Prólogo
Epílogo
Conto
O mundo não acabou, pensei. Todo o dia era assim: meu despertador é a ansiedade com que fico quando penso que o mundo pode ter acabado durante os meus sonhos. Mas ele não acabou até agora e hoje é mais um dia que tenho que viver.
Eu era o que se podia chamar de pessoa normal: tinha um emprego comum em uma companhia e não tinha alcançado grandes coisas durante toda a minha vida. Minha aparência, assim como minha vida, não refletia nada de diferente. Tinha uma estatura mediana, cabelos pretos e olhos escuros. Era tão apático quanto o mundo que me cercava. Se você viesse do passado, iria se maravilhar com o meu mundo cheio de avanços tecnológicos, prédios gigantescos, robôs por toda a parte e aliens. Mas passado esse primeiro momento de surpresa, você poderia olhar para a pobreza que rondava a minha realidade, para a falta de animais e de plantas na cidade e para a sensação de ansiedade que aquele mundo que nunca apagava gerava em nós. Ou pelo menos ele gerava em mim e só estava sendo chato. Não sabia ao certo.
Não queria ir trabalhar, pelo menos não naquele dia. Seria o dia em que haveria vários protestos na cidade por conta das novas leis de imigração para os seres de outro mundo, o que significava vários conflitos com a polícia e muita destruição. Além do mais, os patrulheiros robôs ficavam muito agitados nesses momentos, fazendo com que todas as pessoas recebessem checagens de identificação por onde quer que andassem. Seria mais um dia caótico no mundo e, portanto, mais um dia normal.
Eu morava muito longe do meu trabalho, então sempre tinha que pegar o trem ultrassônico. Quando cheguei na estação, encontrei um homem de aparência muito antiga tocando um violino, que parecia ser mais velho que ele. Bom, pelo menos eu achava que o nome daquele instrumento era um violino. Fazia muito tempo que eu não ouvia nenhuma música e me surpreendi que alguém ainda soubesse tocar um instrumento musical. Fiquei olhando para aquela cena por algum tempo. O velho tocava uma música muito triste, como se ele e o seu instrumento estivessem lamentando por algo que perderam havia muito tempo. O som se espalhou pela estação, e agora eu não era o único que estava observando essa cena.
Quando o velho parou de tocar, porém, eu era o único que estava com lágrimas escorrendo nos olhos. Me senti um idiota por estar chorando ali naquele lugar, mas também sentia que as pessoas estavam sendo idiotas em não prestarem atenção àquela cena. A música que emanou do violino tinha me tocado profundamente, não sabia o motivo, mas de repente eu fiquei triste como se puxado pela força da música. Já todas as outras pessoas, eu percebi, não estavam ali pelo sentimento da música. Era a curiosidade que as movia, a busca do motivo de alguém estar tocando uma música nos dias de hoje. Assim, logo que elas saciaram sua curiosidade, continuaram os seus caminhos. A vida no meu mundo era daquele jeito; qualquer coisa era interessante por alguns meros minutos e logo depois as pessoas já se entediavam e procuravam outra coisa para se ocuparem. Estavam em uma constante busca por prazer instantâneo e passageiro.
— A música que o senhor estava tocando era muito bonita — falei para o músico.
— Obrigado, meu jovem. Fico feliz que tenha gostado — respondeu enquanto guardava seu violino em uma maleta que, assim como tudo que dizia respeito a ele, estava muito gasta.
— Me chamo Mac. Posso perguntar por que o senhor estava tocando esse violino? Não sabia que as pessoas ainda faziam isso.
— Não esperava que ainda existissem pessoas que se lembram do nome das coisas que não eram feitas inteiramente de metal. Eu estou tocando o meu velho amigo porque nós vamos ter que nos separar por um tempo. Vou fazer uma viagem, então queria dizer adeus para ele do modo mais apropriado.
— Mas o senhor não pode levar o seu violino nessa viagem para tocar para onde for?
— Eu bem que gostaria, meu rapaz, mas esse violino em particular eu não poderei levar. Talvez nesse lugar para onde eu vá tenha outros violinos, pianos e quem sabe uma orquestra inteira. Mas eu não sei o que existe nesse lugar, ninguém sabe com certeza, então só me resta torcer para que tenha essas coisas lá e, se não tiver, pelo menos eu toquei esse meu velho amigo uma última vez.
— Desculpe, eu não entendo. O senhor está indo para outro planeta e lá é proibido o uso de instrumentos musicais? — perguntei meio confuso para aquele homem.
— Pode-se dizer que sim, meu rapaz — ele me disse com um sorriso amigável no rosto por trás daquela barba totalmente esbranquiçada. — Mas não deixe que as besteiras de um homem velho te prendam por mais tempo. Imagino que você esteja atrasado para algum compromisso.
— Sim, é verdade! — disse olhando para o relógio da estação. — Estou muito atrasado para o trabalho, meu chefe vai me matar. Tenho que ir andando, até mais! — disse já me preparando para correr para tentar pegar o próximo trem.
— Ei, rapaz! Espere, fique com isso — chamou o velho. Quando me virei de novo para ele, vi que ele estendia a maleta em que ele havia guardado o seu violino.
— Não, eu não posso aceitar — disse. — Além do mais, eu não sei como tocar.
— Não se preocupe, ele vai te ensinar. Ande, pegue — disse o homem. Sem entender os significados daquelas palavras, eu aceitei o presente daquele velho homem. A maleta era de um couro bem desgastado, percebi, e também havia várias marcas de arranhões nela. Era uma maleta que com certeza tinha muitas histórias para contar.
Quando levantei meus olhos para agradecer pelo violino, o velho já não estava mais lá. Tentei procurar por ele em meio às várias pessoas que percorriam a estação, mas eu não o encontrei. Ao final de um tempo, eu desisti de procurá-lo, me lembrando que agora estava ainda mais atrasado para o trabalho e que com certeza meu chefe me mataria.
Mais tarde, quando finalmente cheguei no meu escritório, já me preparava para ser repreendido pelo meu chefe quando ele apareceu na minha sala.
— Ah, finalmente eu te encontrei, Mac. Estive procurando por você durante toda a manhã — ele disse.
— Desculpe, chefe, eu fiquei preso na estação e não consegui pegar o trem para cá a tempo — respondi, sabendo que aquela pequena mentira não seria o bastante para me safar daquela satisfação.
— Quê? Ah, deixe isso para lá. Eu preciso que você me leve até a central para o Mind upload. Eles dizem que você precisa ir acompanhado com alguém, pois você demora para se acostumar com o corpo.
— Eu? Ah, claro — respondi. O Mind upload consistia na transferência da sua consciência para um corpo totalmente robótico. Mesmo sendo uma técnica nova, quase toda a população já estava realizando essa transferência, pois, desse modo, você poderia viver para sempre em um corpo que não morre. Além disso, você poderia ajustar esse novo corpo para atender aos seus desejos e necessidades. Queria ser o mais veloz de todos? Queria poder levantar um carro ou respirar debaixo da água? Sem problemas! Se você tivesse dinheiro, não haveria praticamente nada que o seu novo corpo não pudesse fazer. A humanidade tinha chegado no seu ápice, como muitos diziam agora, dando a vida eterna para todos.
Eu nunca gostei muito dessa ideia. Não por ter ideologias religiosas ou coisa assim — a religião, assim como várias outras coisas do mundo antigo, não passa de peças de antiquário agora —, mas por eu simplesmente não achar aquilo certo. Pensava que viver num corpo robótico, que não sentia mais dor e que já vinha programado de acordo com os seus desejos, não era como nós humanos deveríamos viver. Levaríamos uma vida eterna, sim, mas a que preço? Não precisaríamos mais nos esforçar para desenvolver os nossos corpos e não daríamos valor para esse esforço, fazendo com que até isso se tornasse banal no mundo em que vivíamos.
Essa era a forma que eu pensava. E infelizmente eu estava sozinho nessa.
Quando chegamos na central, nos deparamos com uma quantidade incalculável de pessoas fora do prédio. Todas estavam ali para a transferência das suas consciências. Se tivéssemos que entrar no final da fila, provavelmente não chegaríamos na entrada do prédio antes do fim da semana. Mas filas eram para pessoas normais, e não para o meu chefe.
Passamos rapidamente pela confusão que se desenvolvia nas portas de acesso da central e entramos. Uma vez lá dentro, fomos direto para um dos elevadores e de lá para o Andar de Upload, como era chamado. Normalmente, assim eu pensava, nós deveríamos ser conduzidos por alguém, até porque eu acho que uma empresa daquele tamanho não iria gostar de pessoas perambulando a bel-prazer por seus corredores. Contudo, ninguém nos perguntou por que não tínhamos nenhum funcionário da empresa nos acompanhando. Meu chefe mostrava tanta imponência que as pessoas provavelmente pensavam que ele era algum figurão da empresa ou mesmo qualquer figurão que você possa pensar. Afinal, ninguém mexe com essas pessoas.
— Você está calado desde que saímos, meu rapaz. O que está pensando? — ele me perguntou quando estávamos esperando para sermos atendidos no andar de upload.
— Não é nada, chefe — eu menti. — Só estava perdido em pensamentos mesmo.
— Tome cuidado para não esquecer o caminho de casa então, ho ho ho — ele me disse, dando uma das suas risadas estranhas.
— Chefe, posso fazer uma pergunta pessoal?
— Pois faça, meu jovem.
— Por que o senhor está fazendo esse procedimento? Digo, por que quer tanto ter o corpo de um robô?
— Ora, porque vou poder viver para sempre — ele respondeu como se eu tivesse feito uma pergunta idiota. — E também porque é a máxima evolução. Olhe para os robôs nas ruas. Eles estão sempre realizando alguma tarefa, nunca se cansam, e nunca pecam nos seus deveres devido ao cansaço. Nós os criamos e nós os utilizamos para termos uma vida melhor. Mas por que não nos juntarmos a eles, por assim dizer? Por que não aproveitar diretamente da nossa invenção e assim viver para sempre e poder alcançar patamares que um corpo humano não poderia?
— Mas isso não faria com que nos tornássemos menos humanos?
— Se valer de uma máquina é ser menos humano, Mac? Nós a utilizamos há muito tempo. Do momento em que usamos algo além dos nossos braços e pernas para procurar alimento, já estávamos nos valendo de aparelhos que não faziam parte do nosso corpo. E ficamos menos humanos por isso?
— Mas isso são duas coisas diferentes — protestei. — Durante muito tempo usamos essas ferramentas para facilitar as nossas vidas. Nesse caso é diferente. Nós não estaríamos mais procurando tornar nossas vidas mais fáceis; queremos acabar com todo o esforço que existe em viver. Basta algumas horas numa máquina e pronto! Qual o sentido da vida assim?
— E por qual motivo viver deveria exigir esforço de nós? — retrucou o meu chefe. — Não deveríamos poder viver no máximo das nossas capacidades, sem nos preocuparmos com doenças, cansaço ou qualquer moléstia que possa recair sobre nossos corpos e comprometer nosso desempenho?
Sabe, a pior coisa quando alguém nos faz uma pergunta é não saber o que responder. Minha vida toda eu nunca conseguia responder essas perguntas que pareciam tão fáceis para os outros. Questões sobre vida e morte, sobre o que era ser um ser humano e sobre o que deveríamos fazer para melhorar nossas vidas pareciam problemas simples para a maioria das pessoas. “Devemos viver o máximo de tempo que conseguimos”, “Não somos mais animais para nos preocuparmos com doenças ou necessidades fisiológicas”, “O tempo sempre foi um problema para nós. Agora temos a chance de vencer até isso”. Essas eram as respostas que eu costumava ouvir sobre isso, mas para mim aquilo não fazia o menor sentido! De que adianta viver para sempre se não tivermos nenhum objetivo? De que adianta ter todo o tempo do universo e não fazer nada com ele? Precisávamos largar nossas emoções para alcançar a imortalidade, precisávamos nos reduzir a um monte de ligas metálicas e fios para isso? É realmente uma troca?!
***
A parte da cidade onde eu morava estava praticamente vazia, pois todos estavam na região da central tentando conseguir seus novos corpos. Decidi parar um pouco em um parque — que tinha apenas algumas árvores — que ficava no caminho de casa. Fiquei olhando para o sol de fim da tarde se pondo, ou melhor, tentei olhar, pois os gigantescos arranha-céus dificultavam esse processo. As luzes dos postes estavam começando a acender quando resolvi que ficar ali tentando arrumar uma resposta não me levaria para lugar nenhum e que seria melhor se eu voltasse para casa.
— Ah, eu achava que você tinha morrido de tão imóvel que estava — falou uma voz.
— Onde você está? — perguntei, sem saber a origem daquela voz e mesmo por que eu estava me dando ao trabalho de responder.
— Aqui em cima — disse a voz. Olhei para cima e, sentada no galho de uma árvore, estava uma mulher de uma galáxia muito distante.
— O que você quer?
— Nossa, que rude. Eu pensava que vocês humanos eram mais amistosos. Meus irmãos falaram que vocês eram muito interessados em seres como eu e que eram cheios de perguntas importantes, e algumas um pouco não tão inteligentes assim. Mas isso foi há muito tempo. As coisas mudam, eu acho.
— Pelo jeito, sim — falei, sem mostrar um pingo de vontade de continuar aquela conversa.
— Sabe, eu estava um pouco preocupada com você, já que você parecia tão triste sentado naquele banco todo sozinho. Mas como você se mostrou tão educado, pode ir à merda.
— Desculpe... É que não tem sido um dia muito bom com essa coisa de transferência mental.
— Ah, é por isso que está todo esse alvoroço do outro lado da cidade? Mas por que isso está te incomodando? Achava que vocês humanos queriam viver para sempre.
— Eu não sei. Todas as pessoas que eu conheço estão fazendo isso, estão trocando carne e ossos por metal e fios. Mas eu não sei por que essa ideia me incomoda tanto. Eu não sei! – disse aquilo quase chorando de frustração. Provavelmente aquela mulher estava me achando um idiota por estar agindo daquele jeito, ou um louco. Pouco me importava o que ela pensaria de mim no final. Estava cansado de ver tudo aquilo que estava acontecendo no mundo. Mas o que ela me disse a seguir não me pareceu que ela estava me achando um lunático por agir daquele jeito.
— Há muito tempo no meu mundo nós pensamos em acabar com todas as nossas emoções, pensávamos que elas eram um obstáculo para o nosso desenvolvimento. Então, criamos uma espécie de droga que impedia que sentíssemos qualquer sentimento. Acontece que isso quase levou minha espécie à extinção. Entendemos, depois de muito tempo, que as emoções são muito importantes para as nossas vidas. Quando estamos sofrendo, pensamos apenas em nos livrarmos dessa sensação e daríamos qualquer coisa para que a dor sumisse. Mas a dor nos molda, ela permite que cresçamos. Ela nos ensina muitas coisas ao longo de nossas vidas.
— Você está dizendo que, para eu ser uma pessoa mais desenvolvida, eu tenho que sofrer?
— Não. Para ser uma pessoa mais desenvolvida, você precisa viver.
Depois de dizer isso com um sorriso tenro no rosto, ela foi embora me deixando sozinho naquele parque sob o céu noturno. Estava completamente só agora, até mesmo o vento noturno tinha desaparecido e eu não sabia mais o que pensar sobre tudo isso. A vida estava tão pesada que eu pensei se não seria melhor me juntar ao rebanho e ter o meu corpo robótico. Infelizmente, essa atitude seria a dos covardes que fogem dos problemas importantes, e eu sabia disso.
***
Cheguei em casa exausto. Tudo o que eu desejava era que aquele dia horroroso acabasse e eu pudesse voltar para a minha normalidade. Depois de um banho, eu me peguei olhando para a janela em direção à central. As luzes estavam muito brilhantes naquela parte da cidade; parecia que elas estavam chamando todas as pessoas a irem ao seu encontro como insetos que voam alegremente para lâmpadas, realizando seus últimos voos. Será que aquele seria meu último voo ou seria só o primeiro de muitos no meio de uma vida que duraria tanto quanto o resto de vida do sol ou da Terra? Era até irônico, as pessoas estavam passando fome, a violência tinha atingido patamares inapropriados para a vida em sociedade e até mesmo a existência do planeta podia estar com os seus dias contados. E tudo o que conseguíamos pensar e desejar era ter um corpo que fosse capaz de superar a morte!
Estava me preparando para deixar essas questões de lado e beber alguma coisa até que o sono dos ébrios me abraçasse, quando meus olhos pousaram no violino que eu tinha recebido mais cedo daquele velho na estação. Fiquei olhando um bom tempo para ele, pensando no que o seu antigo dono me tinha dito, na última música que essas cordas cantaram e na mulher que havia encontrado no parque. Agora eu entendia o que essas coisas queriam me dizer: elas estavam falando do caminho que a humanidade tinha tomado. Choravam porque se lembravam de um passado onde a música, a leitura e as artes tinham um lugar no coração das pessoas. Hoje, elas só se preocupavam com o tempo e com a quantidade de lucro que poderiam obter se fizessem tal coisa e não se importavam com o que estavam sentido, muito menos com que os outros estavam sentindo. Era por isso que aquele violino estava chorando tanto mais cedo...
Quando dei por mim, já estava fazendo as minhas malas. Tinha decidido abandonar a cidade, procurar um lugar que não estivesse tão mecanizado assim. Queira ouvir pela primeira vez o som que o vento faz ao passar pelas árvores de um bosque, sentir o aroma das flores e procurar pelos animais desse mundo. Se essas coisas ainda existiam nesse mundo de aço, eu ainda não sabia. Talvez algum canto dele tenha sido esquecido pela humanidade e lá a vida estivesse verde e não cinza e cheirando a óleo.
Ao descer para a rua, olhei uma última vez para a central. Parecia que ela estava querendo competir com a luz da lua, que não gostava da solidão e muito menos do barulho, pois, mesmo tão longe como estava, conseguia ouvir a comoção que estava acontecendo para aquele lado. Olhei pela última vez para a central e não senti um aperto no coração, mas uma felicidade inexplicável.
Segui em direção à luz do luar, ao desconhecido, à vida. E tudo que eu levava junto comigo para a minha nova aventura era uma pequena mala e, a coisa mais especial de todas, um violino de uma das poucas pessoas que ainda viviam verdadeiramente naquele mundo.