Prólogo
Epílogo
Conto
Querido pai,
Você estava certo. Eu não devia ter saído de casa. Mas como sempre... Fui teimosa.
Você disse que nosso antigo mundo esteve bem por um tempo, lembra? E isso ficou ecoando em minha mente por todos os dias, por todas as horas e por todos os minutos desde então. E por isso essa é a maior causa da minha fuga, se você quer saber.
Não vou pedir perdão.
Eu escolhi. As bonanças são minhas tanto quanto as maldições. Foi você quem me ensinou a suportar o peso, mesmo quando ele for um brutamontes esverdeado de quatro braços, com dentes feito adagas prateadas de um brilho etéreo e infinito.
Você gostava de dizer que era infinito. Eu acreditava, sabia? Até os dez ou onze anos, eu ainda me questionava como era possível; te achava uma enciclopédia ambulante. E você sempre foi mesmo, principalmente quando explicou sobre a Supernova Mais Bela.
A Supernova Mais Bela foi filmada pelo Jeq. Lembra do Jeq? Aquele careca subiu por uns quinhentos metros com a nossa nave Margô, ligou o modo de pairar, abriu a janela-filtro e soltou: “Porra, isso é lindo demais!”
Depois, ele inclinou a cabeça e a câmera acoplada ao antigo capacete de astronauta capturou a arte espacial mais esperada do século. Pai, eu trouxe essa foto comigo. Vi no verso as palavras infinitas daquele dia. Elas se tornaram meu mantra oficial.
Toda luz é a verdade;
Toda luz é paixão que vivifica o homem.
Essa explosão é o maior amor e o infinito se explodindo, se repartindo, entregando-se aos seres como doses de ânimo. Deixe o ânimo correr pelas veias.
Deixe o ânimo correr pelas veias.
Pai, conheci um garoto-lagarto. Ele tem os olhos mais esquisitos e chamativos dos quatro cantos do espaço — espera, só para constar, quero dizer que eu sei que o espaço tem muitíssimos cantos além dos que eu já ouvi falar. Ele se chama Nota e vive dizendo que as estrelas consecutivas nasceram juntas e morrerão juntas. Às vezes eu replico, no entanto, meus argumentos parecem meio bobos e desconexos. Pai, ele pisca quando diz o meu nome. Lisa. Mas não daquela forma comum, e sim de um jeito suave e meio doce. Eu sei, ele gosta dos tênis alados que ganhou da tripulação do Dragão Azul mais do que de mim. Não me importo, só preciso e oro para que aqueles olhos me vejam para sempre.
Pai, eu sei que estou sendo chata, técnica e repetitiva... Eu só não tenho mais tempo. Seria bem melhor que eu lhe contasse sobre o Dragão Azul. Eles sempre me serviam um bolo mole de manhã; gargalhavam sempre também quando eu vomitava, porque a) tinha algo semelhante a alho; b) era molenga e não mole, sabe, e movia-se como um ser vivo medonho da margem do espaço; e c) havia umas bolinhas roxas, ardidas até a morte — sem exagero.
***
Eu olho o brutamontes mais uma vez. E imediatamente lembro-me das histórias que a mamãe contava, aquelas que terminavam com final feliz. A maior raça reptiliana, vinda do Baixo Nível, entre as galáxias Gertrude e Âncora. Sempre inconstante, tratando de seu temperamento. Há boatos de que a metade deles sumiu do mapa, explorados pelo governo, nas minas de Além. A sua culpa: ter seis membros, repletos de força e resistência. Um rosto em pedra, com crateras em vez de órbitas, o dorso espinhento, num verde mais negro e reluzente, e o pouco desenvolvimento social. Não contentes com todos seus atributos, eles lhe deram um machado. De dois gumes, largo e rústico feito seu próprio peitoril.
Ele me responde com um sorriso repleto de dentes e desdém, e então passa a caminhar pela cela e o baque agudo e agourento soa por todo o corredor da prisão.
Pela quinta vez, checo o meu uniforme.
Elmo com orelhas de elfos, cor de prata e salpicado de muitos tons de vermelho, afivelado abaixo do queixo: confere.
Luvas e botas pretas, de couro sintético, à base de cola longânime: confere.
Escudo de metal, retangular, com um metro de comprimento e quarenta centímetros de largura, leve feito pena, preso ao braço esquerdo: confere.
Espadas finíssimas, fabricadas no âmago da árvore Amazona, amoladas por doze tipos de esmeril, com cabos ativos por impressão digital: confere.
Selo do Governo Central — um punho dourado, erguido sobre o planeta Terra, que alcança as estrelas, contendo um anel no dedo anelar com os dizeres “O MELHOR PARA O RESTO DO MUNDO”: confere.
Pai, tenho uma coisa para te contar: agora sou mais uma combatente deles. Vim ver a nossa antiga casa e fui recebida com tiros e algemas. Você estava certo.
O Resto do Mundo está sob as sombras, e eu juro que procurei a Lua.
Cheguei aqui há dois meses terrenos. Notah veio comigo. Roubamos uma nave na estação dos Corvá e desativamos a visibilidade, sem entrar pelo canal das espirais. Notah tinha os olhos semicerrados e vivia gritando pelos interfones para que alguém de algum lugar enviasse uma dica sobre a Terra. Ele dizia: alguém sabe me dizer como se chega no lugar onde mora a Lua? Esperamos por um mês e meio até que outra voz além das que ouvíamos bradou pela cabine:
— SIGAM O CRUZEIRO!
O que me fez lembrar de você e da vez em que me contou que seu pai paulistano amava observar essa constelação. Demorou um pouco, mas por fim descobri o que aquilo significava. Eu assumi a direção do nosso destino. Nunca tinha pilotado nada além da Margô, e por isso sofremos alguns tênues desvios. Notah bufava e franzia aquelas sobrancelhas em forma de til, porém nas vezes em que o sono me vencia ele gentilmente assumia os controles.
Pai, eles o espancaram. Cortaram todas as pontas dos seus dedos e perfuraram seus olhos. Eu ouvi todos os gritos daqui da cela e não pude fazer nada, a não ser chorar. Meu cabelo assumiu um tom pardo-escuro e flutuo por alguns segundos apenas. Pai, eu sou mais um Ser Escravo.
***
O sino soa, e a voz do narrador preenche todo ar em minha volta. É agora. Não há mais tempo.
Ligo o visor. Uma luz âmbar brilha e algumas palavras desconhecidas vão surgindo de baixo para cima, tendo no fim de cada parágrafo as duas únicas legíveis: pelo recomeço. Assim, as trancas da porta gradeada se soltam e minhas botas me obrigam a dar passos seguros e firmes. Posso pressentir o clarão beijar a minha pele e quem sabe... cegar a minha alma. Contudo, tenho esperança de que o sol me traga força. Todo tipo de força, pai.
Quando ponho os pés na arena, sou inundada pela cacofonia. Continuo firme e seguindo para o círculo vermelho bem no centro. Não olho para trás; nada que eu deixei ali poderia me ajudar ou me servir como inspiração. Além do mais, Notah está no pavilhão à frente, logo atrás do brutamontes. Se eu conseguisse flutuar um pouco mais alto ia vê-lo, atrás das grades, emanando vida apesar da dor.
As arquibancadas estão apinhadas; as colunas que sustentam os seis andaimes, ainda que estreitas, permanecem seguras, de uma luz oleosa, como a maioria das vigas que formam o círculo-base. Encimada por telhas platinadas, todo esse prédio parece gloriar-se na minha desgraça. A esfera de segurança está ativada, vejo em um relance, bem no topo, ampliando um lençol translúcido, que cai sobre nós, inevitavelmente: o escudo. O tablado sob meus pés é semelhante a um espelho, dividido em inúmeras placas renováveis, ou seja, se afetadas, elas se regeneram em segundos. Não ouso contemplá-lo, pois se eu olhar para baixo tenho certeza de que verei, ali, o meu medo refletido. As centenas de pessoas bradam gritos de batalha e cantam hinos de vitória, mas não para mim, e sim para o meu oponente. Ele é o único amado de nós. Até que um outro seja capturado e o derrote. Até que sua monstruosidade seja suficiente para merecer aplausos, eu sei. E não há mais tempo.
Eu saco as espadas. O narrador soa surpreso com a minha atitude. O brutamontes gargalha e me olha bem nos olhos. Esses meus olhos, iguais aos da minha mãe, a parte extraterrestre de mim. A parte que os humanos aprenderam a odiar. Grandes e completamente pretos.
Eu respiro.
Eu me preparo.
Eu estou perdida.
O narrador e sua voz metálica ecoam mais uma vez, e na voz não há nem uma insinuação de misericórdia ou empatia. É só uma garota estranha, de um lugar estranho, lutando contra um ser de dois metros para se manter viva.
— Venha, menininha, quero acabar com isso logo — diz a outra criatura. Uma voz cheia e rústica, semelhante a um rugido. Eu obedeço. Tenho de obedecer. Além do mais, avistei quatro atiradores nas arquibancadas esperando que eu resista para que possam iluminar o meu corpo em questão de segundos. Acima da arena, o domo translúcido e volátil é a palavra final: não há escapatória.
Ergo as espadas. Elas me parecem tão familiares agora. Depois de inúmeros treinos e dois combates, posso crer que elas saibam mais dos meus medos do que eu mesma, já que o tremor que me acomete está de volta e flui pelos pulsos até as unhas, transcendendo o tecido das luvas. E ainda que eu tente ser prática, seca e insensível, algo me diz que ali embaixo daquele couro esverdeado e cheio de cicatrizes encontra-se um coração. Minha ansiedade corrói as minhas entranhas ao ponto de eu querer vomitar.
— Lutem!
Ergo o escudo e espero. Vou ser o extraterrestre mais centrado que os humanos já viram. O brutamontes pisa e cada passo seu carrega um estampido duro e assustador. Preciso, ele desce os punhos unidos sobre mim com um grunhido. Rolo para a esquerda. O coração subindo pela garganta. Serei ágil e esperta, sei que terei minha oportunidade. Estou decidida: vou matar essa estrela que eles amam. Vou fincar uma lâmina naquele coração. É o único jeito.
Nos mantemos distantes, andando em círculo. Ele poderia lançar aquele machado com toda sua majestade e me dividir ao meio. Mas eu já saquei a sua intenção, e é cruel. Ele me fará cansar e sofrer antes que tire a luz dos meus olhos. Paro. Forças sobrenaturais tomam conta dos meus pés; acima da cacofonia abro a boca e grito:
— Não sou seu brinquedo!
O brutamontes não ri dessa vez. Em vez disso, ele me analisa, eu sei. Aqueles olhos rasgados, triangulares e sem cílios me percorrendo maliciosamente. Aperto minhas mãos envoltas às espadas, junto os pés e prendo o ar nos pulmões por um instante, inflando minha caixa torácica metade humana metade extraterrestre. E sorrio pretenciosa e ironicamente.
— Vou arrancar esses seus lábios arrogantes, menina.
Pai, eu sou forte, sabia? Porque o brutamontes corre contra mim e me lança a uns seis metros sem que eu possa me defender. As minhas espadas voam pelos ares e tilintam junto com o baque que a minha cabeça causa ao se chocar com o chão, tornando-se uma só música.
As arquibancadas se transformam em sons ininteligíveis, grotescos e rudes. Não preciso saber o idioma. A minha nuca lateja em níveis nunca antes sentidos, meus cotovelos ardem e eu sei que eles não se importam. Sou só mais um Ser Escravo.
Me ergo. Eu já venci duas vezes. Graças às regras, sou permitida a buscar o escudo e as minhas armas. A viseira do elmo acende novamente, dessa vez num brilho amarelado. As duas únicas palavras legíveis: rendição e morte. Alcanço as espadas e em seguida o escudo, e só então noto uma leve fissura num canto inferior da minha pobre e única defesa.
Quando de volta ao círculo, fecho os olhos. “Deixe o ânimo correr pelas veias.” Arrasto a ponta das espadas e arranco algumas faíscas do piso. O narrador faz uma curta contagem regressiva e brada JÁ!
Eu corro, pai. Pé em pé, firme como uma torre de vigia dos malirianos. Desvio do primeiro soco e escorrego sob as pernas do meu oponente. Levanto num salto e risco o ar na esperança de feri-lo. Um jato de líquido azul-escuro mancha a minha coxa esquerda. Olho de relance para a espada e comprovo: foi um corte relativamente profundo. Me ponho em posição de ataque novamente.
— Criança, me fez cócegas.
Cruzo as espadas e início outra investida. Dessa vez, uso o que sobrou da minha habilidade e fluo por sobre o machado e um dos antebraços da criatura e o chuto no rosto. Sem pensar, dou uma pirueta e movo as espadas para baixo, com força e ânimo sanguíneo. Mas é tarde demais quando percebo que os braceletes que o brutamontes usa são indestrutíveis.
Outro lançamento. Outro baque. Outra música. Dor imensurável, sendo esse o seu título. Meus tornozelos me fazem desejar arrancá-los. O latejo da nuca alcança os ouvidos e me deixa meio surda. O escudo se partiu, eu sei.
Me ergo. Busco as espadas e volto ao círculo. As muitas vozes ao redor cantam a minha morte. O meu oponente, outro extraterrestre, zomba descaradamente de mim. Estou perdida. Checo o uniforme. As luvas estão se descosturando e o meu mindinho esquerdo está de fora. As botas ainda jazem intactas, agora menos lustrosas pelo sangue coagulado. O selo pende sobre meus seios.
Arrasto as espadas. Corro e flutuo, dessa vez orando para que eu alcance a altura ideal. Corto o ar feito um cometa e me esgueiro por entre os dedos do brutamontes, e pressinto o que virá a seguir e até chego a ver o seu rosto, pai, mas de repente...
Um alto e agudo estampido cala a cacofonia. Acima de nós, uma chuva de farelos translúcidos e moles começa a cair, vagarosamente, e todas as portas gradeadas se abrem ao mesmo tempo. Liberdade, pai. Parece que algo ou alguém quebrou o sistema. As multidões das arquibancadas permanecem perplexas. E sem que eu perceba, estou flutuando em direção à cela de alguém.
Encontro Notah no meio do caminho e ele me injeta uma nova dose de ânimo, pai. Ele é o combustível que me faz vibrar em meio a essa confusão. Eu nos ergo, esperançosos e incrédulos, e voo como nunca antes. O garoto-lagarto se agarra a mim e seu sorriso é a primeira estrofe de uma nova música.
É agora, pai. Eu o beijo, com força e profundamente. E o meu coração se contrai e logo explode como uma supernova.
Onde mora a lua.