Onde Mora a Lua

Sci-Fi
Dezembro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Cyberlife

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Onde Mora a Lua
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Querido pai,

Você estava certo. Eu não devia ter saído de casa. Mas como sempre... Fui teimosa.

Você disse que nosso antigo mundo esteve bem por um tempo, lembra? E isso ficou ecoando em minha mente por todos os dias, por todas as horas e por todos os minutos desde então. E por isso essa é a maior causa da minha fuga, se você quer saber.

Não vou pedir perdão.

Eu escolhi. As bonanças são minhas tanto quanto as maldições. Foi você quem me ensinou a suportar o peso, mesmo quando ele for um brutamontes esverdeado de quatro braços, com dentes feito adagas prateadas de um brilho etéreo e infinito.

Você gostava de dizer que era infinito. Eu acreditava, sabia? Até os dez ou onze anos, eu ainda me questionava como era possível; te achava uma enciclopédia ambulante. E você sempre foi mesmo, principalmente quando explicou sobre a Supernova Mais Bela.

A Supernova Mais Bela foi filmada pelo Jeq. Lembra do Jeq? Aquele careca subiu por uns quinhentos metros com a nossa nave Margô, ligou o modo de pairar, abriu a janela-filtro e soltou: “Porra, isso é lindo demais!”

Depois, ele inclinou a cabeça e a câmera acoplada ao antigo capacete de astronauta capturou a arte espacial mais esperada do século. Pai, eu trouxe essa foto comigo. Vi no verso as palavras infinitas daquele dia. Elas se tornaram meu mantra oficial.

Toda luz é a verdade;

Toda luz é paixão que vivifica o homem.

Essa explosão é o maior amor e o infinito se explodindo, se repartindo, entregando-se aos seres como doses de ânimo. Deixe o ânimo correr pelas veias.

Deixe o ânimo correr pelas veias.      

Pai, conheci um garoto-lagarto. Ele tem os olhos mais esquisitos e chamativos dos quatro cantos do espaço — espera, só para constar, quero dizer que eu sei que o espaço tem muitíssimos cantos além dos que eu já ouvi falar. Ele se chama Nota e vive dizendo que as estrelas consecutivas nasceram juntas e morrerão juntas. Às vezes eu replico, no entanto, meus argumentos parecem meio bobos e desconexos. Pai, ele pisca quando diz o meu nome. Lisa. Mas não daquela forma comum, e sim de um jeito suave e meio doce. Eu sei, ele gosta dos tênis alados que ganhou da tripulação do Dragão Azul mais do que de mim. Não me importo, só preciso e oro para que aqueles olhos me vejam para sempre.

Pai, eu sei que estou sendo chata, técnica e repetitiva...  Eu só não tenho mais tempo. Seria bem melhor que eu lhe contasse sobre o Dragão Azul. Eles sempre me serviam um bolo mole de manhã; gargalhavam sempre também quando eu vomitava, porque a) tinha algo semelhante a alho; b) era molenga e não mole, sabe, e movia-se como um ser vivo medonho da margem do espaço; e c) havia umas bolinhas roxas, ardidas até a morte — sem exagero.


***


Eu olho o brutamontes mais uma vez. E imediatamente lembro-me das histórias que a mamãe contava, aquelas que terminavam com final feliz. A maior raça reptiliana, vinda do Baixo Nível, entre as galáxias Gertrude e Âncora. Sempre inconstante, tratando de seu temperamento. Há boatos de que a metade deles sumiu do mapa, explorados pelo governo, nas minas de Além. A sua culpa: ter seis membros, repletos de força e resistência. Um rosto em pedra, com crateras em vez de órbitas, o dorso espinhento, num verde mais negro e reluzente, e o pouco desenvolvimento social. Não contentes com todos seus atributos, eles lhe deram um machado. De dois gumes, largo e rústico feito seu próprio peitoril.

Ele me responde com um sorriso repleto de dentes e desdém, e então passa a caminhar pela cela e o baque agudo e agourento soa por todo o corredor da prisão. 

Pela quinta vez, checo o meu uniforme.

Elmo com orelhas de elfos, cor de prata e salpicado de muitos tons de vermelho, afivelado abaixo do queixo: confere.

Luvas e botas pretas, de couro sintético, à base de cola longânime: confere.

Escudo de metal, retangular, com um metro de comprimento e quarenta centímetros de largura, leve feito pena, preso ao braço esquerdo: confere.

Espadas finíssimas, fabricadas no âmago da árvore Amazona, amoladas por doze tipos de esmeril, com cabos ativos por impressão digital: confere.

Selo do Governo Central — um punho dourado, erguido sobre o planeta Terra, que alcança as estrelas, contendo um anel no dedo anelar com os dizeres “O MELHOR PARA O RESTO DO MUNDO”: confere.

Pai, tenho uma coisa para te contar: agora sou mais uma combatente deles. Vim ver a nossa antiga casa e fui recebida com tiros e algemas. Você estava certo.

O Resto do Mundo está sob as sombras, e eu juro que procurei a Lua.

Cheguei aqui há dois meses terrenos. Notah veio comigo. Roubamos uma nave na estação dos Corvá e desativamos a visibilidade, sem entrar pelo canal das espirais. Notah tinha os olhos semicerrados e vivia gritando pelos interfones para que alguém de algum lugar enviasse uma dica sobre a Terra. Ele dizia: alguém sabe me dizer como se chega no lugar onde mora a Lua? Esperamos por um mês e meio até que outra voz além das que ouvíamos bradou pela cabine:

— SIGAM O CRUZEIRO!

O que me fez lembrar de você e da vez em que me contou que seu pai paulistano amava observar essa constelação. Demorou um pouco, mas por fim descobri o que aquilo significava. Eu assumi a direção do nosso destino. Nunca tinha pilotado nada além da Margô, e por isso sofremos alguns tênues desvios. Notah bufava e franzia aquelas sobrancelhas em forma de til, porém nas vezes em que o sono me vencia ele gentilmente assumia os controles.

Pai, eles o espancaram. Cortaram todas as pontas dos seus dedos e perfuraram seus olhos. Eu ouvi todos os gritos daqui da cela e não pude fazer nada, a não ser chorar. Meu cabelo assumiu um tom pardo-escuro e flutuo por alguns segundos apenas. Pai, eu sou mais um Ser Escravo.


***


O sino soa, e a voz do narrador preenche todo ar em minha volta. É agora. Não há mais tempo.

Ligo o visor. Uma luz âmbar brilha e algumas palavras desconhecidas vão surgindo de baixo para cima, tendo no fim de cada parágrafo as duas únicas legíveis: pelo recomeço. Assim, as trancas da porta gradeada se soltam e minhas botas me obrigam a dar passos seguros e firmes. Posso pressentir o clarão beijar a minha pele e quem sabe... cegar a minha alma. Contudo, tenho esperança de que o sol me traga força. Todo tipo de força, pai.

Quando ponho os pés na arena, sou inundada pela cacofonia. Continuo firme e seguindo para o círculo vermelho bem no centro. Não olho para trás; nada que eu deixei ali poderia me ajudar ou me servir como inspiração. Além do mais, Notah está no pavilhão à frente, logo atrás do brutamontes. Se eu conseguisse flutuar um pouco mais alto ia vê-lo, atrás das grades, emanando vida apesar da dor.

As arquibancadas estão apinhadas; as colunas que sustentam os seis andaimes, ainda que estreitas, permanecem seguras, de uma luz oleosa, como a maioria das vigas que formam o círculo-base. Encimada por telhas platinadas, todo esse prédio parece gloriar-se na minha desgraça. A esfera de segurança está ativada, vejo em um relance, bem no topo, ampliando um lençol translúcido, que cai sobre nós, inevitavelmente: o escudo. O tablado sob meus pés é semelhante a um espelho, dividido em inúmeras placas renováveis, ou seja, se afetadas, elas se regeneram em segundos. Não ouso contemplá-lo, pois se eu olhar para baixo tenho certeza de que verei, ali, o meu medo refletido. As centenas de pessoas bradam gritos de batalha e cantam hinos de vitória, mas não para mim, e sim para o meu oponente. Ele é o único amado de nós. Até que um outro seja capturado e o derrote. Até que sua monstruosidade seja suficiente para merecer aplausos, eu sei. E não há mais tempo.

Eu saco as espadas. O narrador soa surpreso com a minha atitude. O brutamontes gargalha e me olha bem nos olhos. Esses meus olhos, iguais aos da minha mãe, a parte extraterrestre de mim. A parte que os humanos aprenderam a odiar. Grandes e completamente pretos.

Eu respiro.

Eu me preparo.

Eu estou perdida.

O narrador e sua voz metálica ecoam mais uma vez, e na voz não há nem uma insinuação de misericórdia ou empatia. É só uma garota estranha, de um lugar estranho, lutando contra um ser de dois metros para se manter viva.

— Venha, menininha, quero acabar com isso logo — diz a outra criatura. Uma voz cheia e rústica, semelhante a um rugido. Eu obedeço. Tenho de obedecer. Além do mais, avistei quatro atiradores nas arquibancadas esperando que eu resista para que possam iluminar o meu corpo em questão de segundos. Acima da arena, o domo translúcido e volátil é a palavra final: não há escapatória.

Ergo as espadas. Elas me parecem tão familiares agora. Depois de inúmeros treinos e dois combates, posso crer que elas saibam mais dos meus medos do que eu mesma, já que o tremor que me acomete está de volta e flui pelos pulsos até as unhas, transcendendo o tecido das luvas. E ainda que eu tente ser prática, seca e insensível, algo me diz que ali embaixo daquele couro esverdeado e cheio de cicatrizes encontra-se um coração. Minha ansiedade corrói as minhas entranhas ao ponto de eu querer vomitar.

— Lutem!

Ergo o escudo e espero. Vou ser o extraterrestre mais centrado que os humanos já viram. O brutamontes pisa e cada passo seu carrega um estampido duro e assustador. Preciso, ele desce os punhos unidos sobre mim com um grunhido. Rolo para a esquerda. O coração subindo pela garganta. Serei ágil e esperta, sei que terei minha oportunidade. Estou decidida: vou matar essa estrela que eles amam. Vou fincar uma lâmina naquele coração. É o único jeito.

Nos mantemos distantes, andando em círculo. Ele poderia lançar aquele machado com toda sua majestade e me dividir ao meio. Mas eu já saquei a sua intenção, e é cruel. Ele me fará cansar e sofrer antes que tire a luz dos meus olhos. Paro. Forças sobrenaturais tomam conta dos meus pés; acima da cacofonia abro a boca e grito:

— Não sou seu brinquedo!

O brutamontes não ri dessa vez. Em vez disso, ele me analisa, eu sei. Aqueles olhos rasgados, triangulares e sem cílios me percorrendo maliciosamente. Aperto minhas mãos envoltas às espadas, junto os pés e prendo o ar nos pulmões por um instante, inflando minha caixa torácica metade humana metade extraterrestre. E sorrio pretenciosa e ironicamente.

— Vou arrancar esses seus lábios arrogantes, menina.

Pai, eu sou forte, sabia? Porque o brutamontes corre contra mim e me lança a uns seis metros sem que eu possa me defender. As minhas espadas voam pelos ares e tilintam junto com o baque que a minha cabeça causa ao se chocar com o chão, tornando-se uma só música.

As arquibancadas se transformam em sons ininteligíveis, grotescos e rudes. Não preciso saber o idioma. A minha nuca lateja em níveis nunca antes sentidos, meus cotovelos ardem e eu sei que eles não se importam. Sou só mais um Ser Escravo.

Me ergo. Eu já venci duas vezes. Graças às regras, sou permitida a buscar o escudo e as minhas armas. A viseira do elmo acende novamente, dessa vez num brilho amarelado. As duas únicas palavras legíveis: rendição e morte. Alcanço as espadas e em seguida o escudo, e só então noto uma leve fissura num canto inferior da minha pobre e única defesa.

Quando de volta ao círculo, fecho os olhos. “Deixe o ânimo correr pelas veias.” Arrasto a ponta das espadas e arranco algumas faíscas do piso. O narrador faz uma curta contagem regressiva e brada JÁ!

Eu corro, pai. Pé em pé, firme como uma torre de vigia dos malirianos. Desvio do primeiro soco e escorrego sob as pernas do meu oponente. Levanto num salto e risco o ar na esperança de feri-lo. Um jato de líquido azul-escuro mancha a minha coxa esquerda. Olho de relance para a espada e comprovo: foi um corte relativamente profundo. Me ponho em posição de ataque novamente.

— Criança, me fez cócegas.

Cruzo as espadas e início outra investida. Dessa vez, uso o que sobrou da minha habilidade e fluo por sobre o machado e um dos antebraços da criatura e o chuto no rosto. Sem pensar, dou uma pirueta e movo as espadas para baixo, com força e ânimo sanguíneo. Mas é tarde demais quando percebo que os braceletes que o brutamontes usa são indestrutíveis.

Outro lançamento. Outro baque. Outra música. Dor imensurável, sendo esse o seu título. Meus tornozelos me fazem desejar arrancá-los. O latejo da nuca alcança os ouvidos e me deixa meio surda. O escudo se partiu, eu sei.

Me ergo. Busco as espadas e volto ao círculo. As muitas vozes ao redor cantam a minha morte. O meu oponente, outro extraterrestre, zomba descaradamente de mim. Estou perdida. Checo o uniforme. As luvas estão se descosturando e o meu mindinho esquerdo está de fora. As botas ainda jazem intactas, agora menos lustrosas pelo sangue coagulado. O selo pende sobre meus seios.

Arrasto as espadas. Corro e flutuo, dessa vez orando para que eu alcance a altura ideal. Corto o ar feito um cometa e me esgueiro por entre os dedos do brutamontes, e pressinto o que virá a seguir e até chego a ver o seu rosto, pai, mas de repente...

Um alto e agudo estampido cala a cacofonia. Acima de nós, uma chuva de farelos translúcidos e moles começa a cair, vagarosamente, e todas as portas gradeadas se abrem ao mesmo tempo. Liberdade, pai. Parece que algo ou alguém quebrou o sistema. As multidões das arquibancadas permanecem perplexas. E sem que eu perceba, estou flutuando em direção à cela de alguém.

Encontro Notah no meio do caminho e ele me injeta uma nova dose de ânimo, pai. Ele é o combustível que me faz vibrar em meio a essa confusão. Eu nos ergo, esperançosos e incrédulos, e voo como nunca antes. O garoto-lagarto se agarra a mim e seu sorriso é a primeira estrofe de uma nova música.

É agora, pai. Eu o beijo, com força e profundamente. E o meu coração se contrai e logo explode como uma supernova.

Onde mora a lua.


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