Prólogo
Epílogo
Conto
Na rua Galvão Bueno, próximo ao metrô Liberdade, as fachadas em neon dos estabelecimentos ajudavam a iluminar as calçadas; já que as luminárias públicas― na maioria, defeituosas― não davam conta da escuridão da Nova São Paulo.
Essas luzes fluorescentes― semelhantes às de pulseiras de balada― refletiam nos óculos de um jovem que vestia sobretudo e se esquivava dos lixos espalhados ao chão. O cidadão, entretanto, satisfeito com a situação do bairro, teve de esperar uma família de camundongos atravessar seu caminho. Os ratinhos saíram do buraco de um pub e rumaram ao esgoto da rua.
― É dose ter que aguentar mais uma dessas. Em plena quatro da manh...― pensando, tomou uma trombada.
Indignado, deu de cara com um mendigo que virara a esquina. Resmungou:― Ôh, animal! Presta atenção, maluco!― e mostrou-lhe o dedo do meio de sua mão robotizada. Mas o mendigo ligou pouco para o xingamento, manteve a sua afobada peregrinação. O jovem, invocado, ao voltar sua mão robótica ao bolso do sobretudo, notou um peso diferente ali.
― Oxe! Que merda é essa?― tirou um pequeno cubo, que lhe havia brotado no bolso.
Em seguida, quando examinava o objeto que parecia um “dadinho” crescido, uma luz forte o expôs. O holofote vinha de uma viatura. Além de alardear o moço, sua sirene combinava com a fluorescência azul e vermelha das lojas.
― Mão na parede, sangue-bom!― saiu um primeiro militar do carro.
Antes de o garoto enquadrado prostrar-se à parede, soltou aquele estranho cubo. E, o objeto, como o rolar de dados, estacionou na visão do holofote.
Outro “coxinha” surgiu, este, metido a sargento, pegou o cubinho dropado e direcionou-se ao dono do objeto.
― Que é isso, irmãozinho?― esfregou o dado na cara do garoto.― Droga, né?
― Não sei de nada, senhor... Isso brotou no meu bolso depois que… ah, já sei! Foi o mendigo que colocou no meu bol…
Tomou uma bela de uma coronhada na cabeça.
― Tá metendo o louco, é?― na hora, o oprimido engoliu um grito de dor; o sargento continuou:― O mendigo não tem nada a ver, filhote. Fala logo a verdade, vai...
― Sargento Garcia, é ele!― o primeiro soldado que puxara a carteira do marginalizado entregou RG ao sargento.
― Bom trabalho, soldado Pedroso!― leu o documento, fez o cara-crachá, e declarou:
― Senhor Plácido Toledo. O senhor está preso por tráfico de drogas!
Ao prender Plácido, o soldado Pedroso teve de colocar as algemas nos cotovelos do condenado, já que a parte ciborgue da mão do jovem ia até a metade do antebraço.
― Pera aí, pô! Aquilo não era meu! Não é justo, cara! Sou inocente!― o debater de Plácido de nada adiantou contra os bíceps do soldado Pedroso. Sem chance, foi jogado no camburão, e o porta-malas fora trancado.
Com todos no carro, o Pedroso, como motorista, soltou o freio de mão. As turbinas já trabalhando, a viatura se descolava do solo. Em certa altitude, Garcia perguntou:
― Já sabe aonde ir, né, cadete?― e Pedroso o respondeu com um “jóia”, pisando no acelerador.
Durante o voo, as reclamações do condenado Plácido cortou-lhes o silêncio. Sentindo-se injustiçado, aos berros pedia para falar com seu advogado, avisando que seus óculos tinham caído na rua.
― Ae, Pláto!― Garcia se empapuçou e se virou à peste com um fuzil.― Cala essa boca, antes que eu termine de pipocar essa tua cara de nerd, que já tá pipocada, cheia de espinhas! Você não precisa de óculos agora, e nenhum advogado vai botar chupeta na tua boca. Então, filho, facilita o teu lado, e fica de boa!― uma tensão caiu.
Depois de segundos, Pláto, desconfiado, questionou:― Pláto? Como assim sabe o meu codinome?
Os dois coxinhas entreolharam-se, o veículo chacoalhou no ar de tanta gargalhada:
― Meu Deus! Olhe para o seu braço metálico, cara! Estamos em 2049 e você ainda acha que tem uma vida privada?! Fumou um?! Agora que a gente te prende de verdade. Pela sua ignorância, nem parece que foi você quem ganhou o prêmio de funcionário do ano da empresa COM-X. Mano, é um acesso à CeBra, e sabemos até o horário que você nasceu, fi.
― Tudo bem... Sei disso tudo. ― o nerd tentando se consertar― Digo... Não me entra na cabeça que, só de verem meu documento, conseguiram puxar meu histórico. Vocês me encontraram ali, e só viram meu RG, certo?
Não houve resposta. Pelo clima, Plácido começara a notar que estava sendo ludibriado.
Garcia e Pedroso entreolharam-se mais uma vez, agora, sérios. ― É ali, Pedroso!― o sargento apontou para o terraço de um prédio abandonado, próximo à Praça da República.― Pode descer!― e recebeu o positivo do soldado.
Em seguida, puxado o freio de mão, as turbinas da viatura foram diminuindo sua potência até o veículo entrar em contato com o chão do terraço. Estacionaram.
― Ué!― estranhando o local, Plácido se pronunciou― O que vão fazer aqui? A delegacia é mais pra frente, pô! Vocês vão abastecer aqui, né?! Calma aí... se vocês tão querendo dinheiro, galera, pegaram a pessoa errada! Na moral mesmo, sou um brasileiro comum. Não tenho onde cair morto. Você deve saber que a COM-X, que explora o trabalhador, não liga pra nós. Não alteraram meu holerite nem pelo prestígio de melhor funcionário. Não ganho nada por isso. Nem sequer moral.
Pedroso fez um sinal para que Garcia jogasse as cartas na mesa.
― Ninguém tá falando em dinheiro aqui, Senhor Plácido Toledo! ― pigarreou.― Você tem outra coisa que precisamos. Todos sabem que agora a COM-X tem domínio sobre o CeBra, e você sabe que este tal de: Ciberespaço Brasileiro fatura trilhões, não é?! Então, como você é funcionário alto padrão e tem acesso à torre central, quebrará um galho para a gente.― Pláto entortou o rosto em rejeição. O sargento manteve a condição:― Eu e Pedroso estamos aqui para te oferecer um acordo...― O jovem quis saber do tal acordo. Garcia saiu do carro, abriu o porta-malas, tirou o garoto de lá do camburão, e, do sensor da farda, desativou as algemas.― Vem cá, jovem!
Logo ali, convidou-o a aconchegar-se em uma mesa, em uma cadeira de boteco. Ele se assentou. De frente para ele havia uma porta vermelha com o desenho de um coelho branco, como se tivesse sido grafitado.
Quando Pedroso pegou a algema e colocou-a violentamente na sua mesa, o chefe, direto ao ponto, prosseguiu:
― Há duas opções pra escolher, sr. Pláto: Ser condenado por tráfico de drogas ou seguir o coelho branco da porta vermelha.
― Aff― já bem desanimado, levantou da cadeira e subiu no parapeito do terraço. A fim de pegar impulso, disse com voz de choro:― Tô ferrado mesmo... acabou! Não tenho mais que aceitar acordo algum... Vida de brasuca é uma beleza! Vou acabar logo com isso!
― Ô, Pláto!― o sargento berrou― Não vai fazer essa baboseira, vai? Você tem muito pra viver ainda, garoto. Não dificulte as coisas...― o jovem travou o pé direito.― Não quer nem saber sobre o coelho branco, não? Vai ser de boa. Você vai sair ileso dessa. Vai ser um trampo simples pra Telenet.
― Merda!― expirou Pláto, descendo do parapeito e enxugando a humidade do rosto:
― Me ferro todos os dias com transporte público, ganho uma mixaria, e uma vez por ano preciso revisar meu braço metálico, que não é barato. E agora a própria polícia forja um crime contra mim. Querem me extorquir para fazer um trampo a favor da Telenet, a maior concorrente da COM-X. Ai, ai... É de morrer mesmo!― pegou a algema que estava na mesa, olhou-a com carinho, e repentinamente lançou- a para o ar. Ao cair, o objeto foi se quebrando ao bater de parede em parede, até chegar lá embaixo na rua.
Os coxinhas, indiferentes do caso sofrido do oprimido nerd, justificaram:
― Só estamos cumprindo ordens para a Telenet. E... como jogou a algema fora... já está decidido, não é?… Então... Bora?
― Fazê o quê?! Não tenho opção. Bora ao coelho branco, né?!
O sargento se dirigiu até a porta vermelha do coelho branco, e abriu-a:
― Entre.
Dentro do quartinho escuro sem janelas, uma escrivaninha era iluminada apenas por uma luz fluorescente. Nela os neons refletiam uma coisa, um cubo verde/amarelo.
Pedroso levou aquela cadeira de bar à frente da mesa, e Garcia apresentou-a ao moço.
― Relaxa. É coisa rápida. Você vai fazer o seguinte, Pláto...― Garcia, ao iniciar o tutorial da missão, foi puxando um cabo de rede de trás da caixa― Você vai se conectar agora à CeBra― plugou o cabo, em uma entrada de rede, da mão cibernética de Pláto.― Vai até a torre central...― pressionou o botão LIGAR do cubo― E, por fim, vai liberar o firewall. Assim, nossos hackers estarão livres para invadir os servidores da COM-X. Então, nós, da Telenet, teremos o domínio da CeBra.―$$$.― Feito isso, você estará livre do xadrez, Pláto. Alguma dúvida, campeão?― Pláto, suando frio, concordou. Então, Garcia concluiu:
― Fechou! Falo contigo pelo chat!― atrás do console, o sargento acionou uma alavanca. Iniciando CiberEspaço Brasileiro... Carregando software responsável: COM-X… Convertendo logaritmos à Realidade Virtual… Renderizando modelos gráficos… Conectando usuário potencial: Login: PLA_TO; reconhecimento de biometria… OK! Usuário logado!
― Bem-vindo!― ao abrir os olhos, Pláto ouviu a voz de saudação.
Entrado com a visão azulada, pensou que houvera um bug no sistema. Mas, ao sentir cheiro de mijo emulado, ele olhou para baixo:― Um banheiro? Não tinha um lugar melhor para me logar, não?
― Segura só essa, Pláto. É o único lugar que há para burlar o sistema antipirataria.― Garcia respondeu através do chat.
Fora do banheiro químico, pelas altas árvores ao redor, o moço se via na Praça da República.
Na sua visão, uma flecha vermelha indicava o local onde supostamente teria que ir.
― Apontei a torre central no seu mapa. A Torre está logo ali... Uma coisa importante: cuidado com os vigilantes!― Pláto ciente, acenou positivamente, e seguiu seu GPS.
Decidiu correr, sem enrolação, a fim de livrar-se logo da missão. O que mais queria era se safar daquela situação. Graças à ajuda guiada por Garcia, evitou os drones vigilantes. Ele teve de fazer rotas não exploradas. Até que, enfim, em menos de 10 minutos, estava na Torre Central da COM- -X; e, no quarteirão de acesso, recebeu a mensagem de chat:
― Bingo!― sargento Garcia exclamou, extasiado― Agora, segue uma parte mais fácil ainda. Você irá à sala dos servidores, desativar a válvula do firewall, e acabou.
Plácido Toledo não trabalhava no prédio da Torre Central. Porém, de vez em quando, visitava a Torre. Seu chefe o levava às reuniões do departamento. Sabia, portanto, onde ficava a maioria dos setores, inclusive a sala da rede.
Naquele horário, pela escala de serviços, não havia nenhuma avaliação dos servidores. Então, já aceita a biometria, Pláto estava dentro da câmara, sem ninguém para atazaná-lo.
No lado extremo da sala, estava a alavanca vermelha do firewall. Porém, para acessá-la, ele teria de quebrar seu vidro externo de emergência.
Pláto, estando na frente dela, perguntou:― E agora, Garcia? Tem câmeras por tudo quanto é canto, se mexendo, “viradas no jiraia”. Se me pegarem, vão fechar as portas e ficarei preso, sem poder deslogar-me do Ciberespaço.
― É pra já, irmãozinho. Vou desativá-las.― foi a última mensagem do chat. Nada de Garcia responder. Acostumado a trabalhar sob pressão, Pláto começou a zigue-zaguear sobre o recinto, a fim de ver se as câmeras estavam funcionando. Quando pararam, ele imediatamente deu uma voadora no vidro, e levantou a alavanca.
Firewall desativado!
Ao sair da Torre, o logotipo “COM-X” da Torre Central havia sido trocado por “Telenet”. Evidentemente, os hackers foram bem ligeiros. Mas ainda não havia nem sinal da voz do sargento Garcia no chat.
Enfim, Missão concluída. Pláto estava crente de que, ao deslogar naquele banheiro fedido, iria para casa com a ficha limpa.
Encerrando software responsável: (agora) Telenet.
Fragmentando modelos gráficos… Desconectando usuário potencial: Login: PLA_TO; reconhecimento de biometria… PIRATA! Usuário deslogado!
Retornou são e salvo ao quartinho fluorescente. Tão são e salvo que, na sua frente, Garcia e Pedroso estavam algemados de joelhos; Atrás deles, a Polícia Cibernética apontando suas armas para o operador do crime.
O senhor Plácido Toledo, delirado, tentava reconectar à Cebra, para ao menos estar inconsciente da opressão final.