existido uma construção ali. A inexistência do meu apartamento havia crescido em poucas horas e se tornado maior que o local, um imenso ponto cego no meio da cidade, invisível para os outros prédios muito próximos e para os transeuntes indiferentes.

Eu sabia que nunca havia morado ali, desde que a inexistência o tomou Nenhuma de minhas posses jamais havia existido, nem minhas contas haviam sido pagas, nem as memórias que eu tinha e as pessoas que eu conhecia. Provavelmente nem minha nova vizinha que era antiga, substituindo a que eu havia inexistido. Nada daquilo existia.

Tentei me concentrar frente à tontura que vinha com esses pensamentos, imaginando que, tal como os postes elétricos realocados, o universo havia realocado minha existência quando muito do que era relacionado a ela inexistiu. Mas talvez fosse minha predisposição, meu erro biológico, ou quem sabe a falta de alguma coisa em mim, mas eu não conseguia sequer me lembrar do que se relacionava à minha existência. Eu nunca havia morado ali, mas nunca havia morado em outro lugar. Naquela noite, vaguei pelo centro da cidade, ignorada por todos.

Não dormi. Gastei algum tempo em um restaurante, descobrindo que tinha algum dinheiro, mas que meu celular, cartões de crédito e vários itens de minha bolsa haviam desaparecido. Não era resultado de um roubo. Logo cheguei à conclusão que era outra coisa: como eu jamais havia tido uma residência, eu provavelmente não tinha como comprová-la para obter crédito para tais benesses.

Depois de vagar a noite inteira em claro, tentando me lembrar de quem havia sido, ou de encontrar alguma ilusão que me enganasse o suficiente, decidi ir para o trabalho, pois era o único lugar que sentia que me restava. A inexistência na praça a tomava completamente. A maior parte dos transeuntes evitava aquela quadra inteira, enquanto uma parcela seguia para a inexistência, como tantos antes. Um ponto de ônibus agora estava em outro lugar, ainda que sempre estivesse estado ali.

Meu trabalho também não existia mais. O prédio todo, como onde eu morava, era ocupado por uma mancha enorme. Nunca existira empresa, portanto eu nunca tivera aquele emprego. Nunca trabalhara, até onde podia me lembrar. Passei a morar nas ruas do centro da cidade.

Hoje não encontro mais ninguém que me conheça.Todos que conheciam inexistem, ou o relacionamento que tínhamos inexiste. Enquanto escrevo esta carta, eu existo, ainda que não saiba muito bem o que isso significa, já que não lembro mais tanto sobre mim. Talvez em algum momento eu não exista mais. A inexistência continua crescendo em novos locais. Talvez, um dia, o centro da cidade inexista, e depois a cidade, depois tudo mais.

A ideia não é de todo desconfortável. Você já esteve em algum lugar onde ninguém te conhece? É como se você não existisse. Especialmente no centro da cidade.

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