Prólogo
Epílogo
Conto
João e Maria seguiam pela floresta de Notinville. Mesmo sem luar, a dupla
pressentia que já passava das tantas da madrugada. João, sacana, com mil e um pensamentos,
queria ser o lobo mau da Maria. Nas fantasias que desfilavam em sua cabeça,
imaginava Maria perguntando para que servia aquela boca enorme, aquele coração
grandão e aquela outra coisa maior ainda (coisa da cabeça pequena de João). Por sua
vez, Maria queria apenas chegar em casa depois da balada na taverna do João Grandão.
Naquela aldeia todo mundo se chamava João ou se chamava Maria. Era Maria
das Graças, Maria da Fé, Maria Faceira.... Esta que conduzia o João (João jurava que
conduzia Maria), se chamava Maria da Paquera. Eram tantas outras Marias, assim
como outros tantos Joãos.
Conversa vai, conversa vem, João tenta se aproximar um pouco mais de Maria
da Paquera. Maria, pressentindo as intenções, grita:
— João Pequeno! Não vem que não tem. Conheço bem a tua fama. Vai tentar
algo com as tuas cabritas. Com esta aqui, tem que ter muito tutano nas canelas para
conseguir alguma coisa. Além do mais já é tarde e estou cansada. Me leva para casa
que já está de bom tamanho para ti, João PE QUE NO!
João, agora cabisbaixo xingou até a última geração de sua mãe por ter colocado
este nome em um ser tão grande... de espírito. Do alto de seu um metro e meio,
João Pequeno não aceitava sua condição de quase anão. Não que isso fizesse diferença,
afinal de que valem centímetros a mais se o cara não se garante, pensava ele. E
assim, seguiu mata adentro conduzindo Maria da Paquera — ou sendo conduzido.
Maria da Paquera e João Pequeno tentavam em vão olhar por entre árvores e
arbustos, mas viam apenas o breu a sua frente. A lamparina de cobre, alimentada por
azeite e gordura animal iluminava menos de meia braça a frente dos dois. Poderia ser
pior, quando apenas velas serviam de lúmen. Agora eles tinham a lamparina, inovação
que chegara a pouco em Notinville.
Desde que o João da Luz se mudou para a aldeia e começou a fabricar lamparinas
e fornecer combustível para alimentar as luminárias, a vida dos aldeões melhorara
consideravelmente, principalmente à noite. Inclusive a Taverna de onde voltavam
João e Maria, recebia mais clientes, devido à melhor iluminação do ambiente. Toda
a aldeia saudou a chegada do progresso, agradecendo ao João da Luz pela luminosa
novidade. Agradecimento à distância, diga-se, a bem da verdade. Conheciam o benemérito
apenas de nome. Ninguém nunca vira, nem de relance, o semblante do
homem das lamparinas.
Porém, naquela mata fechada, sem luar e com névoa, nem a melhor lampa-
rina de João da Luz era suficiente para iluminar decentemente o caminho trevoso.
A escuridão e a parca luz formavam sombras em cada passo avançado. Sombra, escuridão
e caminho tortuoso despertam medos em qualquer ser, imaginem aos mais
medrosos. E medroso é uma palavra que define bem o João Pequeno. Mais medroso
ficou, depois que começou uma onda de desaparecimento de pessoas na aldeia. Este
fato também assustava João Pequeno, e muito.
João Pequeno, além de medroso, era adepto de uma boa teoria da conspiração.
Sempre que o assunto sumiço de gente vinha à tona, João Pequeno lembrava
que os desaparecimentos meio que coincidiam com a chegada de João da Luz à aldeia.
Maria não dava muita importância, dizendo que era lenda “aldeana” e coisa de quem
não tinha muito o que fazer. João Pequeno insistia na teoria conspiratória, acrescentando
fatos que aconteceram em outras aldeias do reino, relacionados a desaparecimentos
nunca esclarecidos.
Na escuridão, além das sombras, se destacavam os dentes do João Pequeno
a arreganhar a bocarra para Maria na esperança vã de roubar um beijo. Mas Maria
da Paquera queria distância da boca do João Pequeno. Maria tinha pressa em sair
daquele labirinto de sombras e chegar o quanto antes em casa para descansar os pés.
Depois de bailar com quase a metade da população masculina da aldeia na Taverna
do João Grandão, seus membros inferiores acusavam o abuso físico sofrido no chão
batido da casa noturna.
Enquanto trilhava o caminho de casa, Maria da Paquera lembrava dos conselhos
de uma das suas amigas, Maria do Brilho, que sempre recomendava que a amiga
não deveria se entregar a qualquer João da aldeia. Se fosse para ficar com alguém que
fosse com o João da Grana. Afinal, ninguém tinha mais recursos na aldeia do que o
João da Grana. O pai dele era um grande madeireiro, derrubava boa parte da mata todos
os anos. Não existia casa no reino que não tivesse a marca do João Machado, pai
do João da Grana. O rapazote mais desejado pelas moçoilas da aldeia desfilava pelas
tavernas da redondeza cada semana em um cavalo novo. Não se sabe quantos cavalos
tinha o pai do João da Grana, mas estimava-se às dezenas, a maioria puros sangues.
Naquele instante, João queria ser um único neurônio de Maria para poder ler
as sinapses geradoras dos pensamentos da amiga, pois naquela caminhada o silêncio
de Maria só não era maior do que o medo que João Pequeno sentia na escuridão que
os engolia. Como Maria da Paquera bem sabia, João Pequeno só tinha de enorme o
medo do escuro. Mas, para tentar seduzir Maria da Paquera, João Pequeno se fazia de
corajoso. Todo borrado, quase tremendo de susto a cada estalar de graveto, mantinha
a pose e seguia em frente. Altivo e viril como nunca fora, continuava sua segunda
aventura épica na mata. A outra aventura aconteceu quando levou Maria da Fé
até a igreja local para rezar o terço. Daquela vez não se atreveu a tentar conquistar a
rapariga. Maria da Fé percorreu todo o percurso sem parar de rezar por um instante
sequer. Quem se atreveria a tentar pecar com a mais religiosa das mulheres da aldeia?
Diziam a boca pequena que o pai do primeiro filho da Maria da Fé era João Cristão,
o padre da aldeia. Nesta, o João Pequeno perdeu feio.
De repente o silêncio de ambos é quebrado por um uivo. João se agarra em
Maria. Maria rapidamente afasta João.
— O que tu tá pensando, João PE QUE NO? Já te disse pra não ter essas intimidades
comigo!
Qual um cachorrinho com o rabo entre as pernas, João Pequeno assume sua
condição de medroso. Maria segue em silêncio. João nem tanto. O bater de dentes
acusa a sua covardia que se acentua no próximo uivo. João reúne todas as suas forças
no istmo de coragem que reside naquele templo do medo e se esforça sobremaneira
para não sair em desabalada carreira. Afinal, ter a Maria do seu lado, é melhor do que
seguir sozinho.
João e Maria continuam a jornada e outro uivo, ainda mais poderoso, faz João
Pequeno estremecer, empalidecer e travar as pernas. Maria o arrasta, o chamando
de covarde. Neste momento, João reconhece que perdera todas as esperanças com
Maria. O plano de se fazer de corajoso se foi com o último uivo. Agora, João Pequeno
queria apenas chegar na casa de Maria, entregar a encomenda e dar no pé para sua
casa que ficava a pouco mais de cinquenta braças da casa de Maria.
Apressam o passo e, além dos uivos, os dois ouvem barulho de madeira quebrada,
veem faíscas a iluminar a mata fechada e ainda mais uivos aterrorizantes.
— É o capeta! Sussurrou João, quase sem voz.
É o fim dos tempos, deve ser o demônio que veio me buscar. Ninguém mandou
eu desejar a freira, pensou o João Pequeno. Tantos desejos libidinosos só podiam
dar nisso, continuou João com sua autoconfissão, enquanto tremia mais do que vara
verde de salso chorão.
João Pequeno usa do último resquício de coragem, toma a mão de Maria e
com voz sufocada pelo medo e quase inaudível, pede para ela correr junto com ele.
Neste momento até Maria da Paquera já está assustada e segue o amigo em direção
contrária de onde se ouvia o barulho de metal sendo arrastado e uivos.
Nesta fuga alucinada perdem o rumo das casas. Param numa encruzilhada.
No escuro, sem a lamparina que perderam na disparada, não conseguem identificar
nada familiar para poder escolher o rumo certo. Maria, já furiosa devido ao medo
insano do amigo, resolve de forma científica o caminho a seguir:
— Uni-du-ni-tê, o caminho escolhido é você. — Apontando com o dedo
indicador o destino escolhido, tomam o rumo desconhecido.
Já despontavam os primeiros reflexos do dia quando enxergaram uma tímida
luz ao fundo. Foram se aproximando de mansinho e notaram que era uma casa grande
com um galpão maior ainda, nos fundos. João Pequeno disse que a casa parecia
feita com doces. Maria beliscou o João e disse que isso era coisa de gordo, de glutão.
Conhecendo o amigo, completou dizendo que João estava tendo alucinações devido
à falta de comida, desde a noite anterior.
Aproximaram-se de mansinho, meio sestrosos. João foi direto bater na porta
para pedir ajuda ou informação sobre qual caminho a seguir. Maria, mais cautelosa,
pediu para o amigo não fazer isso. Disse ela que, primeiramente, deveriam dar uma
espiada no entorno para evitar alguma surpresa desagradável. João e Maria dão meia
volta na casa e chegam até ao galpão dos fundos. Para alcançar a janela João Pequeno
sobe em uma pilha de lenha, provavelmente fornecida pelo João Machado. Maria da
Paquera apenas estica os pés. João Pequeno sentiu mais uma estocada fatal no ego.
Espiam pela janela. Vislumbram um grande tanque aquecido por uma fornalha que
aparentemente derretia gordura. O cheiro que se dissipava pelas frestas da janela era
de gordura animal, segundo análise sensorial do João Pequeno, especialista em comida.
Maria Paquera, que usava mais o cérebro, do que o nariz, deduziu que a gordura
poderia ser usada nas lamparinas. Por aproximação, também chegou à conclusão que
aquela era a casa de João da Luz, o fabricante de lamparinas que abastecia a aldeia.
Pela quantidade de gordura nas tinas, deveria abastecer todo o reino. Maria pensou o
porquê de a fábrica estar situada em local tão isolado, e também qual seria o motivo
de ter escolhido Notinville para estabelecer a fábrica. Notinville era tão distante de
tudo.
Mal terminou suas conjecturas e alguém, sorrateiramente, chegou por trás
da dupla. Os dois se assustaram e rapidamente se viraram para ver quem era. Tudo
se apagou.
João Pequeno e Maria da Paquera acordam amarrados, cada um em um dos
pilares de sustentação do grande galpão. Próximo aos dois, a fornalha ardia em centenas
de graus. Maria olha para João Pequeno que, olhos arregalados, não conseguia
falar. Maria passa a mão na cabeça e sente um galo sangrando. Olha para o João, vê
sangue escorrendo de sua face roliça.
Ao redor, veem uma pilha de ossos calcinados adornando o ambiente. Em
um armário improvisado, amontoados de vestes de gente simples confirmam que
muitos corpos já passaram por aquele tanque fumegante. Também podia-se ver uma
grande oficina de ferreiro, com chapas de bronze encostadas na parede de pedra. O
ambiente era quente, cheirando à graxa derretida no tanque e à fumaça que exalava
da forja ao lado.
João e Maria agora já pressentiam seu destino. Juntaram todas as evidências
e desvendaram o mistério. João Pequeno tinha até vontade de confrontar Maria da
Paquera e demonstrar que ele tinha razão, que não era mera teoria da conspiração.
Mas, para quê? Inflar o seu ego não resolveria nada. Resignou-se com a dor dos pulsos
amarrados e a cabeça rachada. Maria da Paquera, só olhava ao redor e molhava
o rosto com as lágrimas de despedida. Uma vida pela frente e tudo terminaria ali,
naquele caldeirão do bruxo das lamparinas.
As divagações da dupla são interrompidas por passos arrastados de um homem
de meia idade, cabelos grisalhos e aparência corpulenta.
— Oh! O que temos aqui, um baixinho gordinho e uma mocinha meio magrinha.
Humm... o nanico com certeza vai dar uma boa quantidade de graxa para
minhas lamparinas. E tu, mocinha, ainda se fosse bonita, vá lá, eu poderia querer
casar contigo, mas tu não fazes o meu tipo. Tu vais servir de comida para os meus
lobos que puxam o trenó que me conduz pela mata, noite adentro. Meus lobos não
são muito exigentes.
João da Luz se dirige à bancada de ferramentas bem organizada onde escolhe
a lâmina adequada para o serviço. Antes de começar a amolar o aço, em tom didático
explicou, apontando os baldes de azeite de oliva:
— As minhas lamparinas são um sucesso devido à estabilidade do combustível
que forneço. Se a gente usar somente azeite de oliva, o óleo verte pelas frestas da
lamparina e cai no chão. Por isso, comecei a misturar graxa bovina que sobrava de
um açougue, mas tive dificuldade de abastecimento. O gordo do açougueiro não quis
mais fornecer com exclusividade a matéria-prima para mim.
Os primeiros raios de sol que entravam pela janela tingiam de prata a barba
grisalha e espessa de João da Luz, enquanto ele amolava com capricho sua lâmina de
corte. Emoldurado pela névoa nauseante das instalações, João da Luz confere o fio do
cutelo, que brilhava tanto quanto seus olhos amendoados. Virando-se para a dupla,
conclui seu relato:
— O João Carneiro, o açougueiro, foi meu primeiro fornecedor desta ótima
matéria-prima.