O Jardim

Sci-Fi
Dezembro de 2019
Começou, agora termina queride!

Sabrina Marcondes

Autor
Autora
Organizador
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Autor e Organizador
Autora e Organizadora
Editor
Editora
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Ilustradora
‘‘A morte é uma surpresa que o inconcebível faz ao concebível.’’—Paul Valéry

Conquista Literária
Conto publicado em
Cyberlife

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O Jardim
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Cada dia era igual. Ela deixou a terra passar por entre seus dedos, sentindo a familiaridade daquele toque. Com cuidado e deliberação maior do que a tarefa exigia, começou a abrir um pequeno buraco com as mãos, pressionando as laterais para deixá-lo firme, mas não o bastante para que se tornasse terra batida. Podia ter usado ferramentas para isso, é claro; a precisão, porém, nunca era a mesma de um furo feito à mão, em que podia sentir cada detalhe. Delicadamente, apanhou a pequena muda de dentro da bandeja metálica, e a colocou no recente buraco. Perfeito. Satisfeita, espalhou a terra solta por cima, fechando as laterais de modo a permitir que as raízes jovens se movessem sem problemas. Ergueu, então, as costas, endurecidas pelo tempo na mesma posição, e observou seu trabalho. 

A horta era uma verdadeira obra de arte. No canto superior, árvores jovens já perdiam as flores. Combinadas aos arbustos, cujos frutos verdes contrastavam belamente com as folhas, os tons mais vivos brilhando como insetos estranhos, elas formavam uma cena idílica e maravilhosamente alienígena, ainda, aos seus olhos. Ela sentia-se perfeitamente contente, absurdamente satisfeita simplesmente cuidando daquele pequeno pedaço de mundo. 

Terminada a tarefa, voltou o olhar para o horizonte, brevemente. Esta era sua função, afinal: sentinela. Ou talvez fosse mais acurado dizer que esta tinha sido sua função; ao longe, fumaça subia do que antes havia sido uma cidade, e agora tornava-se uma ruína. Se prestasse bastante atenção, conseguia escutar os gritos das criaturas, tanto seus irmãos como os inimigos, presos dentro daquele inferno. Estremeceu: não muito tempo atrás, ela provavelmente estaria entre eles. Mas seu posto atual era maravilhosamente escondido do mundo, a posição perfeita para observar sem ser vista, e para ser esquecida por todos — se é que ainda havia alguém para recordar.

Não querendo deixar que a cidade interferisse em sua rotina, desviou o olhar e rumou para dentro da cabana propriamente dita. Traçou a ponta de uma unha suavemente pela madeira do beiral, em um movimento automático; os veios familiares cumprimentaram seu toque, curvando-se ao seu redor. Sentiu um calor em seu peito que nada tinha a ver com o clima, e seus olhos cintilaram. 

Apesar das chamas vistas, conhecia seu dever. Tão logo o pensamento foi processado, o som distante de um apito invadiu a pequena sala. Assentiu: bem na hora. Rotina e rituais a tranquilizavam quase tanto quanto a terra com a qual lidava diariamente. Movendo-se sempre sem pressa — as costas enrijecidas continuavam incomodando; teria que lidar com isso quando retornasse — rumou para a porta, pendurando na cintura as ferramentas de jardinagem que mantinha ao lado dessa (uma pequena pá, um cilindro metálico, um cortador). Não pegou nenhuma arma: a única que possuía quebrara na semana anterior, e não havia conseguido encontrar os materiais necessários para consertá-la. Entre contatar seus superiores para requisitar uma nova e arriscar ser lembrada ou sair desarmada, preferia a segunda opção; parecia-lhe um risco consideravelmente menor.

Com o cuidado de sempre, checou o painel de segurança. Nada além de árvores, o ocasional inseto ou nano-robô (já eram selvagens, perfeitamente adaptados ao bioma local) como única fonte de movimento além das folhas. Cumprido o protocolo (palavra muito importante, protocolo), destrancou a porta e saiu. Foi recebida prontamente pelo vento forte e quente que parecia sempre soprar neste planeta. Não lhe deu importância, continuando rumo à parte mais densa do bosque, fora de sua pequena clareira. 


***

Incrível como se adaptara à terminologia dali. De onde viera, “bosque” e “árvores” jamais definiriam as coisas semimortas pelas quais passava; por outro lado, de onde viera, árvores eram coisas que só existiam em livros. Supunha que essa era uma troca justa. Para ela, que só conhecera as imagens e histórias, não havia sentido em comparar as estruturas meio pedra, meio metal, com folhas nascidas dos fungos da região, às árvores que tinha em sua horta, às figuras que carregara por tanto tempo em sua imaginação. Mas, para os nativos deste planeta, que as conheceram e perderam, a metáfora provavelmente servia para algum alento emocional. Melhor um reflexo frio e incompleto do que a ausência absoluta de algo.

Seus movimentos não eram os mais silenciosos. Ela não ressentia este fato: nada a fazer a respeito. Desde que conseguia se lembrar, sempre fora lenta, desajeitada e um pouco barulhenta. Havia implantes que podiam ter sido utilizados para alterar seu corpo, modificações que outros optaram por fazer, apesar da recuperação desagradável e do tempo de adaptação. Ela não quis. Nunca se interessara por profissões que exigissem esforços físicos. Mesmo interações dessa natureza com seus semelhantes não lhe eram atraentes, se fosse parar para analisar os dados. Sua existência mais confortável era solitária, e as habilidades que possuía estavam no conhecimento (protocolo é uma palavra muito importante). Obviamente, tais preocupações pararam de existir depois que foi capturada; escolher profissões é um privilégio de quem está livre para exercê-lo.


***


Sempre no seu ritmo, seguiu primeiro pelo perímetro habitual ao redor da cabana. Nada de novo surgiu em seu campo de visão (ou quaisquer outros sentidos), mas não esperava que o fizessem. Cumprida a tarefa, tocou uma unha delicadamente sobre o braço direito, revelando um pequeno painel ali. Os relatórios da patrulha diária não eram checados por seus superiores havia tempos, mas ela continuava fazendo-os meticulosamente. Abriu uma nova entrada e inseriu os dados adquiridos. “Chamas visíveis na cidade. Patrulha sem incidentes. Nenhum sinal de vida no perímetro.”

Concluído isso, seus deveres estavam terminados até a noite, quando deveria observar a cidade mais uma vez e enviar mais um relatório. Até lá, porém, podia prosseguir seu projeto pessoal. O contentamento ganhou tons familiares de ansiedade quando ela virou para fora da trilha e seguiu mais fundo dentro do bosque, agora examinando o chão e quaisquer reentrância nas pedras das “árvores” que pudesse notar. Tocou a lateral de seu rosto brevemente, aplicando a mais leve pressão, e esperou os instantes necessários para se adaptar à nova visão, mais própria para a penumbra que a aguardava. 


***


Claro, nunca lhe fora dada a autorização específica para iniciar — ou, no caso, continuar — projetos pessoais durante o tempo em que não estava cumprindo ordens. Mas também nunca lhe fora dito o contrário. Assim, ela continuava deixando seu livre arbítrio existir nesses intervalos não supervisionados, se permitindo viver da forma como queria nos momentos em que não precisava ser aquilo que lhe ordenavam. Quando a colocaram de sentinela ali, naquele posto remoto, teve esperança que as coisas poderiam se tornar mais agradáveis, mas jamais imaginara algo como o que tinha. O contentamento em si cresceu ainda mais, mesmo enquanto seguia pelo escuro do bosque.


***


Bem à frente, uma pequena manchinha verde-escura chamou sua atenção. Estava longe demais para que pudesse notar quaisquer detalhes, no fundo de uma ravina íngreme e repentina. Ela sabia que aquela formação estava ali — havia sido uma das razões para escolherem a casa como posto, protegida como estava —, mas isso não impedia o choque habitual de se deparar com um ponto onde o chão despencava, tão bem escondido. A profundidade não era tão grande, ela supunha: sua cabana ficava empoleirada em uma montanha, nos resquícios do que fora, antes dos nativos do planeta a destruírem, uma serra gloriosa. Do outro lado da horta, entre seu posto de observação e a cidade, a decida era de quilômetros e quilômetros. Seu desconforto continuava igual, frente àquele obstáculo, independente da racionalização. 

Cuidadosamente, se aproximou da beirada. Ali, se inclinando o máximo que suas articulações lhe permitiam, tentou examinar melhor a mancha verde. Tocou novamente a lateral da cabeça, ajustando a visão para conseguir mais detalhes. Suas emoções estavam em conflito: se por um lado queria que o resultado fosse positivo, por outro, torcia que aquilo não passasse de um alarme falso, e ela pudesse continuar a busca na parte de cima, um pouco desapontada, sim, mas tranquilamente. 

A imagem antes indistinta aumentou, se aproximando e ganhando detalhes. Medo e triunfo se misturaram ao perceber que estivera correta em checar a pequena pista: a forma que via era, inconfundivelmente, uma pequenina folha.


***


Quando os invasores chegaram, histórias repletas de troncos e flores deram lugar a outras menos agradáveis. Sua memória carregava, antes, o som de metal em metal, ou pedra; a imagem de cabos e dataports, de ferramentas em mãos ágeis e conversas amigáveis. Agora, o metal vinha manchado de sangue, ou óleo, ou ácido. Ela jamais fora uma boa combatente, independentemente da motivação. Mesmo assim, fez o possível para ajudar a resistência, oferecendo seus conhecimentos, sua inteligência. Quando tudo se complicou ainda mais, já perto do fim, mesmo suas mãos foram utilizadas. Arrumou defeitos simples e auxiliou médicos e mecânicos a fazerem o que era, fundamentalmente, a mesma coisa, em corpos diferentes. Não havia tempo para plantas, ou livros, ou sonhos. Só havia sangue, e óleo, e ácido.


***


Analisou a beirada da ravina, pensando em como seria a melhor forma de descer. A folha estava no fundo, mas próxima o bastante à parede para que ela não pudesse ter certeza, sem ir até lá, se se tratava de uma planta inteira ou apenas um pedaço. Mas não importava: de qualquer forma, qualquer vestígio era importante demais para ser deixado ali, precioso demais para ser abandonado em uma vala qualquer. E ela, como única guardiã daquele lugar, não poderia permitir isso. Era simples assim. Seu papel autoimposto, sentinela solitária no meio do nada, era quase como que o de uma bibliotecária, catalogando e conservando as maravilhas verdes que encontrava, cuidando delas para que sobrevivessem e pudessem ser vistas. Por quem? Isso não importava. Só o que sabia era que aquela folhinha possuía um universo de conhecimentos escondidos e não poderia ficar lá. 

Cerca de cinquenta metros à sua frente, quase numa curva, havia uma parte da descida que parecia mais fácil do que o restante, com mais apoios e menos terra solta. Sem hesitar, prontamente foi até lá e iniciou o lento e perigoso processo da descida. Da cintura, puxou um pequeno barbante metálico retrátil, que amarrou à árvore mais próxima do ponto escolhido. Não acreditava que seria o suficiente para segurar seu peso, mas, com alguma sorte, poderia lhe render alguns momentos de reação antes da queda efetivamente começar. Tocou as articulações de ambas as pernas, enrijecendo-as o máximo possível para evitar que escorregasse. Abaixada, fez o possível para começar a descer com as mãos, unhas enterradas desconfortavelmente nos apoios encontrados, as pernas apenas servindo para diminuir o peso, sem nenhuma real utilidade na movimentação vertical, da forma como estavam. Focando seus pensamentos no prêmio que a aguardava lá embaixo, procurou o próximo apoio.


***


Fora quase um alívio ser capturada, no início. Com a rebelião esmagada, os prisioneiros foram levados para servir aos invasores. Claro que ainda havia sangue, óleo, ácido, mas ela continuava desajeitada; então, ao invés de ferramentas, lhe deram uma rotina e protocolos (palavra importante e que deve sempre ser lembrada, protocolo). Ela era levada de um lado para o outro, armada de seus novos conhecimentos e de tantas ordens que mal conseguia manter a conta, e de todos os importantes protocolos. E observava aqueles que ajudou a consertar terem seu sangue, óleo e ácido derramados, mas não fazia nada. Afinal, o protocolo mais importante de todos — assim lhe disseram várias vezes, naquela nave estranha e fria, onde as poucas coisas familiares eram sombras distorcidas de suas imagens originais —, aquele que está acima de todos os outros, é a obediência. Sim, fora quase um alívio ser capturada. 


***


Demorou mais de uma hora para descer os vinte e tantos metros da ravina, mas conseguiu. Chegou ao fundo arranhada, dez vezes mais desconfortável do que se sentira pela manhã, absolutamente decidida a ignorar tudo isso em função do que viera buscar. Relaxando novamente (um pouco, não muito) as pernas, rumou em direção à folha, sempre atenta ao chão. Prestando atenção em cada detalhe de seu ambiente. A expectativa crescia dentro de si, bem como a alegria, quando chegou, mesmo que ainda não soubesse o que exatamente iria encontrar. Finalmente, a manchinha de antes estava agora a um metro de distância. Estremecendo levemente, abaixou-se e, delicadamente, tocou a folha, erguendo-a entre suas unhas.


***


Ainda não havia tempo para plantas ou livros. Sob seus novos mestres, sequer havia espaço para uma identidade; sonhos pertenciam ao passado remoto. Passado o confronto inicial — e com os membros da rebelião servindo aos invasores, como ela, ou mortos —, seus dias tornaram-se iguais. A rotina continuou sendo levada por oficiais de uma nave ou outra para que usassem seus conhecimentos. Cada um deles lhe dava novos protocolos a seguir, e ela os absorvia todos, adicionando àqueles que já possuía, criando listas mentais aplicáveis a determinadas situações sociais ou a indivíduos específicos. Nunca estava sozinha, parecia — afinal, ela não era feita para lutar, ou usar ferramentas; ela era feita para conhecer. Aparentemente, esse não era o tipo de trabalho que podia ser feito no silêncio de uma biblioteca. Jamais se sentira tão desamparada.


***


A folha não estava presa a nada, mas ela não se desapontou. Analisou-a com carinho e atenção. Hortelã. Jovem, ainda, provavelmente arrancada do caule por uma pedra caindo, ou um vento forte. Fresca e cheia de vida. Segurou a folha e olhou novamente ao redor, agora focando a visão nas paredes da ravina, procurando a origem. E ali estava: escondida em uma reentrância, invisível se olhada de cima, estava uma muda de hortelã. Não era uma planta grande ou adulta. Tinha, contra todas as probabilidades, nascido no espaço apertado entre duas rochas, provavelmente na terra que escorria do bosque acima. Mas estava lá, viva e verde. Felicidade genuína, absoluta e profunda encheu seu peito, aquecendo-a inteira e afogando o restante da preocupação.

Foi então que a chuva começou.


***


Depois de invadirem mais um planeta, sua função novamente mudou. Se ela era desajeitada, lá eles encontraram outros que podiam, também, armazenar diretrizes e funções sociais, e fazê-lo de forma graciosa. Ela, então, passou a ser usada não pelos protocolos (sempre uma palavra importante, sim, nunca esqueça), mas pelos sentidos. Aprender novas coisas. Observar e dizer o que viu. Sentinela. Sozinha no canto da nave, observando pela janela o planeta sendo destruído abaixo de si, seus pensamentos se voltaram para as plantas pela primeira vez em tanto tempo. 


***


A acidez habitual que vinha com a água a preocupava — não por si, mas pela pequena muda. Além disso, as gotas que caíam eram escuras, cinzentas, carregando a fuligem e as cinzas da cidade que queimava tão próxima como se fossem parte de uma erupção vulcânica. Teria que se mover rápido, subindo por ali, e não por onde viera. Novamente sem hesitar (afinal, qual o sentido nisso?), apanhou o mesmo cordão, que havia guardado após descer, e, mirando cuidadosamente, disparou a ponta deste em direção ao topo. Com um baque, a ponta metálica entrou fundo na pedra, e ela sentiu as vibrações dos espinhos se abrindo. Era o que podia fazer. Não enrijeceu as pernas desta vez — teria que assumir o risco se quisesse chegar lá a tempo. Decidida, começou a escalar a parede.


***

Primeiro, vieram os livros, cada um de uma origem diferente. Conseguira o mais importante quando um dos novos prisioneiros fora trazido, e suas coisas iam ser eliminadas, apanhando-o bem a tempo. Era velho, com a exibição de algumas páginas falhando e os cantos enferrujados. Nunca antes sentira tanto amor por um objeto em sua existência. Dentro, ilustrações de uma flora alienígena a saudaram, com nomes e usos medicinais escritos ao lado das figuras rudemente traçadas. Depois disso, tornou-se mais ousada, procurando livros de botânica onde quer que estivessem, ativamente buscando obras quando não precisava obedecer a ordens. E, então, veio o apontamento: seria enviada para a superfície, para um posto regular de sentinela, tão logo pousassem e encontrassem um local adequado. Seu novo protocolo.


***


A primeira vez que caiu, a corda arrebentou. Estava a uns dois ou três metros do chão quando uma de suas pernas cedeu e levou o resto do corpo. A corda, como imaginado, não resistiu, e não houve tempo para achar um novo apoio, com uma das mãos no ar, como estava. Despencou de costas, caindo com a perna direita sob seu peso e sentindo a articulação dobrar de forma desconfortável e errada. Apesar disso, continuava funcional. Não perdeu tempo em voltar a escalar, as gotas de chuva e cinza melando as paredes e tornando-as mais lisas.

Quando a segunda queda veio, já estava na metade do caminho. Subia havia quase dez minutos, quando julgou mal o atrito de um dos apoios para as mãos. Tentou enfiar suas unhas, freneticamente, na pedra, mas não teve sucesso, e novamente se viu no fundo da ravina. Desta vez, não teve a mesma sorte: se antes a perna direita estava desconfortável, agora o que sentia não podia ser descrito de outra forma que não dor. Se movimentar, nunca uma tarefa fácil, parecia virtualmente impossível, deitada, ali, na terra. Sentia algo quebrado no interior da articulação e sabia que teria que fazer algo a respeito assim que chegasse em casa. No momento, porém, a prioridade não era ela. 

Movendo a mão lentamente, tocou o cilindro metálico que agora continha a pequena folha. Uma parte de sua mente estava começando a lembrar dos protocolos corretos, em caso de ferimentos graves, mas ela a desligou. Decidida, levantou novamente, ajustando o melhor possível o membro inutilizado, e voltou a escalar.


***


O planeta onde ficaria era habitado. As criaturas nativas eram estranhas, selvagens, barulhentas. Ela foi levada junto com patrulhas, observando de longe os combates, até o dia em que chegaram à cabana. Segundo seus superiores, o lugar estava abandonado havia décadas, apesar de ser um ponto de observação perfeito. Sistemas de segurança foram instalados, instruções foram dadas e ela fora deixada ali. Sozinha. Em paz. Explorando, pela primeira vez, sua nova habitação, notou um pedaço de terra diferente nos fundos, bem próximo de seu posto de observação. Ali, meio escondida sob detritos, encontrou a primeira muda de sua horta. 


***


A planta era ainda menor, vista de perto, e ainda mais maravilhosa. Foi quase impossível a tarefa de removê-la com o cortador, e ainda mais difícil colocá-la no cilindro — agora transformado em vaso —, mas, movida puramente por sua motivação, ela conseguiu. Chegando ao topo, apanhou o prêmio em mãos e praticamente se arrastou de volta para casa, usando seu corpo como escudo entre a chuva e o pequenino pé de hortelã. Sua perna direita não se movia, e os danos eram extensos e extremamente dolorosos. Sentia algumas unhas rachadas pelo esforço de segurar as rochas. Mesmo assim, carregava a folhinha verde em uma mão, vitoriosa, e o vasinho na outra. 

Uma vez dentro de casa, concentrou-se na limpeza, primeiro — tanto sua como de sua planta. Deliberadamente, alinhou a perna novamente, imobilizando-a de forma que pudesse, mesmo que ainda mais lenta que o normal, continuar funcional. De um pacote no canto do cômodo, retirou com as mãos punhados de terra, e completou o vaso: a chuva tinha parado havia algum tempo, e a horta era coberta, mas logo estaria na hora de seu relatório noturno, e plantar era algo a ser feito durante o dia. Em nenhum momento soltou a pequena folha, e deixou o vaso na mesa apenas o mínimo necessário, logo voltando a segurá-lo. Dentro de si, sentia uma fagulha nova, algo similar àquilo que tinha quando morava em seu planeta natal e ainda possuía sonhos. Lembrou-se de como desafiara os protocolos na ravina, de como a planta (essa, sim, era uma palavra importante, planta, e não protocolo) precisava ser salva. Pensou em seu trabalho, como guardiã daquele lugar. O calor cresceu e cresceu. Sentia-se confusa, os protocolos brigando com algo que já estava em si antes, e seus pensamentos não funcionavam como deveriam. Segurou o vaso com mais força, tentando clarear a mente.

As batidas na porta vieram insistentes, quase violentas, e súbitas. Suas articulações, maltratadas pelo esforço, protestavam contra o movimento, e ela queria nada mais do que permanecer onde estava. Não havia protocolos novos para batidas na porta — seus mestres nunca se preocuparam com essas formalidades —, mas ela se lembrava de quando isso era feito, antes. Antes da rebelião e da captura, quando ainda havia tempo para sonhos e decisões, lhe fora ensinado a abrir portas quando alguém batia, porque era educado (outra palavra importante, não era? Ela tinha certeza que era). Ficou em dúvida se deveria deixar o vaso de hortelã no chão ou levá-lo consigo; a ação prudente seria, é claro, colocar a planta na estufa, mas as batidas estavam tão frenéticas, e a mudinha era tão jovem, e tão querida, que não conseguiu resistir, levando-a junto.

O vaso, porém, impediu-a de ativar o painel de segurança. Tão logo ela destrancou a porta, esta abriu com um baque, e uma das criaturas entrou, presas à mostra, armada em ambos os braços. Ela tentou recuar, mas a perna não obedeceu. O ser selvagem sorriu um sorriso horrendo e ergueu uma das mãos. Tudo o que lhe foi possível fazer, tão mais lenta que o monstro invadindo sua casa, enquanto encarava as profundezas da arma, foi fechar os olhos, e abraçar o pequeno vaso, buscando no gesto o pouco conforto que pudesse conseguir no contato com um amigo, pensando que conseguira, ao menos, proteger ele, guardá-lo. Cumprira sua função.


***


A explosão foi um pequeno trovão na cabana, seguida do baque surto de metal encontrando madeira.


***


Respiração ainda acelerada, o jovem baixou a arma, finalmente parando para observar a cabana. Tinha tido alguma esperança de encontrar outro humano ali dentro, mais algum sobrevivente. O lugar era isolado e rústico, uma cabana de madeira — madeira! — observando a cidade que ainda queimava. Seu coração quase pulara para fora do peito quando um deles abriu a porta. O corpo (Podia usar esta palavra para algo que nunca tinha tido vida?, pensou ele, ainda combatendo o pânico) do robô, aos seus pés, segurava algo nas garras que tinham à guisa de mãos. Cuidadosamente, ele apanhou o pequeno cilindro, examinando-o.

Uma planta. Pequena e frágil, mas quase milagrosamente intacta. Sua respiração ficou presa na garganta, e uma lágrima escorreu, quase que instantaneamente, do canto do olho direito. Plantas. Abraçando o vaso como a uma criança, ele adentrou mais a fundo na cabana. Quem sabe que outros segredos estavam guardados? O que mais estaria ali, escondido, esperando que ele fosse ver? O cheiro de hortelã cercava seus pensamentos, e todo o resto estava esquecido. 


***


Na sala, óleo e ácido escorriam do pequeno corpo metálico, encharcando uma única folha ainda presa entre as unhas da mão rígida. Sob a meia luz, porém, tudo se misturava numa poça escura como sangue.


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