Prólogo
Epílogo
Conto
Nesse lugar, onde o governo sempre esteve ausente e a lei nunca penetrou, existe um submundo, ou melhor, um universo próprio, disforme por natureza. Um paraíso para os antropólogos culturais, oásis para dependentes químicos e meca das mais diversas, bizarras e antiéticas tecnologias do nosso século. Nesse biótopo, regido pelo darwinismo social mais ortodoxo, vários seres vagam por ruas inóspitas, com seus arranha-estrelas contendo mininações. Uma partícula do macrocosmo metauniversal.
No início, era o imigrante, e o imigrante chegou àquelas vielas fétidas e viu que tudo era bom... Ao menos era melhor que não ter onde morar. O imigrante não foi bem recebido; aquele bairro era um depósito de segregados subdesenvolvidos olvidados pelas autoridades.
Logo, chegaram outros imigrantes trazidos por mar através de botes, os barcos improvisados balouçavam com o menor agitar das ondas; muitos atravessavam a fronteira a pé. Cada dia mais chegavam pessoas das mais diversas etnias e raças. Aos poucos, o bairro crescia nas três dimensões. Os megacomplexos habitacionais nunca ficavam prontos, o seu crescimento demográfico cancerígeno criou uma onda de invasão em massa às infraestruturas superfaturadas. O Big Stick comeu solto, mas não impediu que as pessoas tomassem posse dos edifícios, e depois de uma vergonhosa campanha de violência gratuita o Estado recuou; sua imagem estava ferida pela opinião pública às luzes do pseudo-humanismo.
Sob a égide da sobrevivência, o perseguido e o xenófobo deram as mãos e passaram a coexistir, se não pacificamente, ao menos num nível funcionalista. O estado de aculturação ganhou uma nova face. As gírias ganharam cada vez mais verbetes até se tornarem dialetos próprios, que ganhava grafia nas pichações nos muros, prédios ou qualquer local onde o emblema de uma quadrilha ou facção pudesse marcar território.
Além dos traficantes e seus subgêneros, ladrões vulgares, profissionais do sexo, hackers e mula de dados passaram a engrossar a lista de foragidos da polícia, buscando como refúgio a zona, que de tão distante de qualquer instituição político-social começou a cair num estranho esvanecimento consentido. As escolas fechavam, postos de saúde se tornavam clínicas clandestinas e as forças de segurança se retiraram em definitivo.
O lugar ganhou o nome de Bairro Esquecido; nada entrava que não fosse ruim e nada saía que não fosse pior. O tráfico de tecnologia se tornou um dos cartões postais. Hackers criavam startups de gestão da percepção, ganhando dinheiro com fake news.
Eles camuflavam negócios e relações ilícitas através de moedas digitais nas bolsas de valores. Líderes do crime organizado do Bairro Esquecido eram sócios de empresas multinacionais, e com fortunas invejáveis a muitos CEO de megacorporações e zaibatsus. Os hackers, bem como os seus coirmãos crackers, eram aceitos em todos os grupos, desde que tivessem talento para invadir, processar, roubar e transmitir dados pelo ciberverso. Muitos participavam de equipes ou trabalhavam como lobos cibernéticos. Os ciberterroristas, devido ao seu caráter pró-anarquista, não costumavam ser bem vistos pelas demais maltas da paragem. Atuavam em ações crackers isoladas, destruindo datacenter e tomando controle de servidores, enviando sinais piratas pela rede mundial de computadores. Os grupos ciberterroristas eram os únicos que não podiam ser comprados!
Embora ações do ciberterrorismo fossem um dos maiores ganha-pão de hackers e crackers, esses ficavam encobertos por seus crimes, pois muitos grupos ciberterroristas reivindicavam esses ataques para si.
Foi na segunda geração, quando o neopunk invadiu os fones de ouvido de garotos de nariz escorrendo das ruas transversais, androides chegaram ao Bairro Esquecido, fugidos do sistema de autodilapidação da sua existência artificial gravada em circuitos cerebrais biotrônicos, em detrimento dos cérebros positrônicos de platina-irídio.
O cérebro biotrônico, criado por moléculas de grafeno e células-tronco em tubos de ensaio em laboratórios assépticos, foi o ápice do desenvolvimento da biotecnologia. Uma técnica de desenvolvimento de androides em conceito biohacking, evoluindo em embriomecânica. A cibergenética aplicada possibilitou o surgimento de vidas artificiais autônomas. Seres que se desenvolviam não através de absorção de substâncias, mas sim de estímulos radioativos.
Os androides não estavam mais sob as antigas leis da robótica, per se conflituosas.
As novas leis da robótica conferiam um grau de moralidade aos androides e IAs. O primeiro robô a se refugiar no Bairro Esquecido trabalhava como sósia de um ídolo pop decadente, mergulhado em drogas sintéticas customizadas. Sua busca era por uma cirurgia plástica, mas acabou mudando muito mais que o rosto. As técnicas avançadas de transplantes simbiônicos deram ao sósia não apenas uma identidade única, mas também uma condição mais humana.
O Bairro Esquecido se tornou um dos mais requisitados lugares para turismo cirúrgico depois da fama do androide. O local, regido pela própria lei, ou melhor, pelas suas regras autoimpostas, começou a estabelecer relações mais estreitas com os governos de todos os hemisférios, conexões menos belicosas e extremamente subterrâneas.
Embora, a essa época, o transumanismo ainda fosse debatido na OMS, projetos de lei e emendas constitucionais já rastejavam pelo baixo clero dos parlamentos para aplicar métodos de biohacking para garantir seres transumanos. Os governos totalitários viram aí uma nova possibilidade para manter sua hegemonia política, as DNArmas se tornaram tão comuns e repugnantes quanto os drones.
As subculturas foram se enriquecendo, seja através de cyberware ou dos bancos de dados genômicos. Os movimentos LBTQ+ nunca tiveram tanta voz quanto nesse período.
Nesse vanguardismo existencial, o programa da NASA, o chamado SETI, que buscava se comunicar com vida inteligente fora do planeta Terra, finalmente conseguiu avanços. Os telescópios de ondas de rádio detectaram emissões de sinais no espectro eletromagnético do espaço sideral. O sinal enviado muitas décadas antes da constelação de Hércules se repetiu na borda de nosso sistema solar. Quando os cientistas se deram conta, os extraterrestres já estavam na órbita de Júpiter. Só depois disso a comunicação se deu de modo mais prático e efetivo. A mensagem era curta e clara: socorro!
Seja lá quais eram os motivos, eles estavam fugindo. De uma catástrofe natural? Da fome? Da Guerra? Ninguém sabia dizer; mais misterioso ainda foi que o Conselho de Segurança da ONU permitiu sua entrada em nossa atmosfera. O tempo estimado da descida compreendia o nascer de um quarto de século. Um campo de pouso do tamanho de uma megalópole foi construído na Linha do Equador para receber os refugiados alienígenas. Entretanto, os planos foram sabotados pela natureza. Fortes tempestades solares criaram um tipo de desorientação e a gigantesca nave caiu próximo dum pedaço do Bairro Esquecido, causando a morte de milhões de humanos, ciborgues, androides e transumanos. A tragédia, no entanto, não diminuiu o interesse das nações na tecnologia alien.
O território onde a nave caiu e o modo debilitado dos extraterrestres acabaram refreando a sede dos Estados. A biotecnologia e as pesquisas bélicas tiveram que esperar um pouco mais. O contato entre terráqueos e os alienígenas humanoides não foi dos mais amigáveis no começo, mas, como havia muito mais semelhanças que diferenças entre as duas raças planetárias, logo os muros cederam lugar às pontes, dentre essas “pontes”, a violência e a marginalização.
Em troca de armas e sexo inter-racial, os aliens garantiram os víveres básicos e uma paz frágil foi sendo moldada. Aos poucos, os alienígenas abandonaram sua nave sucateada e em ruínas e acabaram se inserindo no Bairro Esquecido. A disputa entre as gangues e grupos criminosos pela convocação dos aliens em suas colunas acabou supervalorizando a mão de obra extraterrestre. Os grupos ciberterroristas ficaram felizes de eles terem domínio de tecnologia cibernética.
Os que mais odiavam os alienígenas eram os grupos extremistas religiosos monoteístas, que viam nos extraterrestres seres demoníacos.
Embora a maior parte dos aliens houvessem ficado no Bairro Esquecido, muitos outros resolveram se dispersar pelo mundo afora. O aumento do contato entre terráqueos e aliens criou novas relações a nível superestrutural. A face ideológica dos habitantes da Terra teve que mudar drasticamente, pois todos os seus valores precisaram ser radicalmente transvalorados. O próprio conceito de humanidade se perdia em construções socioculturais. As máquinas se humanizavam, e os homens se tornavam máquinas abaixo do sol. Mutações provocadas por radiação nuclear, pelo lixo químico e as malfadadas experiências com DNArmas criaram sub-raças; a mestiçagem de homens e alienígenas por relações sexuais, bem como os avanços na decodificação do genoma dos extraterrestres, fez surgir novos seres sencientes no planeta, aumentando a fauna de humanoides do globo.
Cada dia mais os ataques terroristas e alienófobos tinham suas estatísticas atualizadas rapidamente. Os extremistas religiosos monoteístas se uniram sob uma única bandeira e espalharam suas células pelo mundo cada vez menor. Mais uma vez a opinião pública se mobilizou e a ONU foi acossada por uma série de grupos ativistas e simpatizantes dos extraterrestres que já eram considerados cidadãos por muitos países. Estados teocráticos ou de maioria religiosa fundamentalista não apoiavam qualquer cessão de direitos e eram acusados de financiar o terror antialienígena. Grupos contra os aliens digladiavam-se nas ruas com grupos pró-aliens. O ciberverso foi tomado por uma série de ataques ciberterroristas. Dentre esses ataques de intensão cracker, teve como alvo o database da ONU, onde o cadastro dos alíens era mantido e alimentado por governos e grupos científicos ao redor do mundo.
Os alienígenas começaram a formar milícias para se protegerem, utilizando de táticas de guerrilha eficientes.
Quando estávamos prestes a ver uma horrível guerra civil, o Conselho de Segurança mobilizou as Forças de Paz para proteger os terráqueos uns dos outros. Os conflitos diminuíram, mas não deixaram de ocorrer. Como o clima de hostilidades não acabava nunca, clãs longevos, multibilionários excêntricos e até pequenas etnias inteiras se mudaram para colônias espaciais geoestacionárias, um evento que passou para a história como Êxodo Estelar. Construídas através de lançamentos de módulos, a órbita celeste adquiriu dezenas de estruturas de metal cromado abrigando cidades com domos de liga de grafeno e polímero de alta densidade.
A superpopulação acabou perdendo alguns dígitos no processo, agora a preocupação era com a diminuição dos poluentes químicos, orgânicos e radioativos. O ar puro era cada vez mais caro e escasso, as placas tectônicas sofriam com as variações de elementos minerais e a ausência de hidrocarbonetos, as correntes marítimas se alteravam com a morte de corais e o continente de lixo que se juntava no Oceano Pacífico, perto da extinta Polinésia, as ilhas sucumbiram com o avanço do nível do mar, assim como parte do arquipélago japonês e de países baixos como a Holanda.
Juntas de cientistas desenvolveram novos materiais, leis foram projetadas para diminuir o aquecimento global, o lixo e a poluição; além de instituir colônias legais na Antártida e no Altiplano Ártico.
O Bairro Esquecido cresceu como uma quimera geodemográfica. A conturbação da semipátria lhe conferiu a forma de uma Nação por direito, um Estado em constante anarcocontradição de fato. Sua população continuou inter-racial, interétnica, um verdadeiro mosaico de gêneros, lugar onde ainda hoje as pichações são decorações pós-modernas.