Prólogo
Epílogo
Conto
Era a última sessão do tribunal, o juiz Tomaz Schutter já estava um tanto quanto abatido por ter quinze casos complicados em um só dia, este pelo menos era o último. A escrivã também parecia exausta, o júri cansado e as demais pessoas como testemunhas também se sentiam da mesma maneira.
Enfim é anunciado o último réu. O homem não tem uma boa aparência, seus cabelos loiros e compridos eram oleosos, sua barba mal feita era uma característica cruel para sua aparência. Seus olhos azuis como o mar se destacavam, cicatrizes por toda a extensão de seu braço esquerdo também, assim como uma leve prótese mecânica cheia de engrenagens e cabeamento, se destacava no lugar de seu braço direito. Este era um homem de trinta e cinco anos, mas pela sua falta de vaidade ele aparentava ter muito mais.
Como o tribunal era um lugar de honestidade, justiça e igualdade. Era possível que o réu ou mesmo as testemunhas cumprimentassem com um aperto de mão o homem. Ele fez questão de cumprimentar a todos, Tomaz era o único isento de cumprimentos já que ele precisava ser a face da verdade ali. As pessoas vestiam roupas tradicionais da época. Os homens trajavam ternos, com gravatas, a maioria usava óculos e até um monóculo que era um símbolo nobre. As mulheres usavam vestidos com longos detalhes em bordado. Algumas preferiam o uso de chapéu para combinar com o figurino, outras eram adeptas do uso de próteses mecânicas, mas escondiam-nas dentro de suas roupas.
O pequeno lugar tinha algumas janelas com vidros lisos, portas com dispositivos de acionamento de segurança e pequenos adornos de decoração da era vitoriana.
Rabiscando alguns papéis em cima do altar do tribunal, Tomaz dá início ao julgamento.
- Zeke Buford Granger, homem, trinta e cinco anos, acusado por explodir um restaurante com vinte e sete pessoas dentro dele. Ficou no local e se entregou normalmente à polícia, disse que não tem nada relacionado com o caso, mas que aceitaria ser julgado e gostaria de vir ao júri. – Tomaz ajeitou seu bigode, arrumou os papéis que estava sob seu domínio e olhou atentamente pra Zeke. – Você está com um grande problema aqui, Zeke. Será que consegue nos dizer o que aconteceu de verdade?
- Claro que sim, senhor juiz. – O homem tinha um sotaque refinado, apesar da má aparência. – Posso acender um cigarro antes?
- Não se pode fumar no tribunal, senhor Zeke. – Alertou o juiz.
- Tudo bem. – Ele estava com algemas em suas mãos, mesmo em depoimento pelo o acontecido ele era considerado uma ameaça. – É uma longa história, senhor juiz. Espero que o senhor e todas as pessoas tenham paciência em ouvir.
- Estaremos todos à ouvidos. – O homem já sabendo que uma longa história viria e devido à sua experiência em comandar o tribunal e se deparar com casos iguais à esses, ele já sabia que ouviria uma longa história, porém, ao olhar ao relógio pendurado bem na sua frente, ele se espantou. – Bem, senhor Zeke, o tribunal não tem hora para fechar, porém, como o horário já está tarde e algumas pessoas daqui deste júri e inclusive testemunhas tem seus compromissos, consegue terminar sua história em quarenta minutos?
- Eu preciso de trinta e dois minutos. – O homem o encarou.
- Trinta e dois minutos? – O homem levantou o cenho e coçou seu bigode. Achou estranha a exigência neste número, mas concordou. – Tudo bem.
Como era um caso onde o próprio acusado se entregou para as autoridades, ele não tinha qualquer advogado de defesa, quando do outro lado havia um advogado geral instituído pelo conselho municipal onde lutaria pelos direitos daqueles feridos e mortos pela explosão no restaurante.
- Bem... A história começa quando eu nasci. A partir do meu nascimento, meu pai se tornou um viciado em drogas, mesmo assim após dois anos, minha mãe teve coragem de engravidar e dar à luz ao meu irmão mais novo, Zaruel. – O homem encarava o juiz com determinação. – Sendo assim, fomos criados por um pai drogado e uma mãe sem voz ativa, já que após algum tempo ela começou também a usar drogas e ser pior que meu pai. Após alguns anos, ficamos órfãos, quando alguns traficantes acabaram com a vida deles por causa do dinheiro que deviam e das drogas que eles roubavam para consumir.
As testemunhas, o júri, a escrivã e até mesmo o juiz não entendia o começo desta história, não fazia o menor sentido. Tomaz apenas deixava seguir com o discurso, no final, quem sabe faria algum sentido e também, ele detinha documentos em mãos que contavam a mesma história que ele contava. Os documentos não mentiam.
- Eu trabalhei em dois empregos, garçom e mecânico de peças, relógios, motores e até próteses como esta, tudo para meu irmão poder ter uma vida digna. Meu irmão conseguiu se formar em engenharia química e arranjou um grande emprego, enquanto eu mantinha os dois empregos para sustentar nossa casa. – O homem fez uma pausa. – Posso fumar um cigarro?
- Não, prossiga com a história. – Disse Tomaz.
- Certo. Meu irmão fazia experiências incríveis, ele havia descoberto diversas teses e experimentos que hoje fazem parte do nosso dia a dia. – Ele continuou. – Motores à vapor, sistemas à vapor e até mesmo esses maquinários modernos surgiram por causa do meu irmão. O final da história é que ele infelizmente morreu após um acidente em seu laboratório. Fim da história senhores.
O que começou confuso terminou muito mais confuso ainda. O júri começava a cochichar entre eles, as testemunhas estranhavam aquela história, uns já declaravam que Zeke era um louco e que não poderia responder em liberdade. Entretanto, o juiz tinha mais algumas coisas, ele olhou ao relógio e notou que havia se passado apenas seis minutos.
- Meus sinceros sentimentos pelo seu irmão, Zeke. Realmente é difícil perder membros da família, ainda mais por conta de acidentes trágicos. – Tomaz era neutro e desejava as condolências para o homem. – Mas a sua história não consiste em nada relacionado ao que temos aqui, explosão em um restaurante, inocentes vítimas, você se diz o próprio culpado pelo ato. Você não está me ajudando a te ajudar, meu caro Zeke.
- Sim, foi isso mesmo senhor juiz. – O homem o encarava com olhos desafiadores. – Eu sou o culpado por tudo.
-Tudo o que, senhor Zeke?
- Tudo.
O juiz era experiente e sabia apenas no olhar do homem que ele escondia algo, ou era uma verdade inestimável ou uma mentira esfarrapada. Tomaz o encarava também neste meio tempo, ele se lembrava dos trinta e dois minutos ditos pelo homem e pensou que pudesse encontrar algo.
- Culpado!
Uma das testemunhas gritou da platéia, com a coragem de gritar logo outra pessoa também gritou.
- Culpado!
Em pouco tempo aquilo se tornou um imenso coro, onde esta palavra se destacava no recinto.
Com três fortes marteladas com um martelo feito de ouro maciço e brilhante, ele batia no altar do tribunal com força.
- Silêncio no tribunal! – Tomaz ordenou forte. – Quem decide se ele é ou não culpado sou eu e as pessoas do júri. Se mais alguém quer se tornar um réu neste recinto, por favor, grite novamente que Zeke é um culpado, terei o maior prazer de colocar uma sentença em sua vida e te culpar por ser mal educado em uma sessão com o juiz Tomaz Schutter.
O silêncio era notório naquele lugar após o esporro de Tomaz para com todos. Até mesmo os guardas de plantão ficaram um pouco constrangidos, as pessoas mal respiravam para não causar sequer um barulho.
- Então, Zeke. – O homem já não parecia tão calmo, unindo os outros catorze casos daquele tribunal e este último com um réu enigmático, seu raciocínio pedia rapidez. – Você se diz culpado por tudo. O que é tudo para você?
- Senhor Juiz, eu posso acender um cigarro? – O homem o olhava com o mesmo olhar de antes.
- É a terceira vez que você me pede isso, Zeke. - O juiz o encarava de volta. – E vou negar pela terceira vez. Apenas responda a minha pergunta.
- Certo, peço perdão pelo incômodo. – O homem se abaixou um pouco, deixou os cabelos caírem sobre sua face, de relance, ele olhou para o juiz. – Meu tudo era meu irmão, Meritíssimo. O senhor sabe quem foi meu irmão?
- Zaruel Benford Granger, um respeitado cientista e engenheiro. Teve diversos projetos que hoje, é referência na nossa vida. É um homem incrível e deve ser lembrado pela comunidade hoje, amanhã e sempre. – Tomaz tinha conhecimento do irmão de Zeke. – E a perda de seu irmão afetou o seu psicológico? Você perdeu a sanidade com a morte de seu irmão?
- Não. Muito pelo contrário, vossa excelência. – Respondeu ele erguendo a cabeça. – Estou no meu melhor momento aqui, minha consciência é a mais limpa de todas.
- Mesmo você tendo causado uma explosão em um ambiente público? – O juiz se assustou.
- Sim.
- Então você é um completo louco. – O pegou seu martelo, ele nem discutiria com o júri as questões de instabilidade mental sobre este homem. Por ele, já havia decidido o destino deste homem. Ele era culpado e teria que cumprir uma pena de cinco a quinze anos por cada morte relatada e dois a três anos para cada pessoa ferida dependendo do grau de ferimento da vítima. Ele ergueu o martelo para encerrar o processo.
- Vossa Excelência! – Gritou o homem.
Ele parou com o martelo no ar e olhou com fúria para o réu.
- Se tem algo lúcido para falar, essa é a sua hora. Caso contrário, fecharei o processo e você cumprirá uma das piores penas possíveis. – Seu tom de voz era alto e poderoso.
- Tenho sim, mas provavelmente não vai mudar a minha sentença. – Disse o homem relaxando. – Eu explodi realmente o restaurante, feri pessoas inocentes e fiz tudo isso com consciência de meus atos, tanto é que me entreguei logo depois, mas não estou arrependido, pois fiz isso em nome de uma nova sociedade. O senhor tem alguns papéis aí em cima, não? Alguns datando acontecimentos da minha parte, outros provavelmente das pessoas que fizeram depoimento a favor da minha prisão e outras contra, também deve ter alguns arquivos sobre meu irmão, mas...
Tomaz abaixou o martelo, pareceu interessado. Ao desviar o olhar para o júri, eles também pareciam interessados no que o homem tinha para falar. As testemunhas mesmo que algumas eram contra ele, esperavam por algo, afinal, era um acidente em um local público onde famílias e crianças estavam presentes. Por todo o discurso que ele vinha fazendo, as pessoas no geral, tinham suas curiosidades afetadas pela história do homem.
- Prossiga. – Ordenou Tomaz.
- Mas... Nenhum deles deve contar o que foi de verdade o meu irmão e a vida dele. Quais os sentimentos dele, o que ele achava sobre as experiências dele, ou como ele gostaria de ver suas invenções no dia a dia. – O homem bateu forte na sua prótese mecânica do braço direito. – Esta prótese foi o primeiro protótipo dele! Essa é a única coisa que ele viu em vida que foi sua criação! Como você se sentiria ao saber que tudo que você criou, quando você estava vivo nada adiantou?
Zeke se virou de costas para o juiz e olhou para as testemunhas, seus olhos estavam arregalados mostrando certa fúria ou raiva de algo que aconteceu ou mesmo de alguém dali.
- Como vocês agiriam? Ou melhor, como vocês se sentiriam em saber que tudo o que o irmão de vocês fez, só se deu valor após a trágica morte dele. – Ele novamente se virou para o juiz. – Me desculpe vossa excelência, mas o senhor sabe como ele morreu? A verdadeira história?
- De maneira alguma, conte-me, por favor.
- Era a experiência da vida dele. Um motor a vapor muito mais potente e rápido do que temos hoje, serviria para atender qualquer grave emergência em segundos. O motor serviria até para fazer navios voarem... Abrindo uma gama de opções para todas as cidades, estados e países do mundo para transportarmos o que quisermos. Era a descoberta do século. – Ele continuava encarando o homem mostrava determinação e o desafiava a cada momento. – Na noite do acidente eu o ajudava com a parte da força bruta. Movia as peças para lá e pra cá dentro de seu laboratório. Quando terminei, finalmente saí para jantar. – Ele abaixou a cabeça, estava desanimado e entristecido, o momento de fúria havia passado. – Então houve uma explosão dentro do laboratório. Eu não consegui salvá-lo, ninguém conseguiu. A pesquisa de anos terminou ali junto com a explosão, a minha esperança também.
Um silêncio tomou conta do tribunal como forma respeitosa de luto pela morte do irmão do acusado. Algumas pessoas que achavam que Zeke era um maníaco e um louco, já começaram a olhá-lo diferente. Sentiam empatia pelo homem e se questionavam se no lugar dele, eles não fariam o mesmo.
O júri também estava inquieto. Conversavam-se entre si, se questionando atitudes e pontos de vista do réu. Avaliavam a expressão do público e seus próprios sentimentos em relação àquilo.
Os guardas que cercavam as saídas do tribunal, estavam também comovidos pelo discurso do homem. Apesar de serem neutros, em cada olhar era possível perceber o que cada um sentia.
Tomaz estava pensativo, já ouvira muito desses discursos motivacionais, sabia onde o julgado queria chegar, seus olhos estavam fixos no relógio no alto da parede. Dos trinta e dois minutos citados, restavam apenas nove. O juiz analisava as opções, enquanto foi interrompido de seu pensamento.
- Posso acender um cigarro antes de ser levado para a cadeia, Meritíssimo? – Zeke não tinha mais o olhar desafiador. Sua expressão era de calma, de paz para consigo mesmo, talvez toda a fúria que ele havia tido com a morte do irmão desapareceu neste surto que ele teve.
Tomaz ficou pensativo, olhou para o público e eles lhe estavam dizendo silenciosamente para deixar o homem tragar o último cigarro. Ele não ousou ir contra a maioria, pois no fundo, também gostaria de dar uma boa tragada em um cigarro.
- Fique à vontade, Zeke. – Ele disse. – Porém, esta será a primeira e a última vez que uma pessoa acende um cigarro no meu tribunal.
- Tudo bem.
Zeke pediu um isqueiro para alguém, uma pessoa do júri jogou o acendedor até ele e com um estalo no mecanismo de pressão, uma pequena chama se formou. Do bolso esquerdo de sua maltrapilha ele retirou um maço amassado de cigarro, puxou um com os dentes e se aproximou da chama. Tragou o primeiro fumo, fechou os olhos. Sentiu a fumaça percorrer sua garganta e seu pulmão. Devolveu o isqueiro para a pessoa e apoiou o cigarro em seu braço mecânico.
- Então pelo visto, temos um veredicto? – Tomaz quebrou a tranqüilidade do rapaz com o cigarro. Sabia que aqueles trinta e dois minutos significariam algo, provocou o homem para ver se ele teria alguma reação.
- Pelo visto sim, Meritíssimo. – Ele tragou mais uma vez. A intensidade da fumaça era um pouco maior do que o normal. Chegava até mesmo causar certo sufoco no próprio Zeke.
- Os trinta e dois minutos que você disse... Tinha algum significado? – O juiz perguntou, ele estava com o martelo em mãos, pronto para terminar aquela sessão e finalmente ir para casa.
- Não tinha significado nenhum, Senhor Juiz. – Ele tragou com pressa. Seu olhar não procurava ninguém, apenas estava concentrado em seu cigarro. – Tem um significado. O senhor sabe o que meu irmão mais desejou na vida dele?
- Não sei.
- Desejou que as pessoas não se estagnassem no tempo, que elas arranjassem uma forma de sempre evoluir, assim como ele. Meu irmão estava querendo a rapidez na nossa vida e por isso que os trinta e dois minutos é a resposta para tudo. – Ele sorriu. – Se passaram vinte e sete minutos não é Meritíssimo?
Tomaz arregalou seus olhos e largou o martelo de condenação. Ele se levantou e apoiou os braços no altar, iria falar com seriedade para o réu, quando de repente, as portas se trancaram sozinhas. Elas tinham engrenagens imensas e quando elas travavam, dificilmente poderiam destravar, as portas eram abertas apenas por fora, nunca por dentro. O tribunal tinha mínimas janelas, mas eram bem no alto e também tinham um mecanismo de travamento do qual deixavam elas também travadas.
As luzes começaram a piscar e o sensor de engrenagem de incêndio simplesmente estourou logo após o fechamento das portas e janelas. As pessoas começaram a se sentirem estranhas, não entendiam o que havia acontecido.
- O que você fez? – Tomaz não ia perguntar isso, quando se levantou. Ia dar uma bronca, mas aquilo lhe pegou de surpresa, em todos esses anos de tribunais, era a primeira vez que isso acontecia.
- Não sei se lembram... Mas quem reformou este tribunal fui eu mesmo. Instalei algumas coisas interessantes. – Zeke fumava com calma, enquanto todos olhavam para si, estavam mais preocupados neste instante, do que antes dele ser julgado. – As portas reagem à fumaça e burlei o mecanismo dos interruptores de incêndio. Com isso, estamos todos presos aqui.
As pessoas do lugar, cerca de mais ou menos quarenta começaram a se desesperar, levavam as mãos até a cabeça e começavam a pedir por socorro sem nem entender o que de fato acontecia. Os guardas então começaram a impedi-las de tentar pressionar a porta e pediu para que ficassem sentadas.
- Aconselho vocês a não tentarem abrir a porta pelo lado de dentro, há uma bomba muito mais potente do que a do restaurante instalada neste lugar. Qualquer tentativa para abrir a porta, o pino da bomba pode ser puxado e todos nós consequentemente mortos pela explosão, mas... Tanto faz, ninguém vai sair vivo daqui mesmo. – Zeke continuou a tragar seu cigarro, estava tranquilo.
- O que tem em mente, Zeke? – Tomaz parecia alterado, perdeu sua compostura neste instante, vendo que por causa de um maníaco que até sentiu compaixão por ele, foi enganado e ainda mais, ele estava à frente de Tomaz na linha de raciocínio. O juiz não o perdoaria jamais.
- Após atingir os trinta e dois minutos uma bomba irá se acionar. A bomba consumirá todo este lugar em vinte minutos, porém, será também acionado com um alarme diretamente para o hospital e para a polícia para que cheguem aqui, vocês podem rezar para que eles cheguem antes e consigam abrir a porta por fora e salvar todos vocês. – Ele emanava uma calma surreal diante daqueles problemas todos. – É o fim para todos nós.
Um dos guardas retirou sua pistola automática da cintura, deu dois passos em direção ao homem e apontou a arma para ele. Hesitou em atirar, olhou para o juiz para ter uma confirmação se poderia fazer aquilo e o juiz lhe deu permissão, seria o fim de Zeke.
- Atirar em mim, não vai mudar nada, vai até piorar a situação de vocês. – Ele encarou o guarda. – Eu sou o único capaz que pode desativar a bomba.
- E o que você quer em troca disso? – Tomaz gritou de seu lugar no tribunal. – O que você quer com isso? Matar e morrer vai lhe ajudar em algo?
- É preciso sacrifícios para que as pessoas aprendam os verdadeiros valores da sociedade, Meritíssimo. – Ele se sentou na bancada do lugar, parecia calmo, seu olhar estava distante, enquanto tudo ao seu redor desmoronava. – Meu irmão foi o sacrifício perfeito para enxergar isso, agora todos nós seremos também.
- Você é louco! – Gritou uma mulher que formava o júri. – Um louco, maníaco, esquizofrênico! Você deve ter matado seu irmão também! Você é o culpado por tudo! Sabia que eu tenho dois filhos pequenos? Você cresceu sem sua mãe, correto? Vai fazer com que eles também cresçam sem uma?
- Seu sacrifício não será em vão. – Ele disse enquanto novamente tragou.
Ouviu-se um apito, como se uma bomba tivesse acabado de ser ativada. O mecanismo que envolvia a bomba era com engrenagens e barulhos comuns do dia a dia daquele mundo. E por isso todos já puderam imaginar do que se tratava, enfim os trinta e dois minutos se passaram.
As pessoas do tribunal se dividiam entre choros, lágrimas e raiva. Uma parte das testemunhas começava a chorar, já haviam desistido de lutar e argumentar. Só pensavam na trágica morte deles naquele lugar, desejavam nunca terem ido testemunhar contra um louco. Suas vestes com cartolas, paletós e até relógios de bolso se perdiam ao meio do desespero que eles mesmo tinham.
Outras testemunhas não se continham em lágrimas, eram reféns de uma explosão que ninguém poderia salvar. Havia uma chance da polícia ou o hospital chegar à tempo, alguns se ajoelhavam e olhavam para o céu, retiravam seus pertences e ofereciam à qualquer ser supremo que os escutasse para que ajudassem-nos. Os pertences eram carteiras, relógios bonitos e até mesmo dinheiro. Nada de valor para seres supremos.
A metade se continha em raiva, estavam furiosos e olhavam com ódio para Zeke, os guardas impediam alguns homens violentos e bem vestidos que dariam uma surra no réu, não apenas pelo motivo atual, mas pelo motivo do próprio restaurante.
O júri, as testemunhas, advogados de defesa e guardas de justiça, se misturavam naquele salão, tudo ficava uma enorme bagunça. Os bancos de madeira com detalhes em metal já estavam fora de lugar, os enfeites das paredes, como pinturas de engrenagens, motores e até mesmo trens, caíram. Vasos com belas flores, já haviam sido quebrados.
A cada segundo, um suave bip ecoava pelo salão, mostrando que a bomba explodiria a qualquer instante. As pessoas tinham a esperança de alguém abrir a porta. Se passaram cinco minutos desde então.
Tomaz saiu de seu lugar, estava ali o dia todo. Suas costas estralaram ao seu mexer, assim como suas pernas. Desceu um degrau de madeira e chegou até a bancada onde estava Zeke, ele se sentou ao lado dele.
- Me dê um cigarro. – Ordenou o juiz.
- Não se pode fumar no tribunal, Meritíssimo. – Brincou Zeke oferecendo um cigarro ao homem, junto com um isqueiro que estava jogado ali ao chão, no meio da confusão.
- Dane-se o tribunal. – Disse Tomaz. – Pensei que hoje seria um dia cansativo, mas não cansativo ao ponto de morrer de tanto trabalhar. – Ele tinha um senso de humor muito refinado também. Acendeu o cigarro, puxou o ar e soltou. Ficou aliviado. – Os policiais e nem a ambulância vão chegar à tempo, não é?
- Não.
- E onde se encaixa os trinta e dois minutos então? – Tomaz parecia querer entender o plano dele.
- Você ainda não entendeu, não é? – Zeke sorriu, mostrando seus dentes amarelados, ele tinha dois dentes de ouro na boca. – Quando chegar a hora, você entenderá.
- Não sabia que havia um entendimento no pós-vida. – Tomaz tragou seu cigarro, parecia familiarizado com aquela espécie de droga lícita. Por muito anos era dependente do cigarro.
Foram então os quinze minutos mais longos da vida das quarenta pessoas ali de dentro. A cada bip era um pensamento sobre a vida, sobre seus próprios erros, sobre praticamente tudo o que cada um fez em sua vida. Era um momento de despedida, as pessoas colocavam para fora o que elas precisavam por para irem em paz consigo mesmas.
Alguns presentes até se declaravam, havia amigos de longa data e até ex-casados que não estavam se entendendo. As pessoas colocaram o orgulho de lado nos últimos momentos. Perdoaram e pediram perdão pelos atos do passado. Estavam aliviados de suas injúrias, do passado tempestuoso que os atormentavam, por um momento estavam felizes.
Na contagem do relógio, restavam vinte segundos. Os apaixonados se abraçaram e se beijaram no último instante. Os amigos ficaram de mãos dadas. Os conhecidos ficaram se olhando, Zeke e Tomaz fumando seus cigarros.
O relógio então marcou os cinco segundos finais, todos fecharam seus olhos, já haviam aceitado o destino: a morte. Aguardavam o julgamento posterior, já que em terra eles não foram tão bons, como deveriam ser. Todos no fim tinham um crime para confessar. Independente se era perante a lei, ou perante a ética da sociedade. Todos tinham erros e crimes.
O último bip aconteceu.
Todos ainda respiravam e estavam vivos. Nenhuma bomba explodiu, os olhos se abriram e eles estavam felizes por estarem vivos. Muitos nem entendiam o motivo, mas glorificaram aos seres supremos que eles acreditavam e agradeciam as orações. Os guardas também estavam emocionados de estarem ainda ali, respirando, sentindo, vivendo. Foi uma grande comemoração.
- Não entendi. – Disse Tomaz apagando o cigarro por completo e deixando a bituca por ali mesmo na bancada.
- Eu não tenho vício em fumar, mas infelizmente precisava me tornar um fumante para que vocês entendessem o que de fato aconteceu. – Sibilou Zeke. – Meu irmão era fumante, um completo viciado. No dia de sua morte, momentos antes de explodir, ele jogou uma bituca semi-acesa em um dos lixos do laboratório, por azar, este lixo continha substâncias inflamáveis.
O homem continuou, agora com a atenção de mais pessoas olhando para ele.
- O laboratório era equipado com o mesmo sensor que instalei aqui. Com a mínima fumaça iria emitir um alerta de socorro para a polícia, o corpo de bombeiros e hospitais. Foram vinte minutos até que a explosão acontecesse. Vinte minutos esperando ajuda e ela não vinha de maneira alguma. – O homem parou. – Então a explosão aconteceu. Foi terrível, o escritório todo desmoronou. O laboratório ficou em chamas. Tudo se foi. Meu irmão ficou lá dentro, esperando ajuda. Eu fui a única ajuda que ele teve com rapidez, porém, eu não sou um paramédico.
Desta vez todas as pessoas estavam escutando o homem, era o discurso mais importante da noite.
- Esperamos por ajuda, mas como sabem os motores de hoje em dia não são os melhores. O governo proibiu o uso dos motores de alta performance que meu irmão havia criado, eles disseram que era vantajoso apenas para o criador e não para a sociedade como um todo. Qualquer veículo chegaria em até quinze minutos no local da explosão e meu irmão poderia estar vivo hoje, mas infelizmente a primeira ajuda demorou cerca de trinta e dois minutos para chegar. Meu irmão já foi levado morto para o hospital.
Todos ficaram em silêncio. O filme que passava na cabeça dele sobre a vida deles em plena morte, agora estava a imagem de Zeke ajudando seu irmão. O acontecido serviu para eles sentirem na pele o que Zeke vivenciou com seu irmão.
- Portanto... – Continuou Zeke com os olhos cheios de lágrima.
- Portanto, o senhor se viu na obrigação de provar não apenas para os cidadãos comuns, mas para membros do governo e da legislação que o uso dos motores está ultrapassado demais e que com isso, nós possamos vivenciar uma experiência igual a sua e lutar para que nossa sociedade não fique estagnada no tempo por motivos de ganância dos governadores deste país. – Tomaz completou o que o homem tinha a dizer e olhou para ele. Zeke sorriu feliz, pois era justamente isso que ele tinha para falar. – E o caso no restaurante?
- Encenação. – Ele respondeu calmo, com lágrimas nos olhos. – As pessoas provavelmente se mancharam com molho, ketchup e os ferimentos foram feitos superficialmente para parecer real. Sinto muito, mas era a única chance de vir até aqui.
- Entendo. – Tomaz sorriu.
- Sei que fiz muitas coisas erradas também aqui dentro deste tribunal, infringi a lei, enganei autoridades, desrespeitei membros do governo, fiz muitas coisas erradas. – Zeke parecia arrependido. Seu olhar não era mais desafiador, mas sim o olhar de um pobre homem em busca da justiça para toda a sociedade. – Eu ainda assim serei condenado, Meritíssimo?
- Eu já tenho a minha opinião formada, mas é preciso ver com todas as testemunhas aqui presentes e o júri para saber se você é inocente ou não. Deixo tudo nas mãos deles. – Tomaz se levantou. – Enquanto isso, estarei preparando alguns documentos a respeito da condenação de alguns governantes.
- Como faremos então? – Questionou Zeke.
- Pergunte à eles.
O homem se virou para todas as pessoas ali presentes, uns ainda abraçados, outros com olhos vermelhos de tantas lágrimas que escorreram. Outros alegres e aliviados por serem perdoados e por terem pedido perdão de atos injustos. O réu deu um passo à frente e abriu a boca.
- Então... Eu sou culpado ou inocente para vocês?