Prólogo
Epílogo
Conto
Um assobio ecoou dentro do quarto, o vento passando por debaixo da porta ao encanar no corredor. Nas paredes, ínfimas reflexões que escapavam pelas brechas do O.I.V., dispositivo de interação virtual que conecta usuários em um mundo digital. Cabos holográficos se estendiam em torno da sua cabeça e conectavam-se ao Integrador fixo em sua nuca, fazendo a conexão entre os sentidos digitais e o sistema nervoso.
Nilli mordia os lábios e cerrava os punhos, encostada inclinada na cadeira suporte. Lágrimas ardiam ao escorrer pelo seu rosto, sem pausas, nem para os olhos encharcados de sal e nem para seu coração, quebrado e aos prantos como o todo.
Em versos secretos, dentro da Nuvem, ela descarregava o fardo que cansava seus ombros, ou ao menos tentava. Memórias se acendiam em sua mente, a levando em um mergulho intenso na Fissura, um bug até hoje incompreensível na Nuvem. Aos poucos, os pensamentos começaram a embaralhar e um nó na garganta a sufocava, sentiu o corpo arrepiar ao recordar o que a levara até ali, aquele momento.
Ela se sentia sozinha, sempre foi sozinha, mas agora isso incomodava.
Se levantou e caminhou até a janela, inseriu na Nuvem as últimas linhas de código, retirou o dispositivo, co- 24 nectou-se, agora de maneira remota, por um plug direto no Integrador e foi até a porta, pegou um casaco e um maço de cigarros e saiu. Apreensiva, uma notificação acendeu na lateral do seu campo de visão. O plug, como o O.I.V., a mantinha conectada, mas de maneira genérica, e todo o conteúdo era refletido em suas lentes de contato, assim como suas respostas e ações que eram interpretadas através da retina e transformadas em dados.
“Não faça isso, Nilli!” ela tentou ignorar. “Finalmente vamos acabar com esse cerco e derrubar o sistema, mas precisamos de você.”
Ela esbarrou em um rapaz que passava apressado, e, nos breves segundos que parou, olhando para trás enquanto o rapaz sumia na multidão, pingos finos logo engrossaram e a chuva transformou o cenário. Nas ruas, mensagens, propagandas, imagens e incontáveis e incontroláveis informações criavam uma mistura fluida de cores, refletidas nos vidros dos arranha-céus, nos veículos terrestres e aéreos e no chão, encharcado pela chuva.
Nilli continuou caminhando, apertou as mãos dentro do casaco e sentiu seu cantil, abriu com cuidado e, sem se incomodar com nada ao seu redor, deu um longo gole. Tirou um pouco da água do rosto com a manga do casaco e jogou os cabelos molhados da face para trás, junto às mechas presas em uma trança embutida.
Após alguma quadras, ela parou, encarou um enorme edifício com as letras T.C.H.R. gravadas em sua fachada. A empresa monopolizava os sistemas de redes no bloco ocidental e financiava, dentre muitos outros mercados, o tráfico de espécies, órgãos, membros cibernéticos e era expert em exploração de mão de obra escrava. Mão de obra que se resumia a população desfavorecida, pobre e faminta, em resumo, 3/4 da população, logo em um mundo com tecnologia para dar boa vida para duas vezes mais o total de seus habi- tantes, mas que tudo se concentrava na mão dos abastados.
“Malditos” ela pensou.
Outra notificação apareceu, “Chegou a hora! Mas, não faça besteiras, volte, por favor...” ela ignorou o restante.
Em frente ao edifício, além da porta principal, dois furgões pararam, várias pessoas usando fardas e munidas de armamentos pesados desceram e avançaram para a entrada. As pessoas ao redor rapidamente flagraram a situação e se espalharam. Nilli caminhou em direção a porta, enquanto os indivíduos armados abriam caminho a força e com violência. Sem trocar palavra alguma, ela adentrou ao saguão, sem dar atenção aos tiros disparados e aos corpos caídos. Chegou ao elevador e se conectou ao sistema do prédio usando um dispositivo que pareava códigos contidos em seu Integrador com o sistema local. Fácil, ela abriu o elevador e travou todas as saídas. Adentrou e tocou a lâmina translúcida solicitando acesso ao andar 73.
A porta do elevador se abriu com um estalo quase imperceptível, assim como o sentimento de fúria que se acendeu no interior de Nilli ao ver uma silhueta familiar parada a janela.
“Imaginei que você viria, sabe que esse seu plano não...” enquanto as palavras soavam através de uma voz rouca e cansada, Nilli entrava nos níveis mais altos da Nuvem sem esforço. Ela estava onde precisava, e próximo de seu triunfo.
“Yin-yang, se recorda?” Nilli perguntou, a silhueta se voltou para ela. “Claro, o que você quer dizer com essas merda?”. Ela se aproximou, enquanto a mulher a sua frente continuava a soltar palavras que Nilli sequer prestava atenção.
“SISTEMA ABERTO - INCORPORAR DADOS DE PROXY...” dizia a notificação para Nilli. Ela confirmou.
“Olhe de novo”, a mulher se fez de desentendida, “pela janela”.
Ela se virou para a janela e viu a cidade aos poucos se apagando.
“E se um dia tudo apagasse? Não houvesse uma rede para se conectar, ordens para serem dadas, nem riquezas para se roubar?”
A mulher a encarou incrédula, enquanto ao fundo a cidade se apagava.
A escuridão tomou conta, com contrastes momentâneos de relâmpagos tortuosos que explodiam nas nuvens escuras.
Outro estouro iluminou a sala, mas não de um relâmpago. “Adeus irmã, acabou.” Nilli pensou, voltou então a arma para si e disparou.