Prólogo
Epílogo
Conto
Quando os peixes-beta chegam aqui na loja, eles estão quase sem vida. Numa caixa de papelão vêm cinquenta saquinhos plásticos, cada um dois terços ar e um terço de soro nutritivo, onde flutua o peixe. O fornecedor me diz que eles vivem bem assim, líquido e ar sendo o mínimo que precisam. Mínimo entendo, mas será que agradável? Então eles chegam aqui, e ficam expostos nestes cubinhos de vidro, na grade de neon. Alguns agradecem o espaço maior e nadam em círculos, outros ficam parados até morrerem.
Dizem que os beta são agressivos por natureza e matam outros peixes por instinto. Logo, devem ficar confinados e afastados. Bom, eu consegui criar alguns aqui no aquário, e eles viviam juntos no mesmo tanque, com algumas outras espécies também. Irmãos e irmãs, sem conflito.
O problema é quando querem colocar o que viveu no plástico e no cubinho neon dentro de um aquário cheio de espécies tropicais. Ele só conhecia o próprio reflexo! Isso é judiar do bicho.
Cuidado, não sente aí! Viu que o tanque ali detrás está quebrado? Marca da confusão de ontem. Não te contei?
Estava fechando a conta da semana quando Bert entrou aqui com uma mina. Acho que você só conhece o Herbert de rosto. Ele é meu amigo da época da escola, um pa- 107 ranoico e ativista autoproclamado que gasta quase tudo que ganha com cibernéticos. Acho que dá para perceber. É que ele gosta deles naquele estilo, como fala? “Open source”, algo assim. Por mim, o deixaram parecendo um robô de filme de videogame.
A moça em que estava agarrado era bem do tipo que ele gosta, os braços inteiros cibernéticos e um capacete neon para o rosto. Achei que estavam bêbados, mas quando ia mandar os dois ralarem é que percebi que a tela dela estava quebrada.
O capacete da moça era uma tela para GIFs, sabe? Ouvi falar que os tímidos curtem isso. Ainda dava para ver alguma coisa das imagens, mas o trincado era enorme e zoava com os pixels. Ela despencou do ombro dele e deu com o cotovelo nesse tanque, jogando estilhaços pela loja toda.
“Temos que esconder ela, man” Bert me falou, “Tem uma turba de gente lá fora, bateram nela, fugimos pra dentro do Mercado, e logo mais estão vindo aí!”.
E eu disse para ele “Calma, calma, o quê vocês fizeram pra irritar toda essa gente?”.
Ela falou nada, só tocou na lateral do capacete e compartilhou em tempo real com a gente― Sabe, aquela coisa nova, de fazer aparecer uma tela no ar?― uma notícia bombástica de um site qualquer, que dizia:
HACKERS VAZAM O ID DE TANTOS MILHÕES DE NOMADS
Aí ferrou. Aí eu entendi o que tinha acontecido. “Cê é Nomad?”, perguntei. Ela só confirmou com um aceno da cabeça.
Nem deu outra: ainda bem que era tarde e o Mercado estava quase todo fechado, porque um bando entrou e invadiu algumas lojas, procurando os dois.
E a moça também, viu? Como te disse, a loja tá em reforma, e ali, junto do material de construção, tinha um cano de metal, do tipo que eu uso nas estantes de aquários. Ela se levantou e já pegou o cano pra ir pra cima dos caras sozinha!
Mandei ela parar, mas não consegui tirar a arma daquela mão de metal. Falei para os dois sentarem num canto da loja, aonde não dá pra ver de fora, e fiquei vigiando através dos tanques.
O que eu vi, detrás dos peixes, era bem o rapaz metido a justiceiro daqui do setor. Bombadinho, cabelo de militar, roupa ‘respeitável’, e escondendo alguma coisa debaixo do casaco.
Bem na hora que ele estava colocando o pé dentro da loja, o telefone dele tocou. Levou a mão ao ouvido, e começou a chamar “Mãe? O que foi, mãe? Tá me ouvindo? MÃE?” e saiu andando, tentando achar sinal.
Ouvi o riso de Bert e um chiado baixo dela. A mina entendia do digital, e foi ela que fez a chamada com o número da mãe do cara. Meu amigo então chegou e disse “Olha, eu nem conheço ela. Só tava comprando um pistão novo pro meu braço quando esse pessoal apareceu. Mas não dá pra deixar ela sozinha agora. Deve ter uns vinte caras armados lá fora, e que estão seguindo o ID dela! Além disso, meu,” ele disse, fazendo marra, “de todas as pessoas que eu conheço, ninguém sabe de todos os cantinhos mocados do Mercado Central como você.”
Aí pegou no meu ponto fraco. Tenho orgulho desse meu dom, sabe, porque desde moleque, quando o aquário era do meu avô, eu gostei de mostrar o Mercado para quem é de fora, e até os trabalhadores daqui se admiravam com o quanto eu conhecia o lugar. Comigo, sem essa de maps! Foi um dos motivos de eu ter herdado a loja, e o outro foi porque ninguém mais queria ela, mesmo.
Já me empolguei e comecei a contar todas as entradas e saídas dos dez andares acima e abaixo, quando um sonzinho de protesto me interrompeu. Olhei para a nossa protegida e, mesmo na tela trincada, dava para ver a foto de uma das lojas daqui: a assistência técnica de eletrônicos antigos. “Estava esquecendo”, Bert disse, “ela me passou uma mensagem dizendo que precisa pegar umas coisas nessa loja antes de sair. Ela trabalha lá, sabe? Então esse é o plano, primeiro loja, depois saída, sacou?”
Claro que entendi. Ela queria pegar as coisas dela e se mandar da cidade. É assim que eles sempre fazem: Se os Nomads passam a ser mal vistos em algum lugar, eles se mandam antes de serem mandados embora.
Fechei os olhos e pensei no plano do Mercado. Esta loja ficava uns cinco andares abaixo da minha, e, neste mesmo andar, havia uma garagem de onde dava para ir para a rua. Sem chance de ir de escada ou elevador e não dar de cara com os “justiceiros”, mas eu sabia de outra forma.
Peguei o meu molho de chaves e mandei os dois me seguirem. Antes de ir, ela iluminou o ícone de conexão de internet de seu capacete, e mostrou que estava completamente desconectada da rede. Isto não a deixava indetectável, mas já complicava pros perseguidores.
As chaves? Como eu fecho tarde, alguns lojistas confiam uma chave extra dos estabelecimentos deles a mim, para emergências. E você, já viu o mercado depois do horário comercial? Tem aquele tom desconcertante, que os lugares populosos alcançam quando ficam vazios. Os letreiros e as luzes continuam ligados em muitas lojas, como se quisessem tornar o espaço numa rave, mas, de movimento, só os painéis com as notícias que bombam na rede. E quase tudo falava de Nomads.
É surpreendente, né? De uns anos pra cá, surgiram do nada. Umas notícias antigas falavam coisas tipo “Trabalhadores sem setor definido: conheça os Nomads!”, “Cidades amigáveis aos Nomads só tem a ganhar: descubra como!” e “Nos setores da cidade e nos setores do mundo todo: Seja um Nomad!”. Da forma que colocavam, parecia uma boa, e muita gente entrou nessa, por necessidade ou porque sentiam que ficar entre os três ou quatro prédios de um setor a vida toda não era para eles. Mas aí vieram chamadas como “Nomads acabam com empregos locais!”, “Cuidado: Nomad é disfarce favorito de foragidos!”, “Aumento de homicídios: Nomads de setores violentos espalham a violência, diz estudo” e... Ah, você sabe. As coisas piores, da semana passada. Esses caras sumiram de tudo, até dos maps, porque não são bobos.
Mas não que eles tenham abandonado os setores centrais― lembre que eles não são bobos― É só que agora se mantém às escondidas. Claro, tem multidões que os culpam de todos os problemas que acontecem na vida delas, e costumam apanhar um monte quando são descobertos. Ainda não vi notícias sobre as consequências do vazamento...
Bem, voltando à história, levei os dois até o armazém do Seu Ling, lá no final do corredor. Você sabe que ele é cadeirante, não confia em cibernéticos, e prefere continuar empurrando as velhas rodas. Já se perguntou como ele chega aqui, toda manhã?
Seu Ling instalou um mini elevador no duto de circulação de ar, aquele que corta o prédio de cima a baixo e é tão largo que daria para guardar uns dois carros dentro. A saída é no armazém da Dona Marília, a enteada do Ling, bem no andar do estacionamento.
Da Dona Marília até a assistência foi um pulo. Lá, a moça tirou uma mochila já pronta do meio do lixo eletrônico e estava tudo certo para irmos. Chegando na porta, voltamos para dentro da loja escura: tinham perseguidores de todos os lados. Eles sabiam onde ela trabalhava e estavam esperando.
Ficamos sem ação por um momento. Mas então Bert deu aquele sorriso meio malicioso dele e falou para nós: “Ei Juke, se me passar o seu ID, todos irão atrás de mim por um tempo. Aí o caminho fica livre para você ir até o estacionamento com o César.”
Eu reprovei a ideia maluca logo de cara, mas ela continuou apontando o monitor apagado na direção dele. E então ligou, e entre um monte de linhas do trincado e pixels mortos, surgiu um GIF. Primeiro, um vídeo borrado de alguém correndo. Então, desceram na tela, em vermelho, as palavras “Can you RUN?”, que acho que é alguma coisa sobre correr.
Ele riu e disse para ela “Mina, no colégio ganhei medalha de ouro na corrida dos cem metros! E não me cobri em cibernéticos de Kevlar pra ter medo duns engomadinhos!”
Mesmo com os meus protestos, o plano seguiu. De dentro da própria mochila, ele tirou um capacete que eu nunca tinha visto, uma máscara bem maligna e mais escura que a própria pele dele. O ID foi passado e acessado, e Bert saiu em disparada, gritando uns xingamentos pelo caminho. A turba o seguiu e foi a última vez que eu o vi ontem à noite.
Nós disparamos na outra direção, pelo labirinto do mercado. Tem um momento que todas as passagens e vielas parecem iguais, com a mercadoria importada, as placas em japonês, as telas de notícias, com o número de compartilhamentos que as tornavam verdadeiras.
Suspeito que a tradição mais antiga e fiel do mercado é fazer as pessoas esquecerem que estão no Brasil, antes mesmo da tradição de fazê-las esquecerem de que não precisam comprar nada.
Mas na esquina da “Gato que Acena: Presentes”, chegamos à garagem. Atravessamos pelo meio dos carros sem problemas, mas na última coluna antes da saída da rua, um homem com um facão apareceu e avançou sobre nós.
Me gelou o sangue, mas só aí que percebi que a tal de Juke ainda estava com o cano daqui do aquário. Numa pancada, a faca saiu voando, e aí a moça encheu o sujeito de cacetadas, até as partes dos cibernéticos dele que imitavam pele caírem. Ele era tão mecânico quanto ela, talvez até mais, e, fosse pelo medo ou pelo orgulho ferido, o homem fugiu para dentro do mercado.
Chegamos na rua. Naquele capacete, brilhava “THANKS” e um coração rosa, que só dava para ver a metade por causa do trincado. E aí, sem aviso, a tela ergueu e eu vi o rosto dela.
Achei que seria igual aos braços, cheio de cibernéticos saltados para fora, mas não, era bem normal, até bonito. Ela tinha os olhos amendoados, que nem eu. A pele era bronzeada e ela sorria. Ah... Não vou descrever muita coisa. Quando me mostrou, foi um segredo que ela compartilhou comigo, um segredo que acho que nem o Herbert, nem ninguém do setor conhecia. Mas não sei se vou esquecer os olhos dela tão cedo, olhos quase nunca vistos.
Ela desceu a tela novamente, virou-se e correu pela rua. O casaco e o cano, prateados, se confundindo com os prédios, e a forma dela se esvaindo na névoa.
Poético, não?
É essa a história de ontem à noite. Se ela está bem? Acredito que sim, pelo dinheiro que apareceu na minha conta hoje de manhã. Recebi uma mensagem do Bert de madrugada, avisando que chegou em casa bem. Parece que ele recebeu tudo que ele pagou a ela pelo equipamento, e mais um pouco.
E lá vem você me dizer que todo esse dinheiro é suspeito para uma Nomad. Cibernéticos dão lucro. E mesmo que a origem da grana não for legal, é certo organizar essa caça às bruxas de ontem? Ou deixar ela sozinha, com a multidão atrás? Não sei, não sei. Você não viu os olhos dela. Ah, toda essa é uma situação de peixes beta.