Prólogo
Epílogo
Conto
Amaldiçoada seja — Ele pensou.
E ela entrou pela sala. Afobada, nervosa, com os saltos das botas negras fazendo
barulho no assoalho. Os seios ainda muito duros e róseos, camuflados sob a blusa
de renda preta, emprestavam-lhe mais e mais juventude. Raivosa, neurótica, ruim
de coração. Mas perfeita. Um sonho de se olhar e de se viciar de todo jeito. Pernas
brancas como papel, e duras como um iceberg: ela.
Gelo. Poderia ser seu sobrenome. O que lhe inundava as veias, a cor de sua
alma, o líquido sem o calor de seu sangue. Mas a pele muito alva, revelava presença
de glóbulos vermelhos, no ruborizar de sua face. E apenas isso. Nada mais atestava
vida naquela mulher odienta. Ele pensava assim. Ele.
Colocou o casaco e a bolsa sobre a poltrona, e sentou-se arreganhando as
pernas em posição de parto. Apenas para provocá-lo. Para incendiá-lo; ou criar umas
brasinhas em seu corpo destruído. Acendeu um cigarro e pôs-se a encarar. Com
aquele risinho nojento, falso, miserável, crápula. Com a desfaçatez dos canalhas. Sorria
com os olhos lânguidos, as pernas abertas, a calça de couro, o cigarro dentre os
lábios. A juventude agressiva e não contagiante. Não contaminante. Juventude cruel
dos que a possuem, majestosamente. E, com a voz rouca de garganta cheia de nicotina
— o que lhe emprestava uma sonoridade sensual e mordaz— iniciou a melodia
de sua fala.
— Vejo que ainda não morreu.
‘’Vejo que não morreu’’... Era a forma dela ofertar boa noite. Diariamente, ao
chegar do trabalho, encontrava-o assim: sentado na sala, perto da lareira e olhando
para o teto, ou para o vago. Regozijando-se com sua autocrucificação. Um Jesus ensanguentado
e vítima de um mundo pérfido e intragável. Diferente disso, eram os
dias em que bebia garrafas de vodca, a cair e ficar desmaiado por horas sobre o tapete.
Era encontrado assim, pela manhã: jogado como uma folha de jornal amarrotada,
ensopada de álcool. A empregada o tentava acordar e chamava o jardineiro para carregá-
lo até a cama; e ainda se sentia o aroma do perfume vaporizado por toda a casa
— rastro que a perversa deixava ao sair para o trabalho, em direção à luz da manhã
— o largando, desfalecido, ali mesmo. E os dias sórdidos eram assim.
— Não morri não. Ainda não — Ele respondeu com a voz trêmula, mas
agressiva.
E, com a mesma dificuldade de sempre, empurrou a cadeira de rodas para
perto dela. Ele poderia ter uma cadeira automatizada, cara, de última geração, mas
não queria; ia empurrando-se, se arrastando pelas paredes todas já arranhadas, já
imundas, indo aproximando-se e, quanto mais se aproximava, mais enxergava aqueles
dois faróis azuis que eram os olhos dela: debeladores, lascivos, vis. Os donos da
alma dele. A excitação pungente de sua vida, de suas noites, de seus pesadelos. O
olhar de escárnio da beleza infinita da — ainda — juventude constelada dela.
Ao sentir a aproximação da cadeira de rodas, ela levantou-se e foi até a janela.
De soslaio, observou o vulto daquele homem já velho, parado no meio da sala, com
as pernas esmirradas como gravetos, e um cobertor no colo. Chinelos nos pés, olhos
fundos esbugalhados. Corroídos. Inchados. Aquela visão do inferno. Vê-lo ali, sem o
bater da vida, sem a alegria dos melhores momentos, era repulsivo. Ela era tão mais
jovem do que ele, e detinha o direito ao frescor dos novos sonhos. Dona do poder de
existir, e de sugar o sopro da vida. Ele, não mais. Não queria. Não suportava.
Casara-se com ela, no broto dos dezenove anos da quase menina. E ele, já
passava, e muito, da casa dos quarenta. Para ela, uma paixão de moça diante da sabedoria
e da maturidade do professor da faculdade. Para ele, o fascínio do corpo e
da tez, da propriedade da pele. O sexo súbito e incontrolável, os gozos espetaculares
e os sussurros de uma voz quase infantil, dotada de meiguice ainda não poluída.
Como uma pulverização de eucaliptos, adentrando as masmorras das grandes bibliotecas
empoeiradas e escuras, onde ele vivia enterrado: estudando, pesquisando,
aprofundando-se, sofrendo das angústias perversas do saber. Tornando-se, homeopaticamente,
gordo e velho. Fumando e bebendo, para suprir o que a alta filosofia
não fazia por ele, não o convencia, muito menos, o curava. E, sem fé, perdia todos
os rumos. O prazer e a nobreza da dor sempre o acompanharam. A dor, para ele, era
destino certeiro dos grandes sabedores confinados em suas solidões, por deterem a
amplitude da mente. O mundo banal jamais o interessou. E ela, apenas aprendiz. Ela,
tenra. Ela, com bicos do seio rosa-bebê. Ela, solar. Casaram-se na praia — por desejo
dela — sempre natural e leve que era. E continuava sendo. Ele reclamou do início ao
fim. Da areia, do sol, do calor, do vento. Do excesso de amor e de alegrias. De tudo.
Apagou o cigarro no vidro da janela. De costas, ainda. Ele, imóvel na cadeira,
olhava para os pés magérrimos dentro das meias. Mortos. Mórbidos e cadavéricos.
Havia uma grande beleza quase Cristiana naquela visão — ele pensava.
Foi quando, de repente, seus olhos foram atraídos para uma estatueta de
bronze sobre a cantoneira, e ele foi tomado por um desejo incontrolável de esmagar a
cabeça dela. Poder ver o sangue jorrar e inundar o tapete onde ele dormia em prantos
— e bêbado, no seu desespero — sem que ela se condoesse. Sem que se aliasse ao seu
pacto implacável com a melancolia profunda. Mulher fútil e banal. Não compreendia.
Não tinha alcance. Vazia. Sua jornada era talhada por caminhos pequenos, com
destinos óbvios e superficiais — Mentalizada ele, diariamente.
Queria para ela uma morte medonha e brutal; de preferência, que desfigurasse
seu rosto impávido de porcelana. E aquele riso que não parava de rir. Riso dos
rasos, dos comuns, dos que não conhecem o quanto viver é implacável. Que o azul
incomparável de seus maquiavélicos magníficos olhos se tornasse nulo, pela cegueira.
Que sua juventude derretesse. A estátua nem resolvia tanto.
Ela não o olhava, mas sentia o calor do corpo dele, a alguns metros. E lembrava-
se de como amava a sua inteligência. Do tanto que havia aprendido com tudo
o que ele falava. O que ele contava, e o que ensinava. As horas sobre a cama, onde
ela era apenas uma bonequinha estúpida com sexo pulsante de mulher e, ainda, com
uma pureza interior que ele sabia capturar e desbravar. Lembrava-se dos significados
que encontrou para a vida, depois que o conheceu. Do nada que sabia, e de tudo que
aprendera, em todos os dias ao lado daquele homem.
E lágrimas quentes se represavam em seus olhos, prontas a explodir. Uma
vontade imensa de chorar, de cair, de se jogar. Vontade de se guardar no colo dele,
como um feto desnutrido, ou uma planta implorando rega, e sentir o perfume cítrico
do início que não existia mais. Pois ele recusava-se a tomar banho, e permanecia
muitos dias com a mesma roupa. Deleitava-se com aquele sofrimento, e com aquele
desterro de tudo.
Contendo o choro, foi até a janela olhar a noite seca lá fora. Desejo que ele a
tomasse nos braços e que a amasse com furor. Que dissesse que a amava. Que a beijasse
como antes. Que pedisse ajuda. Ela não lhe daria sua pena, nem sua compaixão.
Jamais. Mas abriria os braços para acalentá-lo: não como a um bebê, mas como a um
homem profundamente amado.
Então, respirou bem fundo — na intenção de confessar sua dor — pelo fim
do amor deles, e do amor dele por ele mesmo. Linda, nevada, e com a turquesa dos
olhos inigualáveis inundados de lágrimas, virou-se para ele...pois, pungente, era o
seu amor imortal, trancado e abatido no peito. Sentia tudo. Sorria docemente, resignadamente,
mas com o rosto encharcado. A estatueta de bronze permanecia no
lugar, mas a gaveta onde ele guardava a arma, estava perto.
Enquanto ela fumava na janela, ele foi-se empurrando na cadeira, até a cômoda.
Pegou a arma que estava carregada com uma única bala, e escondeu-a sob o
cobertor que aquecia suas pernas mortas — avistando, na semipenumbra, aquela
mulher belíssima com os cabelos escorridos até a cintura. De costas para o tiro certeiro.
Preparada para — finalmente — conhecer a morte da vida. Ele foi até ela e
engatilhou a mira, com a mão trêmula, pingando suor frio.
O tiro foi certeiro. E ela caiu; mas com os olhos ainda moços, ainda ingênuos
— abertos e arregalados — o fitando. Os olhos vivazes, ainda não estavam mortos.
Ele alcançou a garrafa de uísque e o isqueiro dela. Acendeu uma única vez.
E, finalmente tornou negros, os olhos mais azuis que conheceu na vida.
Regozijou-se e embebedou-se, até o despertar de um lindo céu turquesa de
verão...
Que ele, não viu.