Prólogo
Epílogo
Conto
Sentado, sozinho, em uma mesa no canto da taverna, o jovem mantinha-se em silêncio com uma caneca de vinho élfico diante de si. O líquido permanecia intocado enquanto ele, com a expressão oculta nas sombras do capuz, apoiava a testa na mão. Estava com os olhos fechados e a face sonolenta, como se cochilasse na cadeira.
Ninguém, é claro, se importou com sua imobilidade. Não era incomum que a taverna recebesse viajantes exaustos que, depois de alguma boa bebida, dormissem onde encostassem. Seus pertences, no entanto, eram sempre responsabilidade da própria pessoa. Os funcionários tinham mais o que fazer do que vigiar algibeiras que pudessem sumir nas mãos de ladinos.
Um moleque, não aparentando mais que seus 15 anos, se esgueirou por entre as mesas na direção do dorminhoco. A garçonete mais próxima percebeu a movimentação suspeita e ficou de olho. O rapazinho sorriu, antecipando a presa fácil, e estendeu a mão nua para a sacola de couro no cinto do encapuzado. Quando seus dedos quase tocavam a algibeira, o forasteiro se moveu, parecendo acordar. Rapidamente o ladino se afastou e continuou caminhando o mais natural possível para não chamar atenção, praguejando internamente sua falta de sorte.
O jovem encapuzado ergueu a cabeça e olhou ao redor, com uma expressão aturdida. Assustou-se ao notar uma garçonete ao seu lado, com a bandeja erguida de forma ameaçadora; momentos antes ela estava pronta para acertar o ladrãozinho em cheio quando fosse roubar o cliente. Depois de se desculpar e explicar a situação, a jovem conseguiu acalmar o forasteiro. No entanto, pelo comportamento do rapaz, era possível ver que algo ainda estava errado.
— Como eu vim parar aqui? — perguntou de repente.
— Ora, o senhor não se lembra? — a mulher estranhou. Ao vê-lo negar com a cabeça, resolveu explicar: — O senhor chegou faz cerca de duas horas. Estava bem estranho, distante... como se estivesse com a cabeça no mundo da lua. Entrou, pediu a caneca de vinho, pagou e se sentou aí de cabeça baixa até agora.
O forasteiro abaixou o capuz e passou uma mão pelos cabelos ruivos e despenteados. Estava confuso; não fazia ideia de como chegara ali. A garçonete percebeu e tocou sutilmente no ombro dele.
— O senhor está bem? Quer que eu chame um curandeiro?
— Eu estou bem. Não me sinto mal, mas também não me lembro do que aconteceu...
— Sabe o seu próprio nome?
— Sim, isso eu sei... Sou Floriano, cavaleiro de Lincourt; descendente de uma longa linhagem de nobres cavaleiros. Eu ainda estou no reinado?
— Está — respondeu, olhando-o dos pés à cabeça —, mas receio lhe dizer que não parece um cavaleiro.
— Por quê?
— Bem, onde está sua armadura?
Floriano arregalou os olhos e fitou a si próprio. Não havia uma peça sequer do equipamento reluzente que tanto lhe dava orgulho; nem mesmo sua cota de malha, manoplas ou placas metálicas das botas. As roupas que vestia não eram as suas habituais; trajava um conjunto de vestes que o faziam parecer mais um pirata. Bem irônico para um reino que sequer tinha contato com o mar.
O rapaz tateou as vestes em busca de suas armas, mas só encontrou uma adaga no cinto, no lado oposto à bolsa cheia de moedas. Estranhamente, seu dinheiro estava intacto.
— Roubaram meu equipamento, minhas roupas e armas — falou nervoso.
A garçonete colocou a bandeja vazia debaixo do braço e olhou séria ao redor.
— Um momento — pediu, e se afastou.
Segundos depois, ela arrastou um rapazinho até ali, que se contorcia enquanto a mulher o puxava pela orelha.
— Ai, ai, ai! Já disse que não tenho nada a ver com ele, tia!
— É mesmo? E não estava tentando roubá-lo ainda há pouco?! — ralhou.
— Certo, ok, eu admito! Mas não é culpa minha se ele parecia um bocó fácil de roubar! — A garçonete torceu a orelha dele, e o moleque choramingou mais. — Eu não cheguei a roubá-lo, eu juro! Para, por favor, tá machucando!
A mulher o soltou, deixando-o massagear a orelha vermelha.
— O que sabe sobre o sumiço das coisas do senhor Floriano?
— Sei menos que você, moça. Quando eu cheguei, ele já estava sentado aqui com cara de trouxa. — Se encolheu quando a garçonete ameaçou dar um tapa nele.
— Some daqui, anda! Chispa! — ameaçou, tocando na bandeja. O ladrãozinho correu e sumiu porta afora. Depois que o moleque foi embora, ela se virou para encarar o cavaleiro sem armadura. — Desculpe, creio não poder te ajudar.
— Mesmo assim, obrigado por tentar — agradeceu, cabisbaixo, e levou a caneca de vinho aos lábios.
— Talvez eu possa fazer algo por você — uma voz masculina chamou a atenção do casal.
Diante deles estava um elfo de cabelo longo e loiro, com suas orelhas pontudas surgindo sob os fios. Tinha um sorriso simpático na face, mas os olhos brilhavam ávidos enquanto fitava o cavaleiro.
— E o que um menestrel pode fazer? — a garçonete zombou. — Acha que uma música iria animá-lo numa hora dessas?
O sorriso do bardo não esmoreceu, e, sem ser convidado, ele puxou uma cadeira para se sentar diante do forasteiro.
— Posso ser um músico, minha donzela, mas não sou tão inútil quanto pensa. Um menestrel tem que ter, além de um longo repertório de músicas, é claro, um vasto conhecimento de histórias. Talvez uma possa ajudá-lo.
— Tem certeza de que isso não é só uma desculpa para xeretar? — A garçonete o olhou, desconfiada.
— Pode ser que seja um pouco dos dois — admitiu, com um largo sorriso.
A mulher estava prestes a ralhar com ele, mas Floriano ergueu a mão, tomando a palavra.
— Tudo bem, moça. Veremos se o trovador sabe nos dizer alguma coisa.
A garçonete cruzou os braços, ainda olhando torto para o elfo, e se afastou.
— Eu tenho que trabalhar, mas, se precisar de mim, não hesite em me chamar — disse ao cavaleiro e apontou um dedo para o bardo. — Comporte-se, seu falastrão! — Depois, voltou ao trabalho.
O elfo apenas riu e voltou a atenção ao forasteiro.
— Tina é uma graça, não é? Pena que é tão estressada. Não sei por que me trata tão mal; sou eu quem traz clientes para eles com minha bela música.
Floriano tinha certeza que a mulher tinha algum motivo particular para ter desavenças com o bardo, mas não era problema dele e nem de seu interesse. Pigarreou para cortar o falatório do outro e focá-lo em seu problema.
— Ah, sim, claro. Desculpe, às vezes eu me perco tagarelando. — O elfo riu e se serviu da dose de hidromel que trouxera consigo. — Por que não começamos com o senhor contando a sua história?
— Prefiro saber seu nome primeiro.
O bardo estendeu a mão a ele.
— Heliandohan, mas pode me chamar apenas de Eli.
Floriano apertou a mão dele em cumprimento, e depois se recostou na cadeira com os braços cruzados.
— Vou lhe contar sobre a última coisa de que me lembro.
***
Eu fui designado a uma missão, apesar de não recordar qual era agora. Sei que era algo importante, pois fora requisitado pelo próprio duque. No mesmo dia, arrumei meus pertences, vesti minha armadura, montei meu alazão e parti. Apesar de estar claro que não deveria ser algo fácil, não encontrei nenhum perigo em minha jornada.
Cavalguei pelas estradas até chegar ao ponto em que deveria me desvencilhar e entrar na floresta. Decidi não o fazer durante a noite, então montei acampamento ao entardecer, ao lado da estrada. Tudo parecia tranquilo, e eu estava disposto e me manter acordado a noite toda, afinal, não queria ser surpreendido por um grupo de ladrões ou criaturas da mata.
Acho que em dado momento cochilei, pois minhas pálpebras ficaram muito pesadas. Quando finalmente consegui abrir os olhos, não estava mais no ponto anterior. Eu não via a estrada ou meu cavalo, mas tudo o que estava junto ao meu corpo permaneceu comigo. Aquilo só podia ser magia; algo ou alguém pregara uma peça em mim. Suspeitei que pudesse ser culpa das fadinhas travessas.
Desembainhei a espada e caminhei por entre as árvores, procurando algum detalhe que pudesse reconhecer minha localização, enquanto marcava os troncos fazendo talhos em suas cascas. Depois de mais de duas horas seguindo a posição da lua, me encontrei no mesmo ponto em que acordara. Sempre tive orgulho de meu senso de direção, então não era possível que estivesse andando em círculos. Naquele momento, tive certeza de que ainda tinha algum feitiço em mim, mas não fazia ideia de como desfazê-lo.
Sentei em uma raiz de árvore e, enquanto pensava em uma solução, decidi esperar o amanhecer, quando poderia enxergar melhor. Acho que fiquei durante horas ali parado, plantado no mesmo lugar, mas não havia traço algum de aurora no céu. Comecei a ficar nervoso. Não havia como a noite durar para sempre, certo?
Tentava manter minha sanidade e pensar logicamente quando uma luminosidade chamou minha atenção. Quando olhei, vi uma pequenina bola de fogo azul flutuando no ar a alguns metros de distância. Nunca havia visto um fogo-fátuo na vida, mas já ouvira lendas a respeito, tanto boas quanto ruins. A esfera ardente saltitou para longe e depois subiu e desceu três vezes no mesmo lugar, chamando minha atenção. Deveria confiar naquela coisa? Será que me levaria a alguma armadilha? Como não tinha solução melhor, decidi segui-lo. Nunca fui um covarde e estava preparado para o que pudesse encontrar. Segurei firme em minha arma e segui adiante.
Creio que, cerca de mais de um quilômetro depois seguindo tortuosamente por entre as árvores, outros fogos-fátuos começaram a surgir, dançando por entre as raízes e galhos. Devo admitir que foi um lindo espetáculo. Ao menos até a paisagem mudar.
O terreno tornou-se pantanoso e as árvores, antes vívidas, foram substituídas por versões retorcidas de galhos nus. Ignorando o cheiro podre da água lodosa, olhei adiante e vi uma casa de aspecto antigo, com partes caindo aos pedaços. Acreditaria estar abandonada, não fosse a luz fraca que brilhava através da janela de um quarto do segundo andar. Os fogos-fátuos pararam a alguns metros de distância, como se seu dever fosse me guiar somente até ali, e depois desapareceram.
Quem quer que estivesse me pregando peças provavelmente estaria lá dentro. Chapinhei até a entrada e abri a porta com cuidado, evitando em vão fazer ruídos, pois a porta emitiu um alto rangido quando a empurrei. O interior da construção estava um completo breu, e eu não tinha nenhuma tocha para acender. De repente, a porta se fechou diante de mim e...
***
Floriano se calou, deixando o elfo na expectativa.
— E então o quê?
O cavaleiro negou com a cabeça.
— Não me lembro de mais nada. A próxima lembrança é a de acordar aqui.
Eli se recostou na cadeira e cruzou os braços, fechando os olhos com uma expressão pensativa. Floriano o aguardou em silêncio, esperando que falasse algo, mas o bardo permaneceu calado durante um longo momento. O cavaleiro teve a impressão de que o fazia de propósito, apenas para criar maior expectativa e dar mais impacto em suas próximas palavras.
Floriano estava prestes a interromper o momento de reflexão do elfo, quando Tina surgiu e acertou a cabeça do bardo, usando a bandeja vazia.
— Pare de drama e fale logo; seu teatro não vai ajudá-lo! — ralhou impaciente. Enquanto servia as mesas, a garçonete ouvira parte da história narrada pelo cavaleiro.
Eli resmungou, massageando a cabeça, e olhou torto para mulher. Pigarreou e tornou a encarar o forasteiro.
— Não tenho dúvidas. Isso é obra da banshee.
— Banshee? — Floriano perguntou. Aquele nome lhe era familiar. — O que é isso?
— É uma fada sombria. Dizem que existe uma vivendo na floresta ao leste daqui. Algumas pessoas disseram ver uma mulher chorosa enquanto passavam pela estrada, mas tiveram medo de se aproximar dela por causa da lenda...
— Lenda?
— Sim, é uma lenda local. Mas creio que a senhorita possa lhe explicar melhor do que eu. — Piscou para a garçonete. A mulher o ignorou.
Tina olhou ao redor e, como o movimento estava mais tranquilo, puxou uma cadeira e sentou-se junto a eles.
— Algumas histórias contam que, há muito tempo, uma jovem druida vivia nos confins da floresta. Ela não tinha muito contato com as pessoas, mas as criaturas de lá a adoravam. Um dia, um lenhador se perdeu graças às brincadeiras de mau gosto dos duendes e acabou encontrando o casebre dela. Os dois se apaixonaram à primeira vista. Depois disso, o homem passou a visitá-la diariamente até decidir morar com ela no meio da floresta. Ainda assim, toda a semana ele trazia lenha para vender no vilarejo, comprava algumas coisas e sumia até a próxima semana. Até que, depois de um tempo, ele nunca mais veio. Alguns dizem que o lenhador foi atacado por algum animal faminto e morreu. A druida ficou tão abalada com a morte do companheiro que morreu de tristeza, mas, em vez de seu espírito seguir para o além, tornou-se uma banshee e ficou presa na floresta, onde passaria a eternidade se lamentando sobre o corpo de seu amado...
— Eu não poderia contar melhor — o elfo a elogiou.
— Então... Você acha que foi ela quem fez isso comigo? Por qual motivo ela me atrairia até a floresta só para me roubar e me mandar de volta?
— Isso eu não sei dizer. — O elfo deu de ombros. — Só vai descobrir se voltar até lá e perguntar a ela.
— Está maluco?! — Tina exclamou alto, chamando a atenção de alguns bêbados na mesa ao lado. — Acha que ele teria alguma chance contra ela se fosse até lá sem nenhum equipamento?!
— Ele já não foi até lá todo equipado e perdeu de qualquer forma? — perguntou, e teve que se esquivar dos tapas da garçonete.
— Não, ele tem razão — Floriano disse, pensativo. — Eu não sei o que aconteceu, mas está óbvio que eu perdi para ela... Mas, se voltei vivo, então acho que tenho uma chance de sobreviver se voltar até lá.
— Tem certeza? — Tina parou de bater no bardo. — Pode ser perigoso...
— Sim, eu sei — o cavaleiro respondeu, solene. — Mas eu preciso saber o que aconteceu... Além disso, não posso voltar sem cumprir minha missão, seja lá qual ela for... Preciso recuperar minha memória e honra.
— Isso é um cavaleiro de verdade! — Eli bateu com as mãos na mesa, empolgado. — Se você voltar, passe aqui e nos conte o que aconteceu. Senão, farei uma balada em homenagem à sua memória.
— Heliandohan! Eu juro que vou pedir ao dono para te banir daqui! — gritou com o elfo, que tratou de sair correndo antes que a mulher resolvesse quebrar uma das cadeiras em cima dele.
Floriano deu um leve sorriso enquanto via os dois brigando. Decidiu terminar a segunda caneca de vinho, e depois alugou um quarto para descansar naquela noite. Retornaria à floresta no dia seguinte. Apesar de estar intrigado e um tanto receoso, também sentia certa ansiedade ao pensar no que estava por vir.
Alguma parte oculta em seu íntimo desejava reencontrar a banshee.
***
Tudo parecia igual à vez anterior... Mas, ao mesmo tempo, diferente. Talvez porque já soubesse o que esperar. Floriano adentrou a floresta e, depois de um tempo, seus olhos pesaram e ele se deixou adormecer. Quando acordou, havia um céu estrelado sobre sua cabeça e estava no meio das árvores frondosas. Ao invés de andar sem rumo novamente, sentou-se e decidiu ficar ali esperando até que o fogo-fátuo surgisse.
Demorou pouco mais de uma hora até que a esfera flamejante brotasse perto de si e o atraísse para o caminho correto. O cavaleiro não hesitou em segui-la desta vez. Enquanto andava guiado pela bola de chamas azuis, olhava ao redor com maior atenção. Ficou encantado com todos os detalhes que viu, assim como as dezenas de pequenos olhos curiosos que espreitavam nos buracos e tocas nas árvores. Sentia como se um véu fosse retirado de seus olhos e agora pudesse enxergar a beleza da floresta.
Mesmo o pântano não parecia tão ruim assim. O cheiro da água lodosa ainda era desagradável, mas não insuportável. As árvores retorcidas lhe davam calafrios, mas não eram completamente mortas; pequenos cupins corroíam o interior da madeira apodrecida, e dezenas de vaga-lumes pousavam nos troncos e galhos desfolhados. Havia uma beleza singular no lugar.
A casa, no entanto, continuava a precisar de muitos cuidados. Como na vez anterior, os fogos-fátuos só acompanharam até perto da residência e desapareceram. E a luz estava acesa fracamente no mesmo quarto. Floriano estava pronto para o que vinha a seguir. Sabendo que estava sendo aguardado, não temeu fazer barulho ao abrir a porta. Ironicamente, a entrada não rangeu desta vez.
Ao contrário do que se lembrava, agora não havia mais uma escuridão sólida diante de si. Conseguia ver os detalhes do interior, iluminados parcamente pela luz do luar que entrava pela porta e janelas. Não havia, no entanto, sinais de outra pessoa naquele andar.
— Cavaleiro — ouviu uma voz baixa e feminina —, venha até mim...
Floriano se arrepiou, mas não sabia dizer exatamente o motivo do arrepio, pois se surpreendeu ao notar que não sentia medo. Demorou algum tempo para identificar de onde viera a voz. A mulher chamara-o do andar superior.
Com cuidado, o cavaleiro sem armadura subiu as escadas lentamente. Os degraus podres não eram confiáveis; não podia arriscar sofrer um acidente naquele lugar ermo e desconhecido. Assim que chegou ao topo, adentrou o corredor. Havia alguns quartos, alguns trancados e outros com as portas destruídas, mas apenas de um deles saía um fraco feixe de luz. O homem caminhou até lá.
A porta estava aberta e tinha um aspecto mais conservado que as demais. O interior do quarto era simples, com uma velha cama de casal, um armário comido por traças e uma pequena cômoda de cabeceira. Sobre o último móvel, repousava uma pequena luminária com uma vela quase no fim. Do lado oposto ficava a janela e, diante dela, estava sentada uma mulher. De costas para o forasteiro, tudo o que ele conseguia ver dela eram seus longos cabelos negros que desciam por suas costas e quase tocavam o chão.
Floriano parou na entrada e bateu na porta com os nós dos dedos, anunciando sua chegada. A mulher permaneceu impassível.
— Estava esperando por você — ela disse suavemente.
— Já nos encontramos antes — o cavaleiro afirmou. — Mas não me lembro da senhorita.
— É claro que não... Eu quis assim.
— Então... foi você quem apagou as minhas memórias?
A mulher respondeu após um breve tempo em silêncio:
— Sim...
— Por quê?
Ela se calou novamente, mas Floriano respeitou sua reserva até que ela quisesse falar outra vez.
— Promete me ouvir sem me atacar desta vez?
O cavaleiro estranhou a pergunta, mas concordou com a cabeça.
— Sim.
A mulher respirou fundo e relatou:
— Você veio aqui na noite anterior. Pelo que me falou e o que vi em suas memórias, sua missão era investigar a misteriosa “dama da estrada”. Seu duque não queria rumores de lugares assombrados em suas terras e o mandou para resolver este problema... que sou eu. Tentou me atacar na noite anterior, por isso precisei imobilizá-lo e desarmá-lo.
Floriano ficou preocupado por ter sido neutralizado com tamanha facilidade, mas tentou não demonstrar isso.
— Onde estão minhas coisas?
— As pixies estão cuidando do seu cavalo. Sua armadura e outros pertences estão no quarto ao lado... Pegue-os e vá, se quiser.
O cavaleiro sabia que deveria sair dali o mais rápido possível, mas, depois do que ouvira sobre ela, não podia conter a curiosidade.
— Você é mesmo uma banshee? Ouvi uma história sobre você na taverna.
Ela deu um riso amargo.
— Não acredite em tudo o que te dizem.
— Por quê?
— Já ouvi a versão difundida pelos menestréis. Não é a real.
— Então, por que não me conta a verdade?
A mulher aparentou surpresa por um momento, como se ninguém nunca houvesse lhe feito aquela pergunta. Floriano se surpreendeu quando ela levantou da cadeira e virou de frente para ele. O homem perdeu o fôlego ao fitá-la.
A banshee era linda. Apesar da pele pálida e cinzenta e do cabelo parcialmente desgrenhado, seu corpo tinha as curvas de um corpo jovem e os traços de sua face eram suaves. Mas o que mais lhe chamava a atenção eram os olhos cinzentos e brilhantes como prata líquida. O coração no peito do cavaleiro bateu mais forte, e ele não soube como reagir.
Ela virou a cadeira para o lado e apontou para a cama, convidando-o a se acomodar. Sentaram-se de frente para o outro, e a mulher narrou sua história.
***
Assim como diz a lenda, eu fui uma druida que viveu há muito tempo no interior desta floresta. Sempre vivi apenas com os animais e outros seres daqui, então não sabia como eram outros humanos. Nunca me importei em conhecer outros como eu, pois era feliz com minha vida.
Até o dia que minha paz foi perturbada pela vinda dele. Meu ex-companheiro era alto, robusto e muito belo. Apesar de nunca ter visto outro humano, senti-me atraída por ele no primeiro olhar, e ele por mim. As pixies me ensinaram a linguagem humana, então pude me comunicar com ele e conversamos por horas. Quando o anoitecer chegou, ele teve de ir, mas não sem a promessa de retornar em breve.
Supliquei para que as criaturas da floresta não pregassem peças no lenhador e para que o guiassem até aqui sempre que quisesse me ver. Depois de certa insistência, elas concordaram para me agradar.
Aqueles eram dias felizes. Ele vinha me visitar quase todos os dias e, conforme nos tornamos mais íntimos, passamos a nos relacionar. Foi meu ex-companheiro quem construiu esta casa para que pudéssemos viver juntos, e ele veio para ficar comigo. Eu era inocente e acreditei que nosso amor duraria para sempre.
Uma vez por semana ele saía e levava lenha para o vilarejo. No entanto, depois de alguns meses, passou a demorar mais que o normal, voltando às vezes em dois ou três dias. Quando o questionei sobre o motivo, disse-me que havia guardas atrás dele, então tinha que tomar cuidado para não ser visto.
Em uma de nossas conversas, ele me contara que viera de uma terra distante, pelo mar, e aportara no país vizinho. Seu navio era de piratas, então, para não ser preso pelas autoridades, fugira junto de outros companheiros e se escondera aqui, onde passou a atuar como lenhador. Devido a esta história, eu acreditei em sua mentira.
Foi quando ele desapareceu de vez. Esperei durante longos dias, mas meu ex-companheiro nunca mais voltou. Indaguei às criaturas da floresta sobre informações dele, mas todas se esquivavam de minhas perguntas, como se não quisessem respondê-las. Decidi então procurar respostas à minha maneira. Esperei a lua cheia e realizei um feitiço para que as águas do lago me mostrassem o seu paradeiro. Naquele momento, descobri que não havia morrido, como os bardos dizem; ele me trocara por outra mulher e fora embora com ela.
Meu coração se partiu em mil pedaços. Eu não sabia como lidar com a traição e nem com o amor que ainda sentia por ele. Isolei-me nesta casa e parei de sair e de comer. Definhei pouco a pouco até o dia de minha morte. Meus sentimentos, no entanto, foram minha maldição. Meu espírito nunca pôde seguir adiante; tornei-me uma banshee, condenada a viver para sempre nessas terras, vítima de meu próprio coração partido.
***
A história real era muito mais trágica, Floriano pensou. Sentia pena dela, pois a dor da pobre moça continuava visível mesmo após tanto tempo. Olhou as roupas com que ela o vestira na noite anterior e entendeu porque aparecera com trajes tão estranhos naquela taverna. Certamente pertenceram ao safado do ex-companheiro.
— Entende? Eu não quero fazer mal a ninguém... Só estou presa aqui junto a meus lamentos.
O cavaleiro entendia e, conforme ela lhe contara sobre a noite anterior, as memórias lentamente voltaram, esclarecendo o ocorrido até o ponto onde fora nocauteado. Também entendia que ela o enfeitiçara para retornar em segurança até o vilarejo, mas um pequeno detalhe ainda o deixava com uma pulga atrás da orelha.
— Eu compreendo sua situação, mas algo ainda me intriga... Por que me devolveu à vila com essas vestes e ficou com meus pertences e meu cavalo?
A mulher abaixou o olhar e seu rosto enrubesceu enquanto fitava o chão.
— Você... é muito parecido fisicamente com ele... Eu... É vergonhoso, mas eu queria um motivo para que voltasse aqui e eu pudesse vê-lo mais uma vez...
Floriano sentiu seu coração acelerar de novo e o rosto enrubescer como o dela. Aquela era uma resposta que ele não esperava. Coçou a cabeça e respirou fundo enquanto a observava. A mulher notou o olhar sobre si e tornou a erguer a face, encarando-o nos olhos. Fitaram-se por um longo momento em silêncio, até que o cavaleiro tomou uma decisão. Era um sentimento ridículo e sem fundamento, mas sentia-se responsável por ela, talvez devido à similaridade física com o homem que lhe fizera tanto mal. Além disso, um cavaleiro de verdade não poderia virar as costas para uma donzela que precisasse de sua ajuda.
O jovem se levantou e foi até a mulher, parando a um passo de distância. Ergueu a mão e acariciou o rosto dela, surpreendendo-se ao sentir a pele morna.
— O que posso fazer para ajudá-la? Como posso libertá-la de sua maldição?
A banshee se levantou devagar e segurou a mão dele sobre seu rosto, fechando os olhos para sentir melhor o toque suave. Havia muito tempo não sabia o que era um carinho.
— Há uma forma...
— Diga-me. Farei tudo o que puder.
Ela tornou a abrir os olhos e o fitou intensamente.
— Estarei livre se puder curar o meu coração partido...
O coração de Floriano bateu forte dentro do peito.
— E como o curaria?
— Com um novo amor.
O cavaleiro encarou-a longamente nos olhos e assustou-se com a facilidade com que tomara sua decisão. Mesmo se quisesse, não poderia ignorá-la. Talvez ela o houvesse enfeitiçado e ele ficasse preso ali, para sempre com ela, mas não voltaria atrás em sua conduta.
Floriano inclinou-se para a frente e beijou os lábios dela.
***
A Taverna Bode Mágico estava lotada e agitada naquela noite. Tina levava bandejas de uma mesa para outra, servindo os clientes, enquanto Eli tocava seu bandolim e cantava para animar o público. Quando a música terminou, um viajante na mesa mais próxima pediu:
— Cante uma nova balada para nós, elfo!
O público se juntou à pedida, e Eli sorriu para os presentes enquanto preparava o instrumento musical.
— Já ouviram a história de um cavaleiro que salvou uma banshee?