Prólogo
Epílogo
Conto
Euclides aumentou a velocidade dos passos assim que sentiu o primeiro formigamento em sua nuca― efeito da cápsula de dexacriptalona que se rompeu agora em seu estômago. Seu destino esta noite é o Bairro Antigo, a fuga perfeita para uma sexta-feira depois de uma semana infernal de trabalho.
Ouvir reclamações no guichê do hospital público não era a carreira com que tinha sonhado, mas foi a melhor que conseguiu para ter um pequeno salário e pagar as suas contas. Ele tinha muito talento técnico, mas nenhum traquejo político para se projetar na profissão e no ambiente maçante da corporação estatal. Na ala de reciclagem, onde trabalhava, ele manipulava próteses descartadas pelos ricos da metrópole e recebidas como doações. Elas eram jogadas fora como peças obsoletas sempre que surgiam novos modelos, e geravam ótimos descontos de impostos como reconhecimento pela pretensa caridade.
As próteses raramente se ajustavam aos novos corpos porque tinham sido construídas originalmente para outros donos, como forma de upgrade das suas funcionalidades humanas, mas para os pobres eram soluções para amputações, cegueira, surdez ou degenerações de órgãos. Das incompatibilidades surgia uma imensa quantidade de reclamações e reparações que passavam por aquele setor diariamente. Havia, 28 entretanto, algumas coisas que faziam aquele inferno valer a pena: o acesso fácil ao estoque de substâncias químicas e aos equipamentos do laboratório no andar de baixo. Euclides era um fanático pelos estudos e descobertas da biotecnologia, e não apenas mais um simples junkie ladrãozinho de almoxarifado da firma ― como o apelidava seu amigo Giles quando queria debochá-lo.
Antes de entrar na estação do hipertrolley, seguiu o conselho de Giles e mascou um chiclete com antienzimas para disfarçar qualquer suspeita de alteração metabólica. Os agentes da Guarda Metropolitana certamente estariam fazendo sutis varreduras corporais naqueles que embarcavam na linha norte― os da linha sul eram negligenciados pois certamente iriam gastar seus créditos na região chique do Bairro Novo, onde os patrocinadores do governo mantinham seus negócios em alta. Não duvidava da paranoia de Giles, pois sabia que ele era um ótimo conhecedor do sistema― e um belo burlador do sistema.
Enquanto o trem se movia, lembrou-se que a palavra trem era uma nova gíria da sua geração de vinte e poucos anos de idade, referência irônica aos antigos veículos que não chegavam nem perto da velocidade em que seu vagão flutuava agora dentro de um duto supercondutor. A travessia dos cerca de 200 quilômetros durava 20 minutos sobre a paisagem da grande e monolítica metrópole, iluminada e tomada por construções em cada pequeno ponto, sem espaços vazios.
Aquele cenário colorido sugeria algo bem diferente da obscura Colmeia onde vivia Euclides. Esse era o apelido do Conjunto Habitacional Integrado onde ele alugava seu minúsculo apartamento― era chamado de COHAI nos letreiros oficiais. A Colmeia foi uma promessa de urbanismo perfeito que acabou se tornando um labirinto caótico, povoado por dois milhões de almas, espelhando os cortiços em que viviam os seus ancestrais há três séculos.
O sistema de som indicou a chegada à estação Antique e tirou Euclides do seu pequeno transe com a testa encostada ao vidro da janela. Em um lapso de racionalidade, lembrou-se que nem todas as luzes e sons eram reais agora, já que a dexa estava fazendo o seu divino papel. Uma paixão fulminante pela voz feminina, grave e macia, que anunciava o destino, podia durar apenas um segundo no mundo real, mas durava uma eternidade no Mundo Dois, como era apelidado por Giles.
Na saída da estação já era possível notar o quanto era exótica aquela região. Todo tipo de gente passava, se reunia nas esquinas, entrava e saía dos prédios baixos. Um pequeno grupo de religiosos, de cabeças raspadas e vestindo mantos amarelos, entoava cânticos e formava um círculo; jovens executivos vindos do centro entravam nos bares com seus ternos pretos; mulheres seminuas transitavam pelas calçadas rindo alto com copos de champanhe na mão, como se estivessem dentro de uma festa; velhos barbudos jogavam xadrez atrás da grande vitrine de um bistrô. Euclides sentiu- -se eufórico e misturou-se àquela loucura toda.
Giles marcou um encontro no bar Calypso, a cinco quadras dali, onde eles veriam um show da sua banda favorita. Euclides sempre brincava chamando-o de ratinho underground devido às suas estranhas preferências. O bar era mesmo subterrâneo, pois se tratava de uma taberna escura construída nos escombros de uma velha estação de trem. A música era subterrânea porque era diferente de tudo o que se ouvia nas mídias da metrópole. Era vanguarda artística para Giles, mas era puro barulho na opinião de Euclides. “Quem sabe a dexa me faça ouvir isso diferente hoje”― pensou logo que avistou o amigo no balcão.
― Você veio mesmo, cara! Finalmente consegui te tirar daquele cubículo por uma noite.
― Alguma novidade na caverna?― Euclides perguntou sorrindo.
― O show começa logo, mas isso não é o melhor! Conheci uma loira linda e já conversamos um bocado. Acho que hoje é meu dia de sorte. Quando ela voltar do toilette eu te apresento.
― Loira linda... Estou vendo que você está submerso no Mundo Dois e também já misturou alguns drinks.
― Euclides?― Uma voz o chamou e ele virou-se, pensando ter ouvido o mesmo canto doce da sereia que o acordou no hipertrolley.
― Vocês já se conhecem?― perguntou Giles surpreso.
Euclides percebeu que se tratava da loira imaginária do amigo mas, ao contrário do que esperava, ela era real e era linda mesmo, apesar das tatuagens estranhas e do piercing na sobrancelha, que certamente o incomodavam. Perguntou a si mesmo se não era mais uma paixão desencadeada pela dexa e desfez a cara de espanto às pressas quando sentiu que estava constrangendo o amigo.
― Nós já nos conhecemos?― repetiu a fala de Giles, sem ter outra ideia do que dizer.
― Talvez sim. Eu sou Diana.
― Espera aí! Você me disse que se chamava Roberta― Giles interrompeu ainda mais surpreso e desapontado.
― Peça ao seu amigo para dar uma volta. Precisamos conversar a sós.
Neste momento, a banda começou a fazer os primeiros ruídos no pequeno palco ao fundo do Calypso e Giles se virou naquela direção depois de ver o sinal de consentimento que Euclides fazia sutilmente com a cabeça.― Sortudo!― falou baixo enquanto saía.
Após quatro anos na reciclagem, Euclides desenvolveu uma boa sensibilidade para perceber alterações sutis na anatomia humana. Então, mesmo com a pouca luz da caverna, ele notou que Diana usava um implante neural atrás da orelha esquerda e que, no fundo das suas lindas íris azuis- -violeta, havia uma opacidade típica de membranas sintéticas de vídeo, dispositivos de primeira qualidade e feitos sob medida― coisa rara e cara para alguém naquela região. Seu coração acelerou diante da dúvida, da curiosidade e do medo.
― De onde nos conhecemos mesmo, Diana? Euclides tentou lembrar-se daquele rosto sem sucesso. Eliminou a possibilidade de conhecê-la do hospital porque alguém usando aqueles apetrechos não podia ter se submetido a um serviço público barato e imundo. Também desconsiderou a chance de ser uma vizinha da Colmeia, um local que não combinava em nada com ela. E quanto mais se intrigava, mais se apaixonava.
― Eu disse que talvez te conhecesse, não foi uma certeza. Mas, de qualquer forma, eu quero te conhecer hoje.
― Você é um mistério para mim― Euclides se arrependeu dessas palavras cafonas um segundo depois de dizê-las, mas já era tarde demais. Ele estava quase se esbofeteando com raiva de si mesmo por parecer tão idiota e tão hipnotizado. Achou que a sua deusa iria abandoná-lo depois disso mas, ao contrário, ela se aproximou mais.
― Feche os olhos. Vou te mostrar uma coisa...― Diana disse isso segurando levemente uma das mãos de Euclides. Então, aceitando a proposta, ele fechou os olhos e mergulhou no desconhecido.
Primeiro veio a escuridão, depois o silêncio. Não sentia mais o próprio corpo, como se houvesse escapado dele. Sentia tanto o infinito quanto o absoluto nada.― O tempo parou?
Houve um flash e ele abriu os olhos, assustado. Estava sentado em uma cadeira no canto do salão, com uma mesa vazia à frente. Ouviu a voz de Giles aumentando de volume, assim como todo o barulho ao redor.
― Euclides, acorda! Estou te procurando desde o final do show. Disseram que havia um cara bêbado dormindo aqui no canto e não acreditei quando vi que era você! Quantas doses você tomou com aquela loira?
― Cadê ela?
― Certamente não aguentou o seu porre e sumiu― disse gargalhando.
― Eu não tomei mais nada. Ela me sugou.
― Mundo Dois, aqui estou!― as gargalhadas aumentaram.
― Giles, ela era uma vampira neural. Não é lenda urbana; eles existem mesmo!
― Claro, claro...― o amigo disse, incrédulo e, sem deixar a divertida conversa esfriar, continuou perguntando ― E porque será que a loirinha não sugou logo esse aqui que é muito mais gostoso do que você?― falou apontando para a própria cabeça.
― Questão de compatibilidade. Não funciona com qualquer par. Ela já me conhecia. Já tinha me sondado. Desculpe, mas ela também te usou: como minha isca.
― Vai sonhando, bobão!
Giles não tinha dúvidas de que a dexa tinha surtido um péssimo efeito no amigo hoje e se divertiu com aquelas narrações, aqueles delírios. Depois o ajudou a se levantar e seguir até a estação, onde pegaram o trem de volta a caminho da Colmeia. Euclides parou de explicar a sua teoria pois não via nenhum jeito de transformar a piada em realidade para o outro.
No fundo, Euclides sabia que tinha sido roubado, mas não tinha como provar isso. Milhares de memórias de sensações boas e ruins tinham sido copiadas― mas não apagadas, o que era uma consolação. Esse era o vício dos vampiros: encher-se de vida usurpando a experiência alheia. Pobres humanos, cheios de grana para os implantes, mas vazios de alma própria.
Os dias passaram; as semanas; os meses. Euclides sabia que algo se transformara. Naquele contato houve mais do que um simples download; uma semente foi plantada. Agora, todas as sextas-feiras Euclides volta ao Calypso, numa caça à sua caçadora.