Prólogo
Epílogo
Conto
Como consolo, o marido abandonado metia o filho atrás da porta sempre
que a mágoa se convertia em rancor, atribuindo à figura do garoto a herança viva
de um acinte, de uma vergonha difícil de purgar. Daí a reincidência do mesmo castigo,
nunca satisfeita e logo convertida em hábito. Apesar do aparente despropósito,
tal metodologia de castigo se nutre de uma racionalidade muito arraigada em
famílias partidas, as quais recorrem a ela após as ingênuas ambições matrimoniais
se desencantarem, para então instalar-se em seu lugar hábitos atenuantes, fábulas
compensativas gestadas no sádico: é a razão, em uma palavra, que retorna para socorrer
o humilhado mediante sucedâneos perversos, indispensáveis para o socorro
de um total esmagamento. Numa formulação direta: é preciso eleger um causador
para convertê-lo em algo ainda menor que a si mesmo, e com isso conformar-se.
Sim, o menino lançado atrás da porta por oito horas diárias, bem cronometradas, isto
é, calculadamente prescritas segundo os limites fisiológicos, muitas vezes acrescidos
de crueldades eventuais – como a compressão da porta ou o ininterrupto palavrório
catártico a impregnar no menino expiatório uma conscientização desabonada de sua
existência – nada mais era que o presságio de uma loucura, advinda da mágoa, que o
marido abandonado apressava-se em objetivar no filho, purgando-a em coisa concreta.
E isso tudo, feito hábito.
Todavia, por mais irônico que possa parecer, o hábito atenuou a tragédia do
menino.
A realidade cotidiana do garoto era aquela porta dura a lhe roçar os ombros,
eventualmente a lhe ferir os ombros, sem que com isso pudesse atinar para a face
sádica de seu destino. Só entendia o que via, pois sequer os conceitos sonoros, proferidos
pelo pai, lhe eram acessíveis; e a tenra criatura via tão somente a obscuridade
geral de seu espaço, além de uma pequena fresta luminosa, o desvão das dobradiças,
a quina de um universo oferecido com parcimônia, fenda milimétrica onde se lhe
abria a alteridade do mundo, isto é: uma fresta de milímetros era o que lhe facultava
o mundo por horas a fio, e pela qual atravessava fenômenos alegóricos, lúdicos, que
abasteciam sua estreita vida - apesar das locuções iracundas do pai:
— Tá gostando do inferninho? Aí você não me dá vergonha, é o único lugar
do mundo onde você não pode me dar vergonha! Ninguém pode ver seu jeito de
bichinha aí atrás. Se deixo você brincar na rua, no outro dia tá todo mundo falando,
tá todo mundo querendo te comer. Porque você é a cara da sua mãe, jeitinho de rameira.
Vai ficar no inferno, pro papai não ter vergonha de você.
O homem, amiúde presa de uma epifania vocabular, transgredia o tom até
degenerar num cinismo surdo:
— Não está ouvindo? Alô, alô, tá acordado aí atrás? - E ia empurrando a
porta, espremendo os dedinhos entre a quina da porta até arrancar um grunhido
acusatório.
Talvez, para caracterizarmos com precisão tudo o que a quina representou
na vida do garoto, sobretudo devido a um pequeno incidente relacionado ao último
ato narrado sobre o pai - o de empurrar a porta até arrancar um grunhido - seja necessário
atentar para um gênero de impressões que o menino recolhera do mundo
até aquele momento, para que o incidente possa revelar seu fundamental salto qualitativo.
Com efeito, o resultado de ser em circunstâncias tão singulares se refletiu
sobretudo no inchaço de seus pezinhos, fruto do castigo corriqueiro que ele sequer
discernia enquanto tal; um inchaço que alterava não só suas formas anatômicas, mas
que incutia uma estranha sensação de amortecimento a lhe cindir, precocemente, a
noção de unidade. Sim, não estava sozinho no próprio corpo, e a periódica descarga
de urina e fezes lhe corroboravam a impressão de ser pária na própria carne, animal
passível de obediência e confraternização estrangeira na própria intimidade – o que
de certo modo naturalizava as crueldades do pai. Foi quando a quina se dobrou sobre
os dedinhos do menino, de acordo com os empurrões paternos, e um novo elemento
jorrou de dentro para fora, intrigando seu hospedeiro até às raias da fascinação.
Pois esta substância rubra, minada de um recanto obscuro de seu próprio ser,
só poderia referir-se àquele inferno tão reiterado pelo pai, justificando o discurso do
progenitor por meio da evidência concreta de seu sangue, doce, quente, colorido,
feliz, no qual, aprendera, deveria estar. Aquele estranho fenômeno interno, aquela
assunção viscosa recebeu da intelecção do garoto uma significação característica, e
que nada mais é do que o produto da imaginação de uma criança castrada de suas sãs
potencialidades, e que se curva à cata de um substrato possível, substituto, atenuante.
Com os dedinhos sanguinolentos, de pé atrás da porta escura, o garoto descobriu
ao examinar a singularidade daquela substância outra qualidade, uma genuína
qualidade infernal, e através dela, com a ponta dos dedos doloridos, começou a criar
formas gratuitas na madeira da porta fechada sobre si, doando ao mundo toda a irracionalidade
que recolhera de sua modesta abertura, grafando linhas de sangue ovais,
ora retilíneas, ora curvas, ora serpenteadas, sequência de signos surgida em alguém
desde cedo depositária de loucura e ressentimento. Descobria, por assim dizer, uma
espécie de gratificação fáustica na textura do sangue, onde a alegria e o sofrimento, o
céu e o inferno, dão as mãos em único ser simbólico, enquanto o mundo do lado de
fora brada e oprime:
— Sua mãe também não saía do inferninho, passava a noite à espera de pinto
lá! Rameira! É o patrão que vem hoje? Ou o rapaz do corsinha? Como tá aí atrás,
hein? Hein? Hein? Tá gostoso? Olha homem passando pela porta, deixa passaaaar,
deixa passaaaaaar...
Então o homem ulcerado empurra a porta como se levantasse uma bola de
vôlei, com calculado comedimento, espalmando as duas mãos, torcendo os punhos; e
em consequência a quina estreita-se seguidamente, espremendo o pequeno amálgama
de carne, artérias e ossos, membros autônomos de um menino que grunhi. Mas
é um grunhido resignado, porque seu mundo é assim mesmo, sempre o fora desde
que a sua consciência despontara em plena crise conjugal. Por isso a curiosidade do
menino mantem-se alheia à dor; apesar do esfolamento reiterado, seus olhos lacrimosos
se encantam com as imagens miraculosas que atravessam a pequena fresta
de luz, a projetar nos olhinhos úmidos imprecisas fantasmagorias de ofuscamento,
bruxulear dourado, vermelho, prateado, e que o menino atribui a uma espécie de epifania
mágica saída do sangramento de seus dedos, que latejam, adormecem e dotam
seu sombrio perímetro de novas formas simbólicas, não obstante a falta de conceitos
capazes de definir aqueles rabiscos em sangue, pois eram tão somente vestígios de
uma sobrevivência que se debate.
A propósito de tais fantasmagorias visuais, acrescente-se a aliança das demais
cisões de seu corpo, como por exemplo o estômago enfraquecido que ruge uma linguagem
assemelhada aos momentos mais coléricos do pai, e que por isso deve significar
a proximidade do inferno; ou também a completa insensibilidade de seus pezinhos,
dois glóbulos inchados a ampararem uma miríade de seres vivos, como castiçal
de vela talhada: e a cera que escorre, quente, acalentando o fascínio do menino que
se percebe tão estrangeiro quanto nunca, tanto dentro quanto fora de seu corpo.
Em essência, trata-se do processo de naturalização de uma vida anômala, exilada em
singular subterrâneo na qual fora forçado a se criar, e cujos valores daí derivados se
articulam conforme o ritmo dos passos incessantes do pai pela casa, percussão sincopada
que provoca uma espécie de arrebatamento ditirâmbico na consciência crua
do garotinho, enfeitiçando-o, hipnotizando-o enquanto o cansaço de suas pernas
e a perda de sangue, a dor de suas mãozinhas e o paradoxal encantamento em seus
olhos se sobressaem às parcas energias do organismo infantil, facetas antagônicas
de um impossível jogo compensatório. Desacorda, pois, embalado em alucinações
etéreas, sem, contudo, enxergar a mágica derradeira de seu sangue respingado pelo
chão mesclar-se à urina, união das duas faces de um menino só, embora ele se compreendesse
como muitos.
Do lado de fora, o pai que retorna do portão interrompe seus passos na proximidade
da mesa, onde deposita a carta precatória que, ele intui, contém o desfecho
de seu drama familiar. Desdobra o conteúdo com o cuidado que uma má premonição
engendra, transpassado de mágoa, saudade que não se quer entregar como tal e que
ele a todo instante tenta sufocar, por conceber o sofrimento amoroso como fraqueza,
vulnerabilidade idêntica ao do filho, não menos reprimido.
Tribunal do Estado de...
Vara da Família...
Partes: Maria de Loudes dos...
A cada linha transcorrida, a mágoa parecia ganhar força, encharcando seus
olhos e oprimindo seu coração, vítima de um vasto calafrio. Era o fim, de fato; o casal
estava oficialmente cindido, atestava aquele documento. Estrebuchou um soluço que
ele logo devolveu a seu lugar com um golpe sobre a mesa, velha tática de exteriorizar
demônios íntimos, seu traço de caráter latente. Mas então lembrou-se da figura da
ex. esposa, lá na sua subjetividade alheia às invectivas públicas, e seu punho arrefeceu-
se, seu nervo recuou em trégua, e os dedos refrigerados se estenderam como
um cadáver abatido. Acabou, ecoava fundo em sua cabeça tal sentença, abrigando-se
nele com férrea convicção; terminou, asseguraram-lhe as duas folhas de sulfite sobre
a mesa. Assim a mágoa lograva por vencer a fúria, pois já não havia força capaz de reter
e unir uma composição definitivamente segregada – patenteava-lhe aquela carta
sobre a mesa, objetivação conclusiva de seu drama familiar. Nem mulher, nem filho.
Estrebucho, dessa vez sem reter a tristeza há tempos represada pela ira, e que agora
se transformava em luto sóbrio, pois trazia consigo certa aceitação serena, subscrita
concretamente sobre a tábua da mesa.
De súbito ergueu-se da cadeira como quem desperta em meio a uma orgia,
enxergando nos pertences quebrados e nas coisas espalhadas o efeito colateral de
uma superada embriaguez, o furor instintivo do qual advêm vergonha póstuma. Indagou
acerca de seu futuro, de si neste mundo de desapreço, e soube que seria um
homem mais duro a partir de então, amargo, ressequido pelo dispêndio de amor
gratuito, homem sem seiva a roçar sua casca em superfície áspera. Recolheu cacos e
talheres espalhados pelo chão da cozinha com uma lucidez grave, ajuizando inconscientemente
sobre a finitude de todas as coisas, sobretudo a própria. Sim, ao cabo
tudo é frigidez e mau cheiro, e consciencioso é o homem que carrega o irremediável
no coração, que endurece e bombeia. Acabou, e sentia-se com essa crescente convicção
um indivíduo meio morto, sem néctar ou essência, nem arroubos de ódio.
Óbvio que essa transformação estava sujeita a degenerações espontâneas,
pois nele ainda resistia o conflito de suas inclinações: a resignação amargurada e o
rancor violento, que só terminaria com a calcificação total de seu temperamento.
Mas o despacho judicial sobre a mesa lhe representou a culminância objetiva de todo
imbróglio; aquelas linhas técnicas e equidistantes lhe trouxeram um veredicto inexorável;
era ele, o despacho judicial, quem selara um fim e inaugurava um recomeço;
Pouco a pouco, portanto, a amargura ia ganhando terreno, seu caráter sanguíneo ia
se ressequindo numa capitulação que o fazia curvar-se para recolher os destroços do
chão, quando então uma poça escura lhe enregelou os pés descalços. Fitou a porta
recostada na parede, entre os quais jazia seu filho.
Aquele menino de quatro anos, frágil, abobado, finalmente receberia alforria
depois de anos de desacordo, de acusações cruzadas que obrigatoriamente passavam
por ele, situado a meio caminho. Talvez jamais voltaria a vê-lo. Mas assim deveria
ser, e um fatalismo amargurado passou a condicionar o olhar do pai para o filho. Foi
até a porta e com dois toques leves, uma vez purificado do furor, tentou chamar o
menino para o lado de fora, sem entusiasmo nem ódio, com uma indiferença prosaica,
isto é, endurecido por uma fatalidade que pouco a pouco ia germinando no
caráter do homem. No entanto o silêncio cresceu, a viscosidade nos pés umedeceu, e
instigado por esse desconforto difuso ele recorreu ao trinco, puxando-o para desvelar
uma realidade imprevista, rubra e pálida – cena desmedida capaz de revolver no
temperamento do homem uma nova revolução, já não mais tragado pela fúria, nem
pelo abatimento, mas pelo místico.
É lugar comum que a desrazão pode assediar de muitas maneiras, por muitas
formas e em consequência de muitas causas. E de igual modo sua contenção, seu
método de anteparo pode receber inúmeras facetas atenuantes, motivos equívocos
ou noções falseadas para socorrer o espírito conturbado do homem, que de outra
maneira sucumbiria no inaudito. Foi justamente assim que aconteceu: à vista do filho
desfalecido atrás da porta - com os olhinhos semicerrados a encarar o vazio com
ingênua profundidade, rodeado por hieróglifos riscados a sangue, conjunto mórbido
a acusar ação de hordas invisíveis - que a loucura voltou a despontar, e de igual modo
um assomo místico voltou a acudir, anteparo atenuante para o choque do desmedido.
A partir daqui uma outra revolução temperamental eclodiu na alma do homem,
como se recebesse dos céus outra provação em meio a maior crise de sua vida, esse
demiurgo que não se cansa de impor seus caprichos. Claro que seu estado de luto
oriundo de um sofrimento estrutural, da frustração conjugal, contribuíra em muito
para essa específica associação de ideias, a qual deu para a imolação misteriosa de seu
filho um significado metafísico; afinal de contas, o que seria todos aqueles símbolos
grafados ao lado do corpo da criança, o que seria aquela paz expressa no rosto do desfalecido,
senão um enigma a convoca-lo para outra esfera do ser, uma vez testemunhado
seus sinais arcanos? Contudo, a partir de então o homem regenerado aderiu
a tal ressignificação, encontrando um novo norte que não a mera paixão a dois, mas
a paixão pelo Todo. A partir de então pôde dedicar-se aos mistérios do universo,
guiado pela hermenêutica daqueles hieróglifos, pela oração e trabalhos litúrgicos que
a certeza do infinito habitualmente logra inculcar, reconciliando-se com o mundo.
Com efeito, como resultado do sacrifício do filho pela mão de entidades sobrenaturais,
o pai recebera a dádiva de uma nova vida, cujo destino fora reatado com Deus,
atenuando o remorso e o abandono com a ideia da providência. O Boníssimo, o Supremo,
mediante suas linhas tortas lhe arrancara a família terrena para lhe entregar,
em seu lugar, a chave de acesso ao celestial, premio concedido depois de cumprida
sua missão de temperança e amor. Assim creu, com conveniente racionalidade, e
autêntica fé.
É esta a gênese de um homem de bem.