Prólogo
Epílogo
Conto
Estou há seis meses neste buraco, minha peregrinação já devia ter acabado e eu, retornado para minha tribo. Voltaria mesmo antes de ser forçado a participar desse circo deplorável. Seis meses lutando, seis meses matando, mas quase não há sangue nas minhas roupas, pelo menos não sangue humano. Os humanos há muito trocaram carne e sangue por metal e óleo, e esses seis meses lutando têm me mostrado como são enganadoras essas propagandas que convencem o povo da capital a trocar seus membros e órgãos naturais por versões mecanizadas.
Agora que estou aqui, penso que este tenha sido o destino de outros da minha tribo, os que não voltaram da peregrinação. Não consigo imaginar que alguém em sã consciência, que tenha experimentado nosso modo de vida por tantos anos, opte por viver neste lugar. O silêncio da noite na beira do lago é o que me faz mais falta; essa cidade nunca descansa, nunca dorme, as luzes não param de piscar em propagandas de neon e projeções holográficas, não há um canto sem luz e também não há nenhum lugar verdadeiramente iluminado. A espiritualidade se foi quando os povos de outros lugares do universo pousaram nas nossas planícies.
Pelo barulho dos passos lá em cima, a arena já deve estar se enchendo. Logo, alguém entrará aqui para mandar eu me preparar para lutar. A rotina é monótona; não me admira que alguns simplesmente se entreguem. A promessa longínqua de liberdade, para muitos, é como a névoa da manhã, intangível, ilusória, mas não para mim. Nessa nação pós-contato tudo se resume a fama e dinheiro, estratos sociais invisíveis se formam a partir disso e a influência que se tem sobre o próprio destino é ligada ao tanto que se tem dos dois. Eu não possuo dinheiro, é verdade, nunca possuí, nossa tribo não tem apreço por bens materiais, mas fama... Seis meses lutando, seis meses matando, um humano puro, sem mods, somente instinto, treinamento, e duas espadas de monofilamento. Isso me proporcionou muita fama.
Duas batidas na porta, há algum tempo, teria sido uma sombra nas barras da cela. A gradativa melhora no tratamento alimenta minha esperança de que haja um fundo de verdade no que me foi dito quando fui jogado aqui — “vença o campeão, e seu destino lhe pertencerá.”
Visto minha armadura leve, o som do roçar da fibra de carbono é suficiente para que o mensageiro saiba que o recado foi dado, visto meu robe por cima, ajeito as penas negras que cobrem meu ombro direito, passo a polir a peça de algum material que brilha como aço no meu ombro esquerdo, afinal, “aparência é tudo”. Render-se, ainda que temporariamente, à vaidade é um pequeno preço a se pagar pela possibilidade de voltar à minha terra. Pacientemente, calço minhas botas, ajusto minhas braçadeiras e aperto meu cinturão, as espadas e o visual retrô que se transformaram numa espécie de marca registrada. Finalmente, prendo minhas lâminas nas costas, baixo meu capuz e saio dos meus aposentos.
Fecho os olhos quando as portas se abrem e o vento invade o corredor que leva à arena, imagino o vento soprando nas plantações da minha tribo e abro os olhos, e os braços da plateia balançando me lembram os arrozais — quase sinto o cheiro da terra molhada —, piso na arena e me lembro que não há um metro quadrado de terra exposta nesta cidade, e isso alimenta minha vontade de lutar, de sair deste lugar imundo e fedorento, onde tudo é sintetizado ou trazido do espaço. Os humanos esqueceram sua capacidade de plantar e produzir alimento orgânico, o sintético é mais “acessível”, e os danos são mitigados com mais próteses, mais upgrades nas suas peças, um ciclo sem fim.
Meu oponente aparece por uma das portas do lado oposto da arena, uma criatura alienígena com tentáculos e olhos por todo lado. Repugnante. Com uma aura de sede de sangue quase visível, certamente habitante de algum planeta menos civilizado, trazido para virar esporte, mas não importa, é só mais um obstáculo, mais um pouco de sangue não humano a ser derramado, mais um degrau a ser galgado para voltar ao meu lar.
As correntes da criatura se soltam, e minha mente acelera, me concentro na luta. Meus sentidos se aguçam e o som da plateia desaparece. Caminho lentamente em direção ao monstro, este, por sua vez, “corre” gananciosamente em minha direção, como um predador sedento quando vê a presa acuada. Acho que os limites da arena o fazem pensar que eu sou alguma espécie de refeição que lhe está sendo servida, como quando jogam ratos num aquário de cobras. Não poderia estar mais enganado.
Saco minhas espadas e começo a correr em direção à criatura. Alguns de seus olhos se arregalam, provavelmente surpresos pelo fato de a sua vítima estar correndo em sua direção. Vejo seus tentáculos se esticarem e a criatura assumir uma postura ameaçadora, como se quisesse parecer ainda maior. Entro no alcance dos seus tentáculos, minha mente se acalma e é quase como se eu assistisse à luta em terceira pessoa. Vários tentáculos me golpeiam de cima para baixo, mas atingem apenas a arena. Um passo lateral me tira da área de risco e fico numa posição vantajosa; um arco negro se desenha quando golpeio com minha espada, o movimento rápido faz um sibilo agudo soar, e o monofilamento da lâmina corta até mesmo as moléculas dos tentáculos do monstro.
A plateia vai à loucura quando os fluídos da criatura jorram intensamente pelos tocos de tentáculos, espalhando uma chuva de sangue pela arena. A criatura se enfurece e golpeia lateralmente, na vã esperança de que assim eu não consiga me esquivar. Salto no ar em parafuso, meus braços se cruzam sobre meu peito e minhas armas ficam paralelas ao meu corpo. Quando os tentáculos da criatura passam sob minha cabeça, as penas do meu robe ruflam violentamente, minhas espadas descem, velozes, as lâminas deslizando rentes uma à outra, como uma tesoura, e eu alivio a criatura de mais alguns de seus membros.
A violência do movimento do monstro banha os espectadores mais próximos com a gosma verde que espirra do meu perfeito corte. Eu pouso suavemente na arena e perfuro um dos olhos da criatura nesse instante de hesitação. Mais tentáculos tentam me acertar, mas não estou mais no lugar onde eles passam. As artes marciais têm um profundo significado na cultura da minha tribo, e eu sou um dos melhores da minha geração, golpes ensandecidos jamais me tocarão, não numa situação onde eu só preciso me preocupar com um único oponente. Não me permito relaxar; apesar da certeza de a vitória já estar sedimentada, é um erro comum que poderia facilmente virar o jogo a favor da criatura.
Pobre ser alienígena, escolheram mal seu oponente, talvez se ele enfrentasse algum lutador que se valesse mais da força bruta seu destino não fosse selado tão rápido, mas, como eu disse, o trouxeram por esporte, por diversão, e minha piedade não atravessou o portal da arena comigo. Sua morte será lenta, chegou a hora de agradar a plateia. A criatura já parece ter entendido que a presa era ela. Que os limites da arena não estão a seu favor. Sem ter para onde ir, seu instinto de sobrevivência vem à tona e ela se entrega a um frenesi de batalha. Seus movimentos, apesar de mais rápidos, apenas se tornam mais previsíveis. Três tentáculos balançam em direções diferentes, eu dou um passo à frente e fico ainda mais próximo da criatura, o sibilo arrepiante da espada soa e eu furo mais três olhos, me afasto lateralmente e me agacho quando um tentáculo passa assobiando sobre minha cabeça, furo mais um olho, dois tentáculos tentam me agarrar, mas abraçam o ar, e a criatura fica cega de mais dois olhos.
A plateia nota o padrão e fica ainda mais alvoroçada; o sangue da criatura se espalhou por toda a arena, eu estaria escorregando se minhas botas não tivessem um solado especial. A criatura está enfraquecida. Grunhindo. Emitindo sons incompreensíveis. Num último esforço, ela me ataca por todos os lados, com os tentáculos que ainda estão inteiros. Eu salto à frente girando, minhas armas negras perpendiculares a meu tronco, como uma hélice, decepando os membros do monstro de forma espetacular. Ao tocar o chão, eu rolo na direção da criatura, cortando os dois grossos tentáculos que a mantinham em pé, fazendo-a cair pesadamente. Ponho um pé sobre a criatura e furo os olhos que lhe restam, levantando minhas espadas em sinal de vitória. A batalha acabou, e o clique das lâminas sendo embainhadas fazem a plateia voltar a ser ouvida por mim. Sei que logo enfrentarei o campeão quando ouço gritos incessantes clamando meu nome: Panthogar.
Meus olhos correm pelas arquibancadas lotadas, braços mecânicos, peças cibernéticas, olhos iluminados por leds totalmente sem emoção, faces metálicas inexpressivas com vozes em 8 bits, uma multidão de meio-humanos retalhados e reconstruídos. Mais uma vez fecho os olhos e lembro dos sorrisos da minha tribo, músculos se movendo harmoniosamente, estampando inegável alegria. Quanto mais terei que lutar para conseguir minha liberdade? Olho para a área VIP, e vejo os organizadores conversando; eles têm um pouco mais de silicone nas peças, tentam parecer um pouco menos com cyborgs, mas todos sabemos que é apenas para se diferenciar da ralé, que usa peças baratas com as partes metálicas expostas.
Dou meia-volta e me dirijo ao portal de saída. De relance, vejo meu holograma ao longe, meu coração dispara quando vejo as palavras piscando — PANTHOGAR VS CAMPEÃO EM TRINTA DIAS / FAÇAM SUAS APOSTAS. Fico parado, incrédulo, olhando para as luzes coloridas formando minha silhueta, imitando meus movimentos. Todos os meus pelos se eriçam e minha vontade é que o campeão entre na arena agora mesmo. Sou tomado pela emoção e não consigo conter o grito que vem na minha garganta, os espectadores são tomados pelo meu entusiasmo e o barulho na arena triplica, as arquibancadas tremem incessantemente. Corro para o portal, incapaz de recuperar minha compostura habitual, passando veloz pelo corredor, até encontrar dois guardas na porta dos meus aposentos; estavam ali para me levar à área VIP. Me disseram no caminho que, a partir de agora, eu ficaria em outro lugar e que meus pertences seriam movidos para a nova suíte.
Sou encaminhado para uma espécie de salão de beleza. Homens, mulheres e aliens, equipados com cabelos, unhas e peças de cores berrantes, andam por todo lado, os guardas se retiram e fecham a porta ao sair. Fico em silêncio por alguns segundos, me sentindo deslocado em meio ao escarcéu que essas pessoas fazem. Fico um pouco tonto com as cores se misturando no meu campo de visão, essa sala brilha mais do que os neons da rua dos cassinos. Finalmente, alguém nota minha presença, e, de repente, todos estão parados olhando para mim. O silêncio repentino é constrangedor, mas não dura mais que um instante. Três ou quatro deles se movem em minha direção falando tão rápido que eu não entendo uma palavra. Um deles torce o nariz e outro gesticula como se eu devesse segui-los, e assim o faço. Sigo para uma antessala, onde as quatro pessoas começam a me despir, vejo a pilha de roupas no chão e percebo o quanto estava encharcado com o sangue da criatura que matei na arena — não é à toa que me trouxeram aqui antes de seguir para a área VIP.
Há uma banheira enorme em minha frente, e, delicadamente, uma moça com cabelos coloridos, com tons de rosa-choque e verde-cana, me faz entrar nela. Afundo lentamente na água quente e sinto meus poros se abrindo; a sensação é relaxante e tranquilizadora. As outras três pessoas entram na banheira e me rodeiam, seus braços e pernas se desmontam em instrumentos, sabão líquido e xampu espirrando de seus dedos, mãos com texturas impossíveis esfregam meu corpo, limpando minha pele e lavando meus cabelos. Os quatro começam a conversar entre si naquela velocidade vertiginosa que me faz pensar que estão falando em outra língua. Demora um pouco para eu me acostumar e conseguir entender algo sobre o que estão falando. Nunca haviam tocado um humano sem mods, nunca haviam sentido a textura de uma pele natural, nunca viram cicatrizes de feridas que se curaram naturalmente. Se impressionaram com o tamanho do meu cabelo, e ficaram boquiabertos ao descobrir que até mesmo estes eram naturais. Algum deles falou que não nasce mais cabelo nas pessoas da cidade há muitos anos, provavelmente um efeito colateral da comida sintética que comem há gerações.
Me abstraí das vozes e fechei os olhos, voltei no tempo enquanto estava sendo banhado, lembrei dos cabelos sedosos do meu amor. Se os meus cabelos que há tempos perderam o brilho os surpreendeu, cairiam de costas com a sensação maravilhosa de maciez das madeixas de Àine. A comida sintética me faz sentir falta das nossas refeições frugais, e eu espero sair daqui antes que meus próprios cabelos comecem a cair. Minha tribo não consome carne, vivemos em harmonia com a natureza e com o nosso povo, respeitamos a mãe-terra, e só saímos do nosso lar para a peregrinação, uma tradição antiga que eu nunca havia entendido, mas que agora vejo o propósito com clareza. As pessoas da nossa tribo precisam querer estar lá, nosso modo de vida não permite questionamentos esdrúxulos sobre como é aqui fora, e é por isso que aos vinte e cinco anos todos os cidadãos da tribo partem numa jornada para descobrir o que o mundo fora da tribo tem a oferecer. A peregrinação nos dá certeza e dedicação para manter as tradições e proteger a tribo.
Os acessórios cibernéticos se desligam, o clique suave das peças se reencaixando me trazem de volta à realidade. Saio da banheira e vejo roupas limpas sobre uma mesa; as quatro pessoas se curvam levemente e saem dos aposentos, conversando alto, movendo os membros coloridos estabanadamente. Eu desdobro a roupa e descubro que é um traje imponente; mantiveram o visual retrô que me consagrou na arena, mas esta roupa tem linhas douradas sobre o tecido verde-escuro brilhante. Visto a roupa e noto um alien do outro lado da sala gesticulando para que eu me aproximasse. O corpo é mais feminino do que masculino, e a pele azul parece gritar, inúmeros pontos metálicos nos seus braços denunciam as partes cibernéticas instaladas sob a pele. Eu desvio o olhar e sigo pela porta que se abriu.
Estou passando por um corredor estreito, luzes no piso, leds pulsam nas paredes como se indicando a direção que devo seguir. Mais uma porta e estou numa espécie de saguão, numa área coberta, olho à minha volta e vejo todo o sangue que jorrou da criatura que eu matei na arena lá embaixo, me fazendo ter certeza de que, enfim, eu havia chegado à área VIP. O ar aqui dentro é diferente, deve ser filtrado. Esses figurões sequer respiram o mesmo ar que o povo lá fora; o ambiente tem uma temperatura extremamente agradável, muito diferente do calor dos dissipadores que inundam as ruas nas zonas baixas da cidade. Na verdade, tudo aqui é diferente, todos os metais expostos têm acabamento perfeito, os cortes devem ser feitos a laser ou hidraulicamente, os tecidos parecem orgânicos, quase não se nota que são de plástico texturizado, e as peças das pessoas são revestidas com algum material que parece pele. Não que essas pessoas tentem parecer humanas; os formatos e funcionalidades dos equipamentos são os mais variados: quatro braços, oito dedos em mão giratórias, faces em formatos surreais e impossíveis de serem reproduzidos pela natureza. Nem mesmo as criaturas geradas pelos resíduos das guerras nucleares da era da extinção são tão estranhas. Muitos deles eu não sei dizer se estão de frente ou de costas.
Alguém se aproxima de mim e me conduz ao centro do saguão. Vejo uma pessoa assemelhada a um humano, parado, um senhor de cabelos grisalhos, olhos grandes e sorriso fácil, que me cumprimenta efusivamente, acenando para que outros se aproximem:
— Senhores, este é Panthogar, o próximo desafio do nosso campeão — ele diz, enquanto gesticula amplamente.
Os elogios a mim vêm aos montes, conversam entre si apontando que talvez eu seja o primeiro desafiante com chances reais de derrotar o atual campeão. Eu me mantenho calado, não tenho muito o que dizer, tudo que sei da cultura deles foram os poucos dias que perambulei pela cidade antes de ser preso, com uma acusação estapafúrdia, e jogado na arena, o que me fez ter certeza de que a corrupção corre solta em todos os estratos dessa sociedade.
Aos poucos, as pessoas se dispersam e o anfitrião me convida para sentar num local reservado. A mesa está repleta de comidas, a maioria eu nunca vi nem me atrevo a tentar adivinhar o que seja, mas me forço a comer, preciso me nutrir bem. O último combate a ser travado está próximo, e eu preciso estar no auge do meu preparo. O anfitrião se dirige a mim e diz que tudo aquilo é só uma pequena amostra das regalias que um soberano tem, que nestes trinta dias eu iria viver exatamente como o campeão, e que logo eu descartaria a ideia de ir embora da cidade. Dei de ombros e apenas acenei positivamente com a cabeça. Eu só queria que esse tempo passasse o mais rápido possível.
***
Os dias se vão enquanto eu treino rigorosamente, em vez de me refestelar nas mordomias que me são oferecidas. Eu me isolo, medito e evito os luxos que podem corromper minhas resoluções. Preciso manter minha frieza, a proximidade da minha liberdade pode se tornar perigosa, me deixar descuidado. Comecei a passar mais tempo meditando do que treinando fisicamente, a mente precisa estar tão afiada quanto o corpo para o combate. Os trinta dias simplesmente voam, e as duas batidas na porta me causam certa surpresa. Aqui não escuto o barulho da multidão se aglomerando, e eu estava tão focado no treinamento que não notei o passar do tempo. Endureço meu coração para não ser tomado pela empolgação, afinal, é chegada a hora.
Repito meu ritual solenemente, visto a armadura leve de fibra de carbono e trato com muito cuidado meu robe e os acessórios — pode ser a última vez que vou usá-los, seja porque venci ou por ter perecido na luta. Me alongo e sinto meus músculos se estirando e contraindo, sinto as fibras se movendo, sinto que estou no ápice do meu preparo físico. Pego minhas armas e me dirijo à arena. Tenho que admitir que estou em desvantagem; sou um forasteiro nestas terras e, por ser prisioneiro a maior parte do tempo, nunca vi o campeão lutar. Pelas mordomias que tive ultimamente, acredito que ele já deve ter assistido às minhas lutas, afinal, logo me tornei um potencial candidato para enfrentá-lo. Faço o pensamento desvanecer; não é a hora de pensar nisso. Foco minha mente e relaxo pensando em Àine. Logo, nos veremos novamente.
Adentro a arena e noto que não é a mesma em que eu costumava lutar. Achei que o caminho era mais longo simplesmente por conta dos meus novos aposentos estarem mais afastados, mas esse ambiente é muito maior, e eles simularam alguns elementos. Há um pequeno lago, uma floresta num canto que toma quase um terço da arena e o restante é uma planície com capim na altura da cintura. As duas entradas opostas e o centro têm um raio de cinco metros do mesmo piso da outra arena, uma espécie de plástico texturizado antiderrapante.
A plateia urra com a minha chegada; deve haver pelo menos o triplo de pessoas que cabia na arena antiga. Sigo para o centro do ringue e não me surpreendo em como é diferente a sensação de tocar aquele capim artificial. A terra é algum granulado de plástico que faz um barulho estranho sob minhas botas. O campeão aparece na outra entrada da arena, a multidão vai à loucura, mas meus sentidos já estão se aguçando e logo os gritos e urros se tornam um zumbido distante. Meu adversário é um humanoide completamente mecânico; não consigo distinguir se há um ser que já foi vivo ali ou se é uma máquina de combate eficaz o suficiente para ser o senhor da arena. Não há olhos, ou boca, ou qualquer coisa que denote que ele precise respirar. Melhor evitar a água.
Duas peças de metal deslizam no centro da arena e abrem um círculo, e o senhor de cabelos grisalhos que eu encontrei na área VIP aparece, ascendendo por um elevador. Ele gesticula ampla e furiosamente, os movimentos emocionados fazem os braços da plateia balançarem ainda mais vigorosamente. Eu não escuto o que está sendo dito; minha atenção está completamente focada no inimigo à minha frente. Apesar de eu já estar acostumado a enfrentar cyborgs inexpressivos, é sempre desconfortável lutar contra eles. Não há um esgar na face ou um músculo vibrando que denuncie um ataque, e este é o campeão. Penso agora que foi bom passar esse tempo em combates diários, meus reflexos se tornaram quase sobrenaturais, talvez eu não tivesse a mínima chance de derrotá-lo há seis meses. Mas o passado se foi, e, agora, ele é o único obstáculo entre mim e minha tribo.
Finalmente, o elevador desce e o círculo se fecha, a tensão no ar se torna tão pesada que é quase tangível. O silêncio na arena é tão absoluto que o som das minhas lâminas sendo desembainhadas pode ser ouvido por todos os espectadores, assim como uma leve vibração vindo do meu oponente, que não se moveu um milímetro. Eu resolvo tomar a iniciativa, meus músculos se retesam e eu uso toda a minha velocidade de forma explosiva. Um arco negro se desenha no ar, atravessando o pescoço do campeão e fazendo sua cabeça voar, solitária. O único som agora é o quicar metálico do crânio no chão da arena.
Eu olho a cena incrédulo, vejo a cabeça no chão e volto meu olhar para meu inimigo, esperando que o mesmo esteja caindo de joelhos, morto. Mas o que vejo é a cena anterior, meu adversário em pé. Inteiro. Imóvel. Inevitavelmente, arregalo os olhos, e, quando a surpresa toma minha face, ouço sua risada metálica. Seu corpo incha de maneira disforme e o metal que o forma se retorce de uma maneira que eu nunca havia visto, fazendo-o se transformar num tigre gigante, que salta ferozmente em minha direção, golpeando minha jugular com garras tão afiadas que as luzes da arena se refletem nelas.
Eu salto para trás, antes mesmo de pensar em fazê-lo, mas não consigo me afastar o suficiente. As garras da fera cortam através do robe e da armadura de fibra de carbono como se fossem manteiga, e a dor atinge o meu cérebro quando minha carne é rasgada. Sinto como se a mão ossuda da morte estivesse segurando minha garganta. Meu inimigo toca o chão, e imediatamente se transforma numa serpente colossal. A velocidade com que ele muda de forma é aterrorizante. Ele faz um ataque rasteiro com a cauda, me forçando a saltar e dá um bote rápido enquanto estou no ar, a boca escancarada vem em minha direção e eu giro o corpo em parafuso, chutando a lateral da sua cabeça. Uso o impacto do chute para pôr alguma distância entre nós. Preciso respirar.
A víbora serpenteia para o capim, sumindo do meu campo de visão e, antes que eu tenha tempo de virar a cabeça, um tubarão salta do lago que estava às minhas costas, com a bocarra escancarada, cheia de dentes, tentando me morder. Eu rolo para o lado, e meu inimigo pousa no centro da arena já em forma humana. O riso metálico se espalha novamente pelo ar, e ele se transforma em mim, fazendo duas espadas aparecerem em suas mãos. Um desafio.
Eu tomo a iniciativa novamente; avanço em direção ao meu inimigo, golpeando-o com minhas armas. Ele defende o primeiro golpe e esquiva do segundo, contra-atacando com uma estocada em direção à minha cintura. Eu desvio a lâmina dele, girando e usando o impulso para golpear o braço esticado — insistir em decapitá-lo seria inútil. O campeão abaixa velozmente e ataca minhas pernas, cortando lateralmente num movimento amplo. E eu simplesmente piso na espada que vem em minha direção, prendendo a lâmina no chão. Ele solta esta arma e tenta me golpear com um corte em diagonal, de baixo para cima. Era o único movimento que ele poderia fazer daquela posição. Fica claro para mim, sou superior numa luta de espadas. Chuto o pulso do campeão e arranco a mão dele com um corte limpo, acerto a mão ainda no ar com meu calcanhar, jogando-a na água junto com a lâmina que ela ainda segurava.
Meu inimigo recua e eu arranco seu pé de apoio, ele cambaleia e eu corto o braço que se estendeu para tentar manter o equilíbrio. Eu giro duas vezes, em passos compassados. No primeiro, corto o corpo do meu adversário no meio; no segundo, arranco sua cabeça. Com mais dois cortes rápidos, uma cruz negra se desenha no ar e o tronco do meu adversário se divide em quatro partes. Eu completo com um chute bem aplicado, no centro do peito, o que espalha os pedaços e arremessa uma espécie de core central para o chão. Os fragmentos espalhados do meu oponente se liquidificam e se movem em direção ao core, rapidamente se solidificando e protegendo-o.
Um som enfurecido, que soa como um grito numa TV velha sem sinal, toma a arena e um brilho vermelho se acende no campeão, disparando um raio laser em minha direção. Eu só consigo mexer a cabeça o suficiente para que o raio passe tão perto que eu sinta o calor no meu rosto. Meu capuz é cortado e eu arranco o que restou dele. Chega de aparências.
As nanomáquinas viram uma esfera que flutua no ar, e espetos de metal se lançam dele em várias direções. Eu salto para trás e cruzo minhas espadas para defender o ataque; o golpe é tão violento que sou arremessado para a beira do lago. Me ponho de pé rapidamente e vejo a esfera se movendo em minha direção, lançando espetos a esmo, minha mente funciona rápido e eu me movo em direção à floresta. As árvores estão espalhadas de forma irregular, e parecem ser muito resistentes. Vejo que minha estratégia funcionou quando os espetos de metal batem contra as árvores e a esfera é arremessada de um lado para o outro pela força dos seus próprios golpes. Um som horripilante de unhas num quadro negro com o arrastar de metal no concreto se propaga. Contra toda a lógica, eu sorrio. Onde há ódio, há fraqueza, e o campeão acabou de me mostrar a dele.
Agora ele morfa num gorila, se movendo veloz pelos galhos. Urrando, salta em minha direção. Ele deveria saber que animais não conseguem me derrotar, mas parece já ter sido tomado pela raiva. O monofilamento da minha lâmina atravessa o tornozelo direito do gorila quando eu giro para trás de uma árvore, me protegendo. A perna decepada toca o solo e o monstro tomba violentamente. Ele se levanta e esmurra o chão com tanta força que eu sinto o tremor sob meus pés. Seu corpo parece inchar e as mutações se alternam em rápida sucessão, são inúmeras criaturas e formas alienígenas. Meu inimigo parece indeciso e acaba se transformando num amálgama de criaturas bizarras, pernas de gorila, um braço é uma pinça crustácea, e, no lugar onde deveria estar o outro braço, vejo vários tentáculos metálicos, as costas do campeão estão forradas de espinhos e uma cauda de escorpião balança freneticamente. A cabeça é tão grotesca que não quero nem imaginar a que espécie de horror das profundezas ela pertence.
O horror cospe metal derretido, acertando a árvore que estou usando como cobertura, incendiando-a, e eu me escondo atrás de outra. Ele continua a cuspir metal, transformando a floresta num inferno flamejante. Todas as árvores à sua volta estão em chamas, e agora eu uso minhas lâminas de monofilamento para cortá-las, fazendo-as cair sobre a criatura metamorfa. Depois que a primeira árvore cai e o campeão a apara com sua garra, eu corro à sua volta, cortando todas as árvores ao seu redor. Vou para o centro da arena e fico observando a floresta sendo tomada pelas chamas.
Alguns segundos se passam e, mesmo vendo a intensidade do fogo, eu não consigo relaxar. Minha suspeita se torna realidade quando o maldito sai do meio das chamas, o metal do seu corpo tão quente que está incandescente, derretendo, deixando um rastro de poças escuras e esfumaçantes.
Mais um laser é atirado. Eu me desvio, corremos em direção um ao outro, seu corpo começa a enrijecer ao esfriar e ele fica um pouco lento, mas a cabeça parece ter regenerado e começa a tomar a aparência do início do combate. Não posso deixá-lo se curar. Concentro todas as forças que me restam e inicio uma série de golpes numa velocidade alucinante, arranco seu braço esquerdo e o chuto para longe, giro e corto o tórax do campeão lateralmente com as espadas em paralelo, giro novamente fazendo as lâminas descerem, cortando-o, verticalmente, em três partes iguais, um arco negro em X surge, de baixo para cima, e o corpo se divide ainda mais. Minhas armas o fatiam em pedaços cada vez menores, até que o core central dele surge e eu o transpasso com uma estocada precisa. Através da minha espada, sinto a vibração dele diminuindo... até que para completamente.
Fecho os olhos devagar. Meus braços soltos, relaxados. A tensão se esvaindo lentamente. Ainda estou imóvel no meio da arena, mas a minha mente está caminhando pela planície com Àine. Estico minha mão e, quando consigo tocá-la, volto à realidade. Embainho minhas armas, esperando ouvir o urro da plateia. Mas só há silêncio. Olho ao meu redor e a multidão está atônita. Eles também sabem:
Agora... meu destino me pertence.