A quina da ventura

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Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Mirage: Miscelanea de Narrativas Irreais vol. 01

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A quina da ventura
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Como consolo, o marido abandonado metia o filho atrás da porta sempre

que a mágoa se convertia em rancor, atribuindo à figura do garoto a herança viva

de um acinte, de uma vergonha difícil de purgar. Daí a reincidência do mesmo castigo,

nunca satisfeita e logo convertida em hábito. Apesar do aparente despropósito,

tal metodologia de castigo se nutre de uma racionalidade muito arraigada em

famílias partidas, as quais recorrem a ela após as ingênuas ambições matrimoniais

se desencantarem, para então instalar-se em seu lugar hábitos atenuantes, fábulas

compensativas gestadas no sádico: é a razão, em uma palavra, que retorna para socorrer

o humilhado mediante sucedâneos perversos, indispensáveis para o socorro

de um total esmagamento. Numa formulação direta: é preciso eleger um causador

para convertê-lo em algo ainda menor que a si mesmo, e com isso conformar-se.

Sim, o menino lançado atrás da porta por oito horas diárias, bem cronometradas, isto

é, calculadamente prescritas segundo os limites fisiológicos, muitas vezes acrescidos

de crueldades eventuais – como a compressão da porta ou o ininterrupto palavrório

catártico a impregnar no menino expiatório uma conscientização desabonada de sua

existência – nada mais era que o presságio de uma loucura, advinda da mágoa, que o

marido abandonado apressava-se em objetivar no filho, purgando-a em coisa concreta.

E isso tudo, feito hábito.

Todavia, por mais irônico que possa parecer, o hábito atenuou a tragédia do

menino.

A realidade cotidiana do garoto era aquela porta dura a lhe roçar os ombros,

eventualmente a lhe ferir os ombros, sem que com isso pudesse atinar para a face

sádica de seu destino. Só entendia o que via, pois sequer os conceitos sonoros, proferidos

pelo pai, lhe eram acessíveis; e a tenra criatura via tão somente a obscuridade

geral de seu espaço, além de uma pequena fresta luminosa, o desvão das dobradiças,

a quina de um universo oferecido com parcimônia, fenda milimétrica onde se lhe

abria a alteridade do mundo, isto é: uma fresta de milímetros era o que lhe facultava

o mundo por horas a fio, e pela qual atravessava fenômenos alegóricos, lúdicos, que

abasteciam sua estreita vida - apesar das locuções iracundas do pai:

— Tá gostando do inferninho? Aí você não me dá vergonha, é o único lugar

do mundo onde você não pode me dar vergonha! Ninguém pode ver seu jeito de

bichinha aí atrás. Se deixo você brincar na rua, no outro dia tá todo mundo falando,

tá todo mundo querendo te comer. Porque você é a cara da sua mãe, jeitinho de rameira.

Vai ficar no inferno, pro papai não ter vergonha de você.

O homem, amiúde presa de uma epifania vocabular, transgredia o tom até

degenerar num cinismo surdo:

— Não está ouvindo? Alô, alô, tá acordado aí atrás? - E ia empurrando a

porta, espremendo os dedinhos entre a quina da porta até arrancar um grunhido

acusatório.

Talvez, para caracterizarmos com precisão tudo o que a quina representou

na vida do garoto, sobretudo devido a um pequeno incidente relacionado ao último

ato narrado sobre o pai - o de empurrar a porta até arrancar um grunhido - seja necessário

atentar para um gênero de impressões que o menino recolhera do mundo

até aquele momento, para que o incidente possa revelar seu fundamental salto qualitativo.

Com efeito, o resultado de ser em circunstâncias tão singulares se refletiu

sobretudo no inchaço de seus pezinhos, fruto do castigo corriqueiro que ele sequer

discernia enquanto tal; um inchaço que alterava não só suas formas anatômicas, mas

que incutia uma estranha sensação de amortecimento a lhe cindir, precocemente, a

noção de unidade. Sim, não estava sozinho no próprio corpo, e a periódica descarga

de urina e fezes lhe corroboravam a impressão de ser pária na própria carne, animal

passível de obediência e confraternização estrangeira na própria intimidade – o que

de certo modo naturalizava as crueldades do pai. Foi quando a quina se dobrou sobre

os dedinhos do menino, de acordo com os empurrões paternos, e um novo elemento

jorrou de dentro para fora, intrigando seu hospedeiro até às raias da fascinação.

Pois esta substância rubra, minada de um recanto obscuro de seu próprio ser,

só poderia referir-se àquele inferno tão reiterado pelo pai, justificando o discurso do

progenitor por meio da evidência concreta de seu sangue, doce, quente, colorido,

feliz, no qual, aprendera, deveria estar. Aquele estranho fenômeno interno, aquela

assunção viscosa recebeu da intelecção do garoto uma significação característica, e

que nada mais é do que o produto da imaginação de uma criança castrada de suas sãs

potencialidades, e que se curva à cata de um substrato possível, substituto, atenuante.

Com os dedinhos sanguinolentos, de pé atrás da porta escura, o garoto descobriu

ao examinar a singularidade daquela substância outra qualidade, uma genuína

qualidade infernal, e através dela, com a ponta dos dedos doloridos, começou a criar

formas gratuitas na madeira da porta fechada sobre si, doando ao mundo toda a irracionalidade

que recolhera de sua modesta abertura, grafando linhas de sangue ovais,

ora retilíneas, ora curvas, ora serpenteadas, sequência de signos surgida em alguém

desde cedo depositária de loucura e ressentimento. Descobria, por assim dizer, uma

espécie de gratificação fáustica na textura do sangue, onde a alegria e o sofrimento, o

céu e o inferno, dão as mãos em único ser simbólico, enquanto o mundo do lado de

fora brada e oprime:

— Sua mãe também não saía do inferninho, passava a noite à espera de pinto

lá! Rameira! É o patrão que vem hoje? Ou o rapaz do corsinha? Como tá aí atrás,

hein? Hein? Hein? Tá gostoso? Olha homem passando pela porta, deixa passaaaar,

deixa passaaaaaar...

Então o homem ulcerado empurra a porta como se levantasse uma bola de

vôlei, com calculado comedimento, espalmando as duas mãos, torcendo os punhos; e

em consequência a quina estreita-se seguidamente, espremendo o pequeno amálgama

de carne, artérias e ossos, membros autônomos de um menino que grunhi. Mas

é um grunhido resignado, porque seu mundo é assim mesmo, sempre o fora desde

que a sua consciência despontara em plena crise conjugal. Por isso a curiosidade do

menino mantem-se alheia à dor; apesar do esfolamento reiterado, seus olhos lacrimosos

se encantam com as imagens miraculosas que atravessam a pequena fresta

de luz, a projetar nos olhinhos úmidos imprecisas fantasmagorias de ofuscamento,

bruxulear dourado, vermelho, prateado, e que o menino atribui a uma espécie de epifania

mágica saída do sangramento de seus dedos, que latejam, adormecem e dotam

seu sombrio perímetro de novas formas simbólicas, não obstante a falta de conceitos

capazes de definir aqueles rabiscos em sangue, pois eram tão somente vestígios de

uma sobrevivência que se debate.

A propósito de tais fantasmagorias visuais, acrescente-se a aliança das demais

cisões de seu corpo, como por exemplo o estômago enfraquecido que ruge uma linguagem

assemelhada aos momentos mais coléricos do pai, e que por isso deve significar

a proximidade do inferno; ou também a completa insensibilidade de seus pezinhos,

dois glóbulos inchados a ampararem uma miríade de seres vivos, como castiçal

de vela talhada: e a cera que escorre, quente, acalentando o fascínio do menino que

se percebe tão estrangeiro quanto nunca, tanto dentro quanto fora de seu corpo.

Em essência, trata-se do processo de naturalização de uma vida anômala, exilada em

singular subterrâneo na qual fora forçado a se criar, e cujos valores daí derivados se

articulam conforme o ritmo dos passos incessantes do pai pela casa, percussão sincopada

que provoca uma espécie de arrebatamento ditirâmbico na consciência crua

do garotinho, enfeitiçando-o, hipnotizando-o enquanto o cansaço de suas pernas

e a perda de sangue, a dor de suas mãozinhas e o paradoxal encantamento em seus

olhos se sobressaem às parcas energias do organismo infantil, facetas antagônicas

de um impossível jogo compensatório. Desacorda, pois, embalado em alucinações

etéreas, sem, contudo, enxergar a mágica derradeira de seu sangue respingado pelo

chão mesclar-se à urina, união das duas faces de um menino só, embora ele se compreendesse

como muitos.

Do lado de fora, o pai que retorna do portão interrompe seus passos na proximidade

da mesa, onde deposita a carta precatória que, ele intui, contém o desfecho

de seu drama familiar. Desdobra o conteúdo com o cuidado que uma má premonição

engendra, transpassado de mágoa, saudade que não se quer entregar como tal e que

ele a todo instante tenta sufocar, por conceber o sofrimento amoroso como fraqueza,

vulnerabilidade idêntica ao do filho, não menos reprimido.

Tribunal do Estado de...

Vara da Família...

Partes: Maria de Loudes dos...

A cada linha transcorrida, a mágoa parecia ganhar força, encharcando seus

olhos e oprimindo seu coração, vítima de um vasto calafrio. Era o fim, de fato; o casal

estava oficialmente cindido, atestava aquele documento. Estrebuchou um soluço que

ele logo devolveu a seu lugar com um golpe sobre a mesa, velha tática de exteriorizar

demônios íntimos, seu traço de caráter latente. Mas então lembrou-se da figura da

ex. esposa, lá na sua subjetividade alheia às invectivas públicas, e seu punho arrefeceu-

se, seu nervo recuou em trégua, e os dedos refrigerados se estenderam como

um cadáver abatido. Acabou, ecoava fundo em sua cabeça tal sentença, abrigando-se

nele com férrea convicção; terminou, asseguraram-lhe as duas folhas de sulfite sobre

a mesa. Assim a mágoa lograva por vencer a fúria, pois já não havia força capaz de reter

e unir uma composição definitivamente segregada – patenteava-lhe aquela carta

sobre a mesa, objetivação conclusiva de seu drama familiar. Nem mulher, nem filho.

Estrebucho, dessa vez sem reter a tristeza há tempos represada pela ira, e que agora

se transformava em luto sóbrio, pois trazia consigo certa aceitação serena, subscrita

concretamente sobre a tábua da mesa.

De súbito ergueu-se da cadeira como quem desperta em meio a uma orgia,

enxergando nos pertences quebrados e nas coisas espalhadas o efeito colateral de

uma superada embriaguez, o furor instintivo do qual advêm vergonha póstuma. Indagou

acerca de seu futuro, de si neste mundo de desapreço, e soube que seria um

homem mais duro a partir de então, amargo, ressequido pelo dispêndio de amor

gratuito, homem sem seiva a roçar sua casca em superfície áspera. Recolheu cacos e

talheres espalhados pelo chão da cozinha com uma lucidez grave, ajuizando inconscientemente

sobre a finitude de todas as coisas, sobretudo a própria. Sim, ao cabo

tudo é frigidez e mau cheiro, e consciencioso é o homem que carrega o irremediável

no coração, que endurece e bombeia. Acabou, e sentia-se com essa crescente convicção

um indivíduo meio morto, sem néctar ou essência, nem arroubos de ódio.

Óbvio que essa transformação estava sujeita a degenerações espontâneas,

pois nele ainda resistia o conflito de suas inclinações: a resignação amargurada e o

rancor violento, que só terminaria com a calcificação total de seu temperamento.

Mas o despacho judicial sobre a mesa lhe representou a culminância objetiva de todo

imbróglio; aquelas linhas técnicas e equidistantes lhe trouxeram um veredicto inexorável;

era ele, o despacho judicial, quem selara um fim e inaugurava um recomeço;

Pouco a pouco, portanto, a amargura ia ganhando terreno, seu caráter sanguíneo ia

se ressequindo numa capitulação que o fazia curvar-se para recolher os destroços do

chão, quando então uma poça escura lhe enregelou os pés descalços. Fitou a porta

recostada na parede, entre os quais jazia seu filho.

Aquele menino de quatro anos, frágil, abobado, finalmente receberia alforria

depois de anos de desacordo, de acusações cruzadas que obrigatoriamente passavam

por ele, situado a meio caminho. Talvez jamais voltaria a vê-lo. Mas assim deveria

ser, e um fatalismo amargurado passou a condicionar o olhar do pai para o filho. Foi

até a porta e com dois toques leves, uma vez purificado do furor, tentou chamar o

menino para o lado de fora, sem entusiasmo nem ódio, com uma indiferença prosaica,

isto é, endurecido por uma fatalidade que pouco a pouco ia germinando no

caráter do homem. No entanto o silêncio cresceu, a viscosidade nos pés umedeceu, e

instigado por esse desconforto difuso ele recorreu ao trinco, puxando-o para desvelar

uma realidade imprevista, rubra e pálida – cena desmedida capaz de revolver no

temperamento do homem uma nova revolução, já não mais tragado pela fúria, nem

pelo abatimento, mas pelo místico.

É lugar comum que a desrazão pode assediar de muitas maneiras, por muitas

formas e em consequência de muitas causas. E de igual modo sua contenção, seu

método de anteparo pode receber inúmeras facetas atenuantes, motivos equívocos

ou noções falseadas para socorrer o espírito conturbado do homem, que de outra

maneira sucumbiria no inaudito. Foi justamente assim que aconteceu: à vista do filho

desfalecido atrás da porta - com os olhinhos semicerrados a encarar o vazio com

ingênua profundidade, rodeado por hieróglifos riscados a sangue, conjunto mórbido

a acusar ação de hordas invisíveis - que a loucura voltou a despontar, e de igual modo

um assomo místico voltou a acudir, anteparo atenuante para o choque do desmedido.

A partir daqui uma outra revolução temperamental eclodiu na alma do homem,

como se recebesse dos céus outra provação em meio a maior crise de sua vida, esse

demiurgo que não se cansa de impor seus caprichos. Claro que seu estado de luto

oriundo de um sofrimento estrutural, da frustração conjugal, contribuíra em muito

para essa específica associação de ideias, a qual deu para a imolação misteriosa de seu

filho um significado metafísico; afinal de contas, o que seria todos aqueles símbolos

grafados ao lado do corpo da criança, o que seria aquela paz expressa no rosto do desfalecido,

senão um enigma a convoca-lo para outra esfera do ser, uma vez testemunhado

seus sinais arcanos? Contudo, a partir de então o homem regenerado aderiu

a tal ressignificação, encontrando um novo norte que não a mera paixão a dois, mas

a paixão pelo Todo. A partir de então pôde dedicar-se aos mistérios do universo,

guiado pela hermenêutica daqueles hieróglifos, pela oração e trabalhos litúrgicos que

a certeza do infinito habitualmente logra inculcar, reconciliando-se com o mundo.

Com efeito, como resultado do sacrifício do filho pela mão de entidades sobrenaturais,

o pai recebera a dádiva de uma nova vida, cujo destino fora reatado com Deus,

atenuando o remorso e o abandono com a ideia da providência. O Boníssimo, o Supremo,

mediante suas linhas tortas lhe arrancara a família terrena para lhe entregar,

em seu lugar, a chave de acesso ao celestial, premio concedido depois de cumprida

sua missão de temperança e amor. Assim creu, com conveniente racionalidade, e

autêntica fé.

É esta a gênese de um homem de bem.

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