A criança mais antiga da rua

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Mirage: Miscelanea de Narrativas Irreais vol. 01

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A criança mais antiga da rua
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Há alguns anos Gabi tentava ficar acordado para ver o que acontecia na noite

de Natal. E conseguiu. Seus amigos da rua que lhe incentivavam:

— Por favor, Gabi! Por favor! Ele virá, eu vi...

Embora seus pais dissessem que nada daquilo existia e ele sempre lhes acreditasse

em qualquer situação, alguma tremida na sua voz acontecia. Pensava no barulho

da carroça, os rangeres estranhos, os “toc-tocs” das botas de... Ah, sabia que nem

toda letra proferida por eles estava na sua devida verdade.

Mas também não queria detalhes dos seus amigos; poderiam lhe atrapalhar.

Se eles realmente o viram, que guardassem os pormenores para si. Que não lhe dessem

spoiler algum — já lhe bastava o episódio final de Stranger Things.

De fato, deixou de acreditar em segredos e mistérios natalinos desde que

descobriu a realidade sobre Papai Noel. Roupão vermelho, renas voadoras, duendes

bondosos, saco de presentes sem fundo, que presenteavam o mundo todo em apenas

algumas horas? Como pôde acreditar? Embora seja verdade a estória de ter ficado

acordado para descobrir que o tal gordinho barbudo eram sua mãe e seu pai pisando

em ovos para chegar ao seu quarto com seus presentes sem serem escutados.

De todo modo, o que seus amigos lhe contaram era muito pior. No caso de

seus pais, que já lhe mentiram uma vez, por que não haveriam de mentir-lhe uma segunda

também? Pois, ei-la: várias mortes, torturas e sofrimento de inocentes, no terreno

abandonado perto da sua casa, para homenagear os banquetes do dia de Natal.

Pensou naquilo por um ano todo, com tranquilidade, com bravura. Risos,

tantos risos!, que nem o vigia da rua ousava se aproximar! Em plenas 4h35 da manhã.

Mas, nos últimos três dias vésperos, finais, todo o seu corpo tremia. Ansiava.

Não brincou com os amigos, não comeu o tempo todo como era de praxe na semana

que antecipava o dia 25. As castanhas, as ameixas, os pêssegos verdes — que tanto

adorava mastigar por minutos a fio — , sobraram desta vez. Escreveu uma carta de

despedida, para caso não voltasse, caso se perdesse, caso “Ele” lhe pegasse.

Foi dormir — de mentirinha — por volta das sete horas da noite. Todos lhe

estranharam, principalmente seu irmão mais novo, para o qual escreveu: “Miguel,

continuamos anjos na vida dos nossos pais. Não brigue, obedeça, não minta — mas

continue a fingir que acredita nos livros da Disney. Sabe o quanto é importante para

eles. Sei que ainda não sabe ler, mas um dia a professora Dalva lhe ensinará”. Dentre

outras palavras de carinho, um “eu te amo” e vá lá.

— Ele vem! Mas ele vem!

Com os olhos arregalados, sentado na cadeira da varanda, perspassava as di-

cas que recebera:

— Os adultos não o veem. — Contou Pablinho.

— Por quê? Por que não o veem?

— Vai ouvir os gritos, você saberá. É tão alto, mas tão alto, que não tem como

alguém não ouvir. Ou os adultos não o ouvem, ou é que eles também têm muito

medo de ir...

— Graças a Deus que o sino da igreja já toca às 6h00. — Fernando, que já era

um pouco mais dramático, disse-lhe e já olhou em reza para os céus. Um monstro,

um assassino, um vilão, que só as crianças conseguiriam ver?

No entanto, só ele estava ali. A criança mais antiga da rua. Era sua obrigação

os defender.

“4h35 da manhã”, diziam.

— Por que todo conto de terror precisa ter um horário em que as coisas

acontecem?

“Ele virá! Barulho de carroça, facão na mão, bota branca até o joelho... parece

um açougueiro, só que ri”.

Fazia frio, um pouco, e só, de uma neblina estranha que na verdade não passava

de geada da manhã. Mas a imaginação...

...Fez-lhe chegar! Sons mesmo de carroça, de motor velho, eixo frouxo, rangir

de dentadura velha, mais o pânico que lhe fez levantar. Levou as mãos ao cinto:

a faca de serrinha, o garfo, as pedras do quintal; atrás da pilastra do portão, à espera,

ergueu a mão, pôs-se como em seus treinos, avançou o pé direito e foi tempo de

ouvir da janela do caminhão:

— Ah, Gabi! Essa hora, menino? Vai dormir!

Se não era o Sr. Haroldo, pulando pelo quebra-molas, batendo cabeça no teto

do carro, chegando da sua roça de alfaces hidropônicas e gergelins. Já ia fazer suas

vendas na praça de Aguanil. Viu-o de relance, acenou, fez-lhe um:

— AôÔô!

Baixou a guarda e, ainda paralizado, deixou-se cair. Deslizou as costas pela

pilastra, bunda ao chão, faquinha entre as mãos unidas e descansadas por sobre as

coxas finas. Sem coragem de voltar para a cadeira atrás dali.

Seu estômago, vazio, implorava pelas castanhas ou por algumas uvas thompson

que deixara de comer; as pálpebras, por mais duas horas de sono; suas vozes, por

um ato de bravura que sua rua e seus amigos tanto precisavam. Logo seria tempo

de ir à missa, mas pensaria nisto depois — afinal, já há três semanas não se valia da

desculpa da dor de cabeça. Estava em tempo de a reutilizar.

Perdeu-se logo em devaneios, pensamentos estranhos, tantas cogitações. Sr.

Haroldo... E se ele fosse açougueiro, matasse alfaces, risse enquanto cumprimentava

as crianças da rua? Esbravejava sozinho, da estrada entre Campo Belo a Cristais, mais

Aguanil:

— Vai, besta! Estas alfaces? Têm agrotóxico, nem lavei! HAHAHA!

E ria.

Longe de suspeitas, passava só como trabalhador que passa; atacava boias-

frias nos cafezais da entrada da cidade, enxia-lhes as bocas de alfaces, torturava-lhes

com os “creques” de folhas e verduras secas, cruas, ainda cheias de terra, de...

“Meu Deus, que sono...”.

... um barulho no esmalte dos dentes que lembra quadro negro desunhado.

Jogou-se, subitamente, ao portão. Olhou o seu relógio do Bob Esponja: 5h12.

Dormiu! Descuidado, aventureiro de primeira viagem, não deixou-o destrancado. A

chave? Capaz! Escalou pela fechadura, saltou pelas lanças, ralou a barriga na calçada

do lado de lá. Não pensava, só ouvia. À sua frente, a rua que subia, a igreja lá em cima,

o sino que às 6h00 já iria tocar. Tinha pouco tempo antes de os adultos acordarem.

Virou à direita, chocou-se ao poste, cambaleando pôs-se a escutar.

Sons terríveis; gritos agudos, esganiçados, de socorro, e rangeres de metais.

Faca em faca, corrente no amolador. Depois, passos rápidos, como que correndo

atrás de alguém; um rádio alto a reverberar, ruidoso e toscamente, alguma daquelas

breguices hipnotizantes de bar.

Mais perto, vozes desconhecidas. Conversavam, riam, contavam causos a debochar.

No terreno logo abaixo, eis que da ex-casa demolida de um ex-melhor amigo,

acostou-se por detrás das rodas velhas e gastas da caminhonete daqueles homens.

Distraídos em suas piadas, ao corte de mais uma vítima de Natal, não o viam a abrir

o cadeado da carroceria; faca de serrinha no buraco em ponta fina. Fez um “clique”,

escancarou-a; seis a sete reféns saíram assustadoramente em disparada, aos gritos;

grilhões ainda nos pés e uma criança aos prantos ensurdecedores. Até crianças tinham

a audácia — ou a maldade — de aprisionar?

Gabi chorou.

Subiu pelo eixo de ferro; ali esperou. Um e outro corriam para uma esquina,

e outra, sem saber para onde ir, enquanto o sequestrador e seu comparsa vinham

— podia ouvi-los — correndo para ver se algum ainda sobrara dentro da caçamba.

À sua aproximação chutou a porta de uma vez, para surpreendê-los, atingindo o

comparsa baixinho ao chão; bateu a cabeça, apagou. Em seguida, saltou na cabeça do

outro, dançou com ele da boleia às paredes das casas; ele na tentativa de furar-lhe os

olhos, o bandido na intenção de segurá-lo para jogá-lo ao chão...

Como se fosse touro, como se montado, pegou impulso e correu em dada direção

e, com bastante força, tacou-lhe ao gramado ensanguentado do terremo abandonado.

O assassino, a lenda urbana, viu o seu rosto então...

— Mas o que...

Estarrecido, não soube o que fazer. Riu.

A uma luz bruxuleante que se acendeu de uma casa próxima, unida ao farol

quebrado da caminhonete, a visão de Gabi começou a se desfocar. O homem, avental

branco, botas vermelhas de sangue, facão ainda na mão, aproximava-se. Crescia,

sumia.

Sua cabeça rodava; ferido, sentia tudo: o ralado na barriga, a pancada do peito

no poste, o pé que virou com o golpe do seu inimigo e a queda.

— Não vai... você não vai fazer mal a mais ninguém...

E apontou-lhe a faca de serrinha.

Dizia aos tropeços, tentando proteger uma vítima posta numa base de ferro

atrás de si. Perdeu o apoio, caiu de cara numa poça densa, gosmenta. À sua frente,

uma cabeça aberta, costelas à mostra, de um vermelho visceral, olhos abertíssimos,

vivíssimos, prontos a lhe falar:

— Ele vem! Está vindo aqui!

O sino, o sino dos adultos, tocou. Tudo se dissipou; lembrou-se dos seus amigos

a lhe dizer. Sentiu certo frescor; os ventres quentes daquela criatura morta a lhe

proteger.

Toda a vizinhança veio, logo cedo, embora a ceia tenha acontecido apenas à

noite. De manhã, os pais de Gabi o levaram ao hospital, à delegacia, e até o pediatra

da família veio a Campo Belo para lhe visitar em pleno Natal. Ninguém soube dizer

ao certo o que lhe aconteceu.

Ceiou com eles; conversaram e riram como se nada lhes acontecera.

— Onde já se viu? Foi procurar o Papai Noel!

— Gracinha...

Olhavam-no com carinho, apertavam-lhe as bochechas. De longe, Fernando

e Pablinho se fitavam em códigos.

A mesa farta, uma música brega a tocar; as castanhas, os presentes, o som de

outros amigos a bater em um violão lá no quintal. Vez e outra vinha o monstro da

noite anterior — que, não entendia o porquê, também fora convidado. Como seus

pais não podiam lhe ver?

— Tá vindo, tá vindo!...

Abria a geladeira, pegava mais uma cerveja, fazia-lhe um cafuné. Perguntava-

lhe:

— Está tudo bem?

Na sua cabeça existia apenas o terror da noite anterior, que, pela palpitação

e pela dor, não havia terminado ainda. O que ele era, o que fazia, como escondia sua

verdadeira face dos adultos ademais? Indagava-se por que ninguém o impedia. Ah!

Que terror! Mais uma vez, o que a sua família e os outros lhe escondiam? Sentia-se

não ter para onde correr.

À sua frente, bem no centro da mesa, olhava para um porco inteiro, posto

artisticamente em uma tábua de bambu; alfaces do Sr. Haroldo em volta, rasgadas,

regadas no azeite mais algumas salteadas de gergelins. As ameixas a enfeitá-lo; uma

gigantesca maçã verde desproporcionalmente enfiada na sua boca. Baixinho, Gabi

chorava:

— Mals, amigo, por não te salvar. Se não fosse o portão trancado...

Depois, mordiscava pesarosamente um pedaço de presunto defumado. Nesta

hora o porco fitava-o também tristonho, cabeça aberta, costelas à mostra, de um

vermelho visceral, olhos abertíssimos, vivíssimos, prontos a lhe falar.

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