Prólogo
Epílogo
Conto
Ah, cara, por que eu? Por que eu?! Isso não é mais o caminho certo a se fazer,
definitivamente não. Por que não ir por cima? É só ir se esgueirando, ou ir de noite…
E, até porque, ser preso e melhor que ser esquartejado! Querem me matar, só pode;
querem me matar. Parece que isso não importa pra eles — morreu, morreu; tanto
faz, devem pensar. Mas isso é péssimo, péssimo. Vai dar tudo certo, eu tenho certeza;
vai dar tudo certo. Só são algumas galerias, nada demais. O esgoto não é tão grande
assim — e eu o conheço bem, muito bem; aposto que melhor que o psicopata que
está se escondendo por aí. Vai dar tudo certo.
— Dré? Está aí, rapaz? — bateu à porta um qualquer.
Deve ser o Dáblio. Desgraçado seja você, Dáblio. Se não tivesse ficado doente,
quem iria pra esse suicídio seria você. Mas sua hora vai chegar, você sabe disso.
Esse buraco imundo, essa vida desprezível; lugar infernal, que eu morra, mesmo.
Não, isso deve resolver. O doce injetar da agulha; oh, sim, sim, isso deve resolver. É
um mundo belo aqui. Não há o que temer, naturalmente. Dáblio está à porta, devo
atendê-lo.
— Dré, é bom te ver bem. Viu, não foi por mal, tá? Só caiu mal, faz parte.
Você consegue. Aliás, o Caverna falou que vai mandar um outro moleque contigo,
pro caso do psicopata aparecer; ele recomendou que, pelo menos, um de vocês tem
que sobreviver pra contar a história.
Caverna, o “chefe” do nosso setor. Setor D, um dos oito submundos sob a cidade
de Drama, todos nas galerias do esgoto da capital pulsante. Caverna é o melhor
errante que já trabalhou nesses túneis; o nome é pela sua capacidade de armazenar
drogas em todo quanto é orifício. Pra quem vive no esgoto, produto armazenado em
certas cavidades pouco incomoda na hora do consumo. Então um moleque vai me
acompanhar. Pergunto-me quem é. Moleque imbecil, claramente quer se mostrar
pros superiores; como se isso funcionasse num lugar como esse, que ninguém realmente
se importa com ninguém.
— Ah, e Dré, o Caverna vetou o uso de qualquer coisa na viagem, certo? Você
e o garoto irão ter que ir sóbrios; se forem drogados, claramente vão alucinar com
as histórias do psicopata. Vá ao Magia, o moleque e o produto estão esperando você
lá; vão dar um jeito em vocês. É isso. Boa sorte, camarada. Pelo que soube, você trará
umas novas coisinhas pra nós lá do B; ansiamos todos por isso. Até lá.
Claramente querem acabar com essa empreitada. Sem uso de nada? Talvez
o Caverna tenha colocado o cérebro no mesmo lugar das drogas e esqueceu lá. Isso
não vai dar certo. Vai ser muito pior sem. Mas, enfim, paciência. O desgraçado é tão
meticuloso que deixou a produção com o moleque, só pra eu ter que ir no Magia.
Paciência, Dré; paciência. Vamos lá, então.
Se tinha alguém que entendia de psicoativo nesse buraco, esse cara era o
Magia. Provavelmente o mais viciado do nosso setor, ele também era o cara das purificações,
retirava qualquer resquício dos produtos do nosso mundo. Magia, pelo que
dizem, jamais dormia, e estava sempre com os olhos saltando pra fora das órbitas. De
fala acelerada, ele murmurava um monte de palavras perdidas enquanto retirava o
paciente da sua “zona”; era um completo lunático. Sua cabine era famosa no setor, e
sua opinião tinha grande peso nas decisões do Caverna; era um dos mais influentes
membros de nossa sociedade. Com sorte, eu conseguiria convencê-lo a me deixar
levar umas duas seringas, pelo menos pra minha proteção. Aqui estávamos, então,
no Magia. Pedi pro moleque chorar uma seringuinha pra nós. O Magia chegou.
— Dré, Dré, Dré! Menino, rapaz! Bom te ver, bom te ver. O Caverna falou,
então tá falado: sem nada, meu amigo, sem nada! Venha aqui, já! Teu menino já está
limpinho e pronto pra te acompanhar; o produto está na mochila, o “Cav” preparou
tudo já, é só levar. Setor B! Anos que não piso nesse lugar, deve ser o mesmo inferninho
dantes; oh, como eram bom os pózinhos mágicos de lá! Venha, venha. Vamos
limpá-lo. Sim, calma. Um, dois. Lua, capricórnio, Saturno, robótica, xamanismo e
cartão-ponto! Restaurantes e liquidações; estacionamentos subcutâneos; pigmentação
superior à pele. Dermatologista! Desgraça, saia daqui! Saia, vamos. Vocês dois,
sumam daqui, sumam daqui!
— Mas, Magia, espere, espere! Tem um assassino lá fora, você precisa nos dar
alguma coisa pra nos protegermos. — disse o garoto, esperto garoto.
— Ora, seu moleque! Peça ao Caverna, isso não é problema meu! Sumam,
vamos, xispa! Desgraçados, drogados; viciados! Cadê minha seringa, cadê?! Dré, seu
vagabundo imundo, devolva minha seringa, devolva!
Eu não sairia do setor sem alguma coisa; não, não, era impossível sobreviver
sem ela! O Caverna que me surre depois, mas eu prefiro ser punido a ser esquartejado.
Sim, sim! Vamos, moleque desgraçado, corra também! Vamos sair daqui antes
que chamem aqueles bugios brutamontes pra nos pegar; por que não enviam eles,
desgraçados?! Desgraça, desgraça. Agora estamos aqui, meio ao inferno desse esgoto.
— Ei, garoto. O que você sabe fazer? Por que está aqui comigo? Por que não
ficou e ajudou o Magia? Por que não me parou? Por que não fala? Por que está me
olhando com essa desconfiança toda? Por que está com medo? Fala, garoto, fala!
— Calma, Dré. Eu só quero ajudar. Caverna pediu, eu aceitei. Sou novo aqui,
preciso criar meu nome. Pode me chamar de Épi, sou filho de um errante do setor A,
aquele que morreu recentemente, vítima do assassino. É um dos motivos pra eu vir:
se eu encontrar esse doente, farei ele se arrepender por ter matado meu pai.
— E você ficou sabendo da história por inteiro? Você ficou sabendo? Garoto,
você não sabe de nada! Você não sabe, não sabe! Era loucura. Loucura. Ouvi dos
errantes do setor A que conheciam teu pai. Era uma loucura.
— Ouvi, mas não sei se é a mesma história. Cada um conta uma coisa. Se
importaria de me contar enquanto viajamos?
— Você não quereria saber, mas eu vou te contar mesmo assim. Vou te con
tar porque você precisa saber da enrascada que se meteu, garoto idiota, ingênuo! Teu
pai foi morto, seu imbecil, e você também vai ser! E eu... Eu também! Não, não...
Não posso…
— Calma, Dré. Todo dia gente de todos os setores viajam por essas galerias;
seria muito azar o assassino atacar logo a gente. Conte-me a história.
— Menino, você… Tudo começou no setor A, você sabe: seu pai. Ele foi incumbido
de levar produtos para o setor G, um muito longe, mas em momento algum
reclamou. Rumores dizem que ele caminhava por estes corredores tristes, com esse
rolar das águas, essas goteiras, fazendo seu sapato bater contra o concreto maciço e,
eventualmente, das grades que servem como pontes sobre certos canais. Ele andava,
andava sem pensar muito, apenas rumando ao seu destino e, eventualmente, começou
a ouvir mais que um andarilho. É natural, como você percebe, que nossos passos
ecoem, mas ele sabia que aquilo não era mero eco. Ele começou a acelerar o passo e
seus sentidos se apuraram. O barulho das águas se tornou mais intenso, as goteiras
pareciam perseguí-lo e os passos pareciam se aproximar. Cada esquina que dobrava,
temia encontrar pela frente o psicopata que já havia feito duas vítimas até então; ele
sabia da existência, mas não da história completa. Tudo se dá em uma sequência, primeiro
três pedras são arremessadas no canal, de uma entrada oculta, quicando sobre
as águas. Depois, três batidas distantes, do que parecer ser uma clava ou um pedaço
de pau qualquer. E, então, um assobio, um assobio monótono, um constante; um
alarme. A próxima esquina que você virar, ele estará lá, pronto para te picar ao meio
e consumir tudo o que você carrega. Foi assim com ele. Com os sentidos apurados,
viu como as pedras quicaram sobre a superfície aquosa e foram parar perto de seus
pés, ele achou estranho, julgou ser algum bandido, não o assassino; ninguém quer
que seja o assassino. Depois, as três batidas. Era algum ferreiro de algum setor, só
poderia ser, pensava ele; o assassino não poderia ser, por que anunciaria sua vinda?
Então o assobio. Parecia o vento. A goteira continuava, os passos ecoavam, normalmente;
normalmente até o virar da próxima esquina. O assassino estava lá, armado
com um porrete, pronto para espancá-lo até a morte, quiçá fazendo usos indevidos
do instrumento que portava, da maneira que apenas o Caverna poderia suportar. O
terror começaria ali, e a morte era iminente.
— E você acredita nisso mesmo, Dré? Como foi assim, se ele morreu? — disse,
após se agachar, pegar três pedrinhas e jogar no canal.
— Você é idiota, garoto? Por que está fazendo isso? É óbvio que não acredito,
mas pode ter sido exatamente isso; nem eu nem você sabe. E de onde você arranjou
essa ripa, rapaz?
— Vamos colocar a prova. Se for isso mesmo, o assassino deve aparecer. —
disse, batendo com o pedaço de madeira nas grades. — Se ele aparecer, estamos em
dois, vamos pegá-lo.
— Pare, pare com isso agora! Não é coisa que se brinque. Pare agora! Meu
senhor, cadê a seringa, cadê a seringa?! Aqui. Tome, moleque, acalma-te.
— Dré. Você está ouvindo? Me sinto bem, agora. Meu pai vai ser vingado.
Sei disso. Onde está meu pai?
— Ouvindo o quê, cara? Para com isso, já disse. Está bem agora, vamos continuar
a caminhada. Pare de assobiar, pelo amor de deus!
— Não sou eu, Dré.
Estávamos parados e, ainda assim, os ecos de passadas continuavam, alguém
não havia parado. Não era nem eu nem ele, o garoto. O assobio se aproximou. Olhava
para os dois lados, buscando a origem do ruído. Então um vulto. Um porrete desceu
dos céus na cabeça do moleque, pulverizando-a. Banhado em sangue, o mesmo
porrete buscou meu peito, empurrando-me no canal, jogando-me na água turva,
infestada de tudo o que de pior saía daquilo que é orgânico. Um braço me alcançou.
Eu me afogava. O que era pior, morrer ou ser esquartejado? Me debatia pra ver se a
mão me soltava, mas ela era forte demais. Fui tirado pra fora da água. Lá estava ele,
o psicopata.
— Pobres criaturas do submundo, mal podem resistir a força de um homem
da superfície. Degenerados. A que ponto chegaram, não é? Mas sua sociedade sofrerá
e sucumbirá, pois nesse labirinto eu sou o novo minotauro, e o terror é meu maior
aliado. Venha, vamos descobrir se os sujeitos sob a asa do Caverna possuem a mesma
capacidade dele.
E o porrete encontrou seu caminho por dentro de mim. Esse não é o caminho
mais certo a se fazer, definitivamente não. Por que não ir por cima?… Por que
eu?