Prólogo
Epílogo
Conto
Ainda estão lá, as moscas...
Olhos fixos no teto, brancas nuvens na cabeça. Acorda assim, todo santo dia.
Calcula que sejam centenas, milhares talvez. Certeza de algum animal jazendo no
forro. Franze o nariz, decidido a resolver o problema naquele mesmo dia, antes ainda
que despencasse o negrume do ocaso. Também recolheria o lixo, tarefa da qual
se dedicara a bem desempenha-la muito antes de tudo acontecer. Não obstante sua
memória pareça encurtada a cada dia, os cuidados devidos com a própria imagem
seguem ordenadamente, se estendendo a tudo o que há em sua volta.
Sucedeu que os filhos, o gato, o cachorro, todos se foram. Ficaram os dois,
apenas por um tempo até ela cismar de querer o divórcio. Agora está só, preso à
rotina. Mas longe de remexer nas feridas, trazer mais dor. Importa-lhe tão-somente
o agora, lembranças o ferem, no corpo e na alma. Segue, assim, tentando se refazer...
Uma espreguiçada e vai logo tomar seu banho, o primeiro de muitos. Adquiriu
a mania depois do ocorrido. Quando finalmente se convence de não mais haver
nenhuma sujeirinha incrustada, ensaboa-se mais uma vez a fim de garantir que eventuais
odores exalem de seus poros.
Enquanto passa o café, aguarda ansioso aquela que religiosamente vem penetrar
em seus mandos. O pequeno inseto chega pela fresta improvisada no canto
esquerdo da janela. Esse é bem-vindo, diferente daquele outro, bicho dos infernos...
Despretensiosamente, ela invade o espaço, ora pairando sobre os aromas do café, ora
circundando sua cabeça. Ele parece gostar, e se permite à bisbilhotagem. Talvez queira
deixar pistas com a amiga abelhuda. Um registro ainda que vago de suas facetas,
capturadas pelas lentes e antenas precisas de uma miúda arapuá.
Momentos depois, na pequena sala de estar, ele tenta se distrair com um
punhado de jornais velhos, mas cai no enfado. Precisa urgentemente ser inundado
daquelas brancas nuvens... E se entrega à azáfama dos quefazeres. Ultimamente, os
cuidados da casa tem sido a abstração perfeita contra os venenos do ócio, inibindo
até o mais prosaico pensamento. Logo o cheiro de lavanda se espalha pelos cômodos,
disfarçando o pesado ar que antes pairava sobre a antiga mobília, tornando o
ambiente mais leve, aconchegante e convidativo. Pena que ninguém mais o visite.
Nesse momento ele se lembra dos amigos... Desapareceram, todos, um a um. Havia
tempos que nenhuma viva alma transitava por ali.
Ao meio dia, novamente ele se vê na cozinha, é hora de preparar o almoço.
Meticuloso, faz tudo bem feito. Sabe que precisa se manter ocupado, ou eles chegam...
A distração o mantém incólume, impedindo os pensamentos de tomarem
formas.
O silêncio fatídico das horas é quebrado apenas pelo ranger de alguma porta
ou janela mal fechada aos açoites do vento. Ainda, o relógio cuco na parede, carecendo
de reparo ou corda, seguido de uns tiques, vez ou outra solta um grunhido
assombrador.
Monótona e repetitiva, a tarde surge decrépita. É quando ele sente mais forte
o sumo da pestilência raspando-lhe a garganta. A solidão não dá trégua até leva-lo a
uma tristeza sem precedentes. Começa com uma apatia, por volta das três da tarde,
e atinge seu ápice às seis, com a aproximação tênue da escuridão. A causa de tudo,
ele pensa, são os pensamentos. Desconfia ainda, que sejam eles a atrair todas aquelas
moscas. Quem sabe não devesse tomar uma atitude. Quem sabe não devesse quebrar
a rotina, buscar uma solução. Quem sabe... Só assim o deixariam em paz.
Após o jantar, agora mais calmo, ele segue com suas ações protocolares. E se
banha. E se veste. E se deita, por fim, fitando o teto. Absolutamente certo de que o
veneno surtiria efeito, ele sorri cerrando os olhos. Amanhã, será outro dia.
Ainda está lá, às moscas...