Sinopse
Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :DO passado pode assumir várias formas. As vezes pode aparecer em uma foto, uma antiga gravação, uma notícia no jornal de mais 20 anos atrás ou um antigo paciente.
Prólogo
Epílogo
Conto
[...]
– Você fala o mesmo idioma que eu? Consegue entender o que digo?
– Sim.
– Sabe onde estamos?
– Não.
– Em que ano estamos? Que dia é hoje, sabe me dizer?
– Não sei.
– Como é o seu nome?
– Não me lembro...
– Você se lembra de onde você veio?
– Sim.
– Muito bem. De onde então?
– Lugar Nenhum.
•
– Isso mesmo, belezinha! Me mostre tudo. Dê tudo ao papai... – murmurava a inusitada figura, a cabeça coberta por um largo chapéu camuflado e brandindo, acima do chão úmido, um estranho equipamento metálico, como um bastão de alumínio tendo acoplada à sua ponta uma pequena antena circular.
Da ferramenta, conforme o homem a levava de um lado para o outro enquanto caminhava, sons de bip eram emitidos, ressoando ora constantes, ora incertos, mais rápidos ou mais lentamente, luzes piscando para acompanhar o ritmo.
O homem, que usava grandes óculos escuros, tinha o rosto coberto por uma barba espessa, e usava algo como um uniforme de escoteiro. No peitilho do colete que trajava, um crachá identificava o nome de Simon Darrot.
A cada passo que dava, seguindo a direção na qual o sinal do detector mostrava-se mais atraído, ele conferia os dados da frequência captada numa espécie de medidor, em formato circular como um relógio de parede, mas pequeno o suficiente para carrega-lo com facilidade usando apenas uma mão.
– Ora, mas o que é isso...? – falou para si mesmo, Simon, ao observar um pico de sinal captado pelo detector. Olhando para baixo, perto da margem de um pequeno charco formado naturalmente pela água da chuva, entre um amontoado de alguns troncos em decomposição e restos de folhas de outros outonos, viu o característico brilho metálico, minúsculo, refletindo prateado o céu claro acima.
Àquela distância, parecia uma moeda ou algo semelhante, e pela cor com certeza valeria alguma coisa. Tomando cuidado para não tropeçar, Simon, colocando o equipamento pesado sob um dos ombros, começou a descida leve da ribanceira. Colocando-se finalmente diante do tesouro que havia descoberto, ele agachou-se para pegá-lo. Quando o tocou e tentou remove-lo do chão, percebeu que tratava-se de uma espécie de medalhão em um colar de corrente, e estava preso a algo.
Ocupado tentando puxa-lo sem que arrebentasse, foi surpreendido por uma mão completamente negra de barro que subiu de repente do chão e agarrou-lhe o pulso.
•
As sirenes rugiam, agourentas como um mal presságio, aproximando-se cada vez mais daquele lugar remoto, completamente afastado de tudo, próximo somente do porto que guardava os raros barcos de pesca e passeio que por algum motivo desconhecido decidiam atracar às margem da baía desolada.
Gilbert, que manobrava a ambulância com atenção, concentrava-se ao máximo para não passar por cima de nenhum dos inúmeros troncos caídos e pedras que acidentavam a estrada estreita – que mais parecia uma trilha – e que poderiam, com aparente facilidade, furar os pneus do veículo ao seu menor descuido.
– Você pode repassar o chamado, por favor? – pediu Clarisse, a Adam.
– Fomos acionados por um explorador que estava por perto do pântano procurando por algo de valor ou sei lá o que. Ele encontrou a vítima. Segundo seu relato, o indivíduo parecia quase morto e lhe deu um tremenda susto. Quando se acalmou e percebeu a situação, ligou para a emergência imediatamente. E aqui estamos...
– Aqui estamos... – concordou Clarisse, pensativa, a voz quase não sendo ouvida pelo barulho da ambulância.
– Sabe? Esta talvez não seja a primeira ocorrência de algo parecido – comentou ela, após alguns minutos em silêncio, como se houvesse se lembrado, de repente, de uma coisa muito antiga.
– O que quer dizer?
– Meu pai, uma vez, disse que recebeu na ala de emergência um homem que havia sido encontrado nesse mesmo pântano. Pelo que ele me disse, o homem também estava muito ferido, quase morto.
Adam a observou por alguns momentos, tentando definir se Clarisse poderia estar tentando simplesmente deixa-lo assustado ou se realmente falava a verdade. Clarisse quase nunca mencionava o Dr. Mac’Griffin, seu pai, e além disso, algo na intensidade do olhar que ela lhe lançava de volta o convenceu de sua história. Mas quando estava prestes a fazer um comentário sobre o que ela havia dito, foi interrompido:
– Chegamos – disse Gilbert, estacionando o veículo.
Ao saírem, Clarisse e Adam depararam-se com um homem peculiarmente vestido, à sua espera. A parte inferior de seu uniforme, ou o que quer que ele estivesse vestindo, estava completamente sujo de barro e outros detritos, como se houvesse mergulhado na lama.
– Oi... Olá, sou Simon Darrot, fui eu quem os chamou... – começou ele, mas não conseguiu completar a frase.
– Onde está o ferido? – questionou Adam rapidamente, sem importar-se com que o outro dizia.
– A... ali – falou Simon, perdendo um pouco a compostura que a muito custo parecia manter, apontando para a direção correta.
– Nos guie até lá. O tempo é essencial – disse Clarisse, imperativa, enquanto seu companheiro buscava uma maca portátil na ambulância, alçando-a sem dificuldade em um dos grandes braços.
•
Avançando com dificuldade pelo caminho estreito, repleto de árvores meio caídas com galhos baixos e o chão saturado de ramos de trepadeiras, que esticavam-se perigosamente como longas teias pelo solo rico, os dois enfermeiros seguiam Simon.
– Mas o que? – disse ele, baixinho. – Ele deveria estar bem ali! – falou então, mais alto, apontando com nervosismo para um local mais baixo no terreno.
– Você está me dizendo que o homem que você disse ter encontrado quase morto simplesmente saiu andando? – questionou Clarisse, rudemente.
– Sim...
– Olhe isso! Há algumas pegadas por aqui. Parecem recentes – disse Adam, atrás.
– Vamos procura-lo então – ordenou Clarisse, em tom definitivo, ao colega. – E espero que isso não seja nenhum tipo de brincadeira sua, nós não temos tempo para perder com trotes – falou ela, olhando fixamente para Simon, que encolheu-se como um balão murchando.
Simon estava pálido como papel, mas não ousou se interpor aos dois, que já seguiam com cuidado as pegadas no chão.
– Isso é sangue – anunciou Adam, indicando com a cabeça o tronco áspero de uma árvore ao seu lado.
– Parece que as pegadas acabam aqui.
– Clarisse! Cuidado! – gritou de repente Adam, já deixando cair dos ombros a maca.
Saindo por entre alguns arbustos, uma figura toda marrom de sujeira pulou sobre a mulher, que por muito pouco não caiu. Ela, conseguindo segurar as mãos que tentavam agarra-la, as impedia instintivamente de alcançar seu corpo. As faces imundas do homem que a atacava estavam desfiguradas pela lama e pelo ódio mortal que parecia possuí-lo. A boca escancarada, como se quisesse morde-la, exibia alguns dentes lascados e pequenas feridas nos lábios. Do fundo de sua garganta subia um gorgolejar estrangulado, como se estivesse em eminências de sofrer uma morte por asfixia. Usando o peso que o homem jogava sobre si, Clarisse virou-se de lado e deixou que ele caísse sozinho, tombando ao chão como um saco de batatas, sem sequer tocar no macacão vermelho e prateado que ela usava.
Em seu socorro, Adam rapidamente acorreu, apertando os joelhos sobre as costas do homem caído, de forma a impedir-lhe a movimentação, mas de qualquer forma o indivíduo parecia já estar desacordado com o impacto.
– Me ajude aqui – pediu ele para Clarisse, virando a figura maltrapilha. – Ele se acalmou.
– Ahhh! – gritou mais uma vez o homem, tentando saltar para cima, os braços estendidos.
Clarisse, no entanto, como se esperasse por esse tipo de reação, aplicou-lhe na coxa uma injeção certeira, e ele quase instantaneamente perdeu a consciência, suas órbitas oculares rolando para dentro do crânio.
– Agora ele se acalmou – disse a mulher.
•
– ... Sim, provavelmente. Um surto psicótico desencadeado por trauma extremo. É no que eu apostaria – concordou o doutor, examinando seu mais novo paciente desconhecido. – Mas isso só o Dr. Sanders poderá confirmar, e somente depois que este aqui acordar – ajuntou, tocando levemente a cama onde o outro encontrava-se deitado. – O que podemos fazer por enquanto é tirar alguns raios-x para nos certificarmos se não há nenhum osso quebrado passado despercebido à primeira vista, e conferir por meio da ressonância magnética se há danos cerebrais, alguns tipos de histeria podem ser causados por esse tipo de lesão.
– Entendo, doutor... – agradeceu Clarisse, quase sem tirar os olhos do homem entre os dois.
– Ele também apresenta um caso leve de desidratação e desnutrição. Só deus sabe quanto tempo ele passou naquele pântano...
Já havia mais de treze horas que o haviam transferido para aquela ala do hospital. As enfermeiras responsáveis pelos seus cuidados o haviam banhado e trocando os trapos sujos que usava como roupa pela camisola comum dos pacientes. Por recomendações do doutor, seus pulsos e tornozelos estavam atados por amarras na cama hospitalar, para evitar que em outro possível episódio agressivo viesse a ferir alguém ou a si mesmo.
– Descanse um pouco, sim? – recomendou o Dr. Elliot, vendo o cansaço da outra, retirando-se em seguida, com um sorriso brando.
O plantão de Clarisse terminara-se havia vários minutos quando procurara o médico para mais informações sobre seu achado do pântano. Logicamente, a polícia fora acionada. Todos os envolvidos no chamado da emergência prestaram um breve depoimento aos oficiais, que estavam mais interessados no que Simon tinha a dizer. Clarisse ainda podia se lembrar do bafo do policial que colhera seu testemunho, uma mistura de rosquinha doce e cigarros baratos. Era o de sempre: eles iriam investigar o caso e fazer uma procura no banco de dados de desaparecidos através de reconhecimento facial ou algum outro método qualquer. Se o sujeito fosse um foragido da justiça, eles provavelmente retornariam logo.
Dando uma última olhada no desconhecido antes de seguir o conselho do Dr. Elliot e sair também, Clarisse, numa ideia impulsiva, sacou rapidamente o celular e tirou algumas fotos do homem deitado, focalizando especialmente seu rosto, agora apropriadamente limpo. Ela precisava de um retrato dele se quisesse confirmar a teoria que formava-se em sua cabeça.
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– Esta é uma gravação do Dr. Jared A. Sanders, praticada em concordância com o protocolo clínico 05-02526.1, estabelecido pelo hospital San Diego Medical Center. Hoje é 08/20/2015, 9:40 A.M. Trata-se da primeira avaliação psicológica gravada com o paciente 10903-2, indivíduo ainda desconhecido trazido ao hospital na data de 08/17/2015. Observações iniciais quanto ao paciente: sexo masculino, idade estimada de trinta a trinta e três anos, pele caucasiana, altura de 1,81, cabelos escuros, olhos castanhos, peso de aproximadamente 87 quilos, porte físico mediano. O sujeito apresenta múltiplos ferimentos abdominais e lacerações leves nos membros inferiores e superiores. Foi relatado que os primeiros enfermeiros a terem contato com o paciente presenciaram uma crise histérica, onde o indivíduo tornou-se repentinamente violento, o que os obrigou a lhe administrarem uma dosagem pequena de sedativo via intramuscular. Nos três dias que permaneceu sob os cuidados médicos no San Diego Medical Center, o paciente manteve-se em estado de semiconsciência, tendo despertado completamente somente na madrugada de hoje, dia 17 de agosto. Ele demonstra extrema confusão, porém continua estável, sem lutar com as amarras que restringem sua movimentação ou aparentar agressividade.
[...]
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O grande jardim que ornamentava a varanda parecia completamente abandonado, as ervas daninhas crescendo descontroladas disputando espaço entre a grama alta, e as flores, outrora vicejantes e belas, jazendo ressequidas, reduzidas a ramos estorricados. E a decadência não havia se abatido somente no jardim. A casa também exibiu claros anos de negligência, a tintura das paredes desbotada, janelas com vários vidros quebrados, cobertas improvisadamente com jornais. Era difícil não atentar-se a estes detalhes, sobretudo quando se tratava da casa em que se passou toda a infância e adolescência. Com um pesar silencioso, Clarisse cobriu a distância até a porta da varanda, cujo piso estava tão repleto de folhas secas que quase não se via. Havia muitos anos que ela não tinha uma cópia das chaves que abriam aquela porta, e no fundo de sua mente, acreditava que ela sequer se abriria para recebe-la novamente. Seu coração palpitava, uma voz interior a mandava ir embora e esquecer aquele assunto. Simplesmente não valia a pena trazer à tona coisas do passado por uma razão tão despropositada como aquela. Mas o caso era que Clarisse não conseguia tirar da cabeça a história que seu pai lhe contara tantos anos antes, do homem que fora encontrado no pântano por um casal de namorados, o homem que havia desaparecido pouco tempo depois e lhe dissera coisas tão perturbadoras que passaram-se meses até que o médico agisse normalmente de novo, e que somente após o decorrer de vários anos revelara à família. Ela precisava saber o que tudo aquilo significava. Prendendo a respiração inconscientemente, ela apertou o botão da campainha.
•
[...]
– E onde fica exatamente esse “Lugar Nenhum”?
– É difícil explicar.
– Por que você não tenta?
– Isso não garante que você ou qualquer pessoa vá me entender.
– Mesmo assim, nessas circunstâncias uma explicação seria muito bem recebida.
– ...
– Tem certeza de que não se lembra qual é o seu nome?
– Meu nome...
– Sim?
– Eli... Eleazar?
– Seu nome é Eleazar?
– Eu não tenho certeza.
•
– Clarisse?
– Olá, papai.
– O que faz aqui? – perguntou o velho homem, a barba grisalha desgrenhada descendo sobre o queixo. Ele havia aberto a porta de forma a somente seu rosto ficar à mostra, atrás da fina corrente de proteção que a mantinha segura no limiar.
– Eu vim conversar com o senhor. Será que eu posso entrar?
Por um breve momento o homem pareceu hesitar, como se considerando recusar seu pedido, mas afinal abriu a porta.
O interior da casa estava igualmente negligenciado. Já na entrada viam-se acumuladas montanhas de correspondência não aberta e jornais intocados. Na sala de estar, próxima dali, roupas sujas e pratos com restos de comida cobriam quase cada superfície do cômodo, bem como cinzas e pontas de cigarro.
– O senhor começou a fumar? – questionou Clarisse, olhando tudo aquilo sem poder acreditar na visão que tinha.
– Maus hábitos chegam junto com a idade – respondeu ele, dando de ombros. – Eu estava fazendo um chá. Aceita uma xícara?
Ela fez que sim com um aceno de cabeça, mas, ao adentrar a cozinha, imediatamente se arrependeu. Louças de todo o tipo e tamanho estavam empilhadas umas sobre as outras sobre a pia suja e sobre o balcão central, e um forte odor de leite azedo e frutas estragadas contaminava o ar do ambiente.
– Eu sei o que você está pensando – disse o antigo doutor Mac’Griffin, com um meio-sorriso. – Como alguém como eu foi decair tanto? Não é?
Após alguns minutos sem nada responder, Clarisse o encarou:
– Confesso que fiquei surpresa em ver no que o senhor se tornou, e a vida que leva hoje em dia. Mas não é sobre nada disso que vim falar hoje, pai.
A chaleira apitava, soltando jatos de vapor.
– Esse homem lhe parece familiar? – ajuntou ela, mostrando o celular, depois de vê-lo apertar os olhos como que digerindo uma grande ofensa que lhe foi dirigida.
– Deixe-me dar uma olhada – falou ele, recompondo-se afinal, entendendo a mão de dedos longos para o aparelho. – Deve ser algo importante para que você tenha se dado ao trabalho de vir até aqui...
•
[...]
– Esse “Lugar Nenhum” ao qual você se refere... É como você chama sua casa?
– Minha casa? Não... Você nunca ouviu falar dessa cidade?
– Receio que não.
– Bem, é de lá que eu vim.
– Tudo bem... E o que lhe aconteceu no caminho? Quem lhe fez estes machucados?
– Um guarda. Ninguém sai de Lugar Nenhum.
– Mas você saiu.
– Sai.
– E como foi isso?
– Quando as luzes se apagaram, eu consegui despistar o guarda e me escondi num beco. Lá havia um bueiro aberto. Se eu não entrasse ali, quando as luzes voltassem ele com certeza me encontraria.
– E por quanto tempo você ficou escondido?
– Algumas horas talvez. Eu segui as tubulações até encontrar uma saída, perto de um riacho. O cheiro de tudo ali era horroroso. Parecia mais um cemitério ao ar livre.
– Por que você estava tentando deixar Lugar Nenhum?
– Meu irmão. Ele desapareceu há semanas. Eu tinha de procura-lo.
•
– Esse homem!? Como é possível?
O rosto do doutor Mac’Griffin empalidecera como se todo o sangue de seu corpo houvesse sido sugado.
– O que foi? O que há de errado? – a voz de Clarisse soava assustada.
– Mas é a mesma pessoa que eu tratei no hospital, há quase vinte anos atrás!
– Mesma pessoa? Isso é impossi... – começou Clarisse, cética. No entanto, o olhar que seu pai lhe lançou fez com que as palavras morressem em sua boca.
– Onde ele está agora?
– O homem? Hospitalizado, mas...
– Vamos! Eu preciso vê-lo. Me leve até lá.
•
[...]
– Como era esse guarda que você disse o ter atacado?
– Não há como saber. Os guardas usam um manto negro com os quais ficam completamente ocultos. Eu nunca consegui ver o rosto de nenhum...
– Se eles têm a aparência que você descreve, os guardas se parecem mais com fantasmas.
– São algo assim.
– Você está falando a sério?
– Estou.
– Bem, e essas luzes que você disse ter visto: as que se apagam de repente?
– Em Lugar Nenhum, na rua das cinzas...
– Rua das cinzas?
– Sim. Cada rua tem casas de cores diferentes. Na rua onde todas as casas são pintadas de cinza, a que tem lampiões de aspecto bem antigo, de uma hora para a outra tudo fica escuro, como se de repente colocassem um saco sobre a sua cabeça. Às vezes, quando a luz da lua está muito forte, é possível ver algo através da escuridão, mas do contrário permanecemos no escuro até as luzes voltarem.
– E estes guardas? Eles aparecem quando as luzes começam a se apagar?
– Nem sempre. Algumas vezes você se vira e eles simplesmente estão lá. Normalmente não nos perturbam, mas são bem assustadores. E dizem que caçam os que infligem a Lei.
•
[...]
– Fale-me mais sobre essas luzes que se apagam. É algo comum na... “rua cinza”?
– Não é algo único de lá, mas ali é certamente onde mais acontece, sim.
– O que quer dizer?
– Em toda Lugar Nenhum as luzes podem se apagar a qualquer hora, mas na rua cinza isso acontece quase o tempo todo.
– Qual é a razão disso?
– Razão? Em Lugar Nenhum não precisa-se de razão para que as coisas aconteçam, elas simplesmente ocorrem. Assim como as luzes se apagando quando bem entendem.
– Ok. E como você se sente quando as luzes se apagam?
– Como eu me sinto?
– Sim. Quais sensações físicas você tem.
– Bem, nunca parei para pensar sobre isso.
– Agora é o momento.
– Hum... É como se de repente você fosse colocado dentro de um refrigerador. O frio começa a tomar conta do seu corpo e se torna mais difícil se mover. E então os ruídos: uma orquestra parece surgir bem do seu lado, com seus sopros e cordas. Por várias vezes era como se alguém, uma presença, ou sei lá o que, estivesse bem próxima. Mas quando as luzes voltavam, tudo estava como antes.
•
[...]
– Eleazar?
– Sim?
– Me desculpe, mas após ouvir tanto sobre esse lugar, sobre a maneira como você vivia e o seu irmão, ainda me parecem que há inconsistências demais na sua história.
– O senhor está insinuando que eu estou mentindo?
– Não foi o que eu disse. O cérebro humano tem uma capacidade incrível de “criar” situações que muitas vezes não são reais. Algumas vezes...
– Ah, que ótimo! De mentiroso, agora fomos para louco.
– “Louco” é um termo muito pejorativo, e tenho certeza absoluta que não se aplica ao seu caso. Você é lúcido, tanto quanto posso evidenciar com meus próprios olhos, aqui, diante de você. A questão talvez seja essa: a evidência. Como posso acreditar no que diz se não é capaz de me apresentar nada tangível que comprove seu relato?
– Você não precisa acreditar. Deixe isso para os crentes. Ou para os loucos.
•
O calor estava insuportável dentro do carro.
– As coisas que esse homem me disse... Você nem imaginaria – comentou o doutor Mac’Griffin com a voz baixa, quebrando o silêncio. – Ele continuava repetindo sobre essa cidade, um lugar como que tirado de um livro de fantasia. Lugar Nenhum, ou coisa assim: era como ele a chamava. Dizia que precisava voltar para lá, mas não encontrava a estrada de volta. Ninguém acreditava no que ele dizia.
– O que aconteceu com esse homem? – quis saber Clarisse.
– Ele não era um criminoso, pelo menos não um fichado. Não tinha nenhum documento, nem nada que provasse quem era ou de onde era. Sua fala, a maneira como pronunciava as palavras, era diferente, como se fosse um estrangeiro. Conforme ele insistia em falar que precisava voltar para essa cidade ou sei lá o que onde dizia que viera, e não acreditávamos nele, mais agressivo se tornava. Foi decisão dos conselheiros envia-lo ao Lar Saint’Italo até que fosse decidido o que fazer dele.
– Então o mandaram para um manicômio?
– Estávamos convencidos de que não havia outro jeito. Ele atacara uma enfermeira e tentara fugir. E, passadas algumas semanas ali, chegou-nos a notícia de que ele havia escapado. Nunca mais ouvi falar dele, mesmo com a polícia envolvida no caso.
•
[...]
– Esta é uma gravação do Dr. Jared A. Sanders, praticada em concordância com o protocolo clínico 05-02526.2, estabelecido pelo hospital San Diego Medical Center, que determina o registro de voz para casos psicológicos acompanhados. Hoje é 08/21/2015, 13:35 A.M. Comentários iniciais sobre o estado do paciente 10903-2, que declara chamar-se Eleazar, sem sobrenome conhecido. O paciente está convencido de que é de uma localidade chamada “Lugar Nenhum”, tendo sido criado ali sua vida toda, afirmando também não saber como para lá retornar. Somente pela escolha do nome dessa cidade em que o paciente alega ter vivido – Lugar Nenhum – nos demonstra a instabilidade psíquica em que ele se encontra, tendo criado uma espécie de realidade paralela como mecanismo de defesa. O que só pode ser confirmado pelo profundo sentimento de abandono que sente em relação ao seu irmão mais velho, o qual disse estar à procura por dias. Os exames de sangue solicitados ficaram prontos esta manhã e revelaram que o paciente 10903-2 possui traços muito pequenos de substâncias presentes na constituição do haloperidol e outros antipsicóticos comuns para o tratamento de esquizofrenia, embora o paciente tenha anteriormente negado o uso de fármacos controlados. As análises físicas alertam da possibilidade de seus ferimentos terem sido autoinfligidos, ou em sua maioria ocasionados em decorrência de quedas por desmaio e/ou convulsões. A fantasia de “Lugar Nenhum” é uma temática muito presente em seu discurso, o que agrava as chances de diagnóstico positivo para transtornos compulsivos-psicóticos. O que mais me preocupa no momento é o trecho em que ele diz que há momentos em que as luzes repentinamente se apagam, deixando-o no escuro. Ausências inexplicáveis de visão podem significar danos cerebrais advindos de traumas físicos ou de rompimentos de artérias intracranianas. Os resultados do exame de tomografia ainda não foram concluídos. Seguimos aguardando maiores informações...
•
Clarisse estacionou seu carro prateado na vaga de sempre, tendo antes apresentado seu crachá de identificação na portaria. O segurança responsável por tomar conta do portão de entrada, funcionário de mais de vinte e cinco anos de cargo, não precisou perguntar quem era o homem que a acompanhava. Apesar de ao ver o doutor Mac’Griffin de volta ter aparentado grande surpresa, o velho segurança não fez nenhum comentário, deixando-os passar sem qualquer dificuldade.
– James Mac’Griffin! – ouviram chamar. O doutor Carl Madison olhava pai e filha com um sorriso misterioso, os braços abertos para receber o bom amigo que havia tanto tempo não tinha notícias.
– Agora não, Carl – disse este, somente, dando-lhe as costas e afastando-se, puxando Clarisse para junto de si.
– Me desculpe... – pediu ela, baixinho, ao outro, que simplesmente nada compreendeu da situação.
– Em que ala o colocaram? – perguntou Mac’Griffin.
– Senhor? – tornou uma das secretárias, completamente confusa.
– Marla, desculpe o comportamento desse senhor. O Dr. Elliot voltou a transferir o paciente que resgatamos do pântano para outra ala? – tentou amenizar, sorrindo o melhor que pôde à mulher.
Ainda extremamente confusa, Marla procurou algumas informações no computador e indicou o quarto correto onde poderiam encontrar o paciente referido.
Muitos encaravam a figura exótica do doutor Mac’Griffin, que andava pelos corredores impecáveis do hospital com suas pantufas felpudas roxas e um sobretudo amassado pelo qual se entreviam partes de um roupão de banho por baixo. Ele sabia exatamente para onde encaminhava-se, e Clarisse tinha quase que correr para acompanhar seus passos rápidos.
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[...]
– Como se passou sua infância? Você se lembra?
– Vagamente... Meu irmão e eu brincávamos muito. Nós tínhamos uma coleção inteira de soldadinhos chumbo e gostávamos de encenar nossas “guerras de bolso”, como ele chamava...
– E seus pais?
– Nunca conhecemos. Na nossa rua era proibido adultos.
– Proibido adultos?
– Sim. Na rua azul adultos não podem terem casas ou transitar.
– Então nessa rua há apenas crianças?
– E os guardas.
– Sim, os guardas... E quando você e seu irmão se tornaram adultos?
– Tivemos de nos mudar. Fomos para a rua verde. Procuramos nossos pais lá, mas não encontramos.
•
[...]
– Doutor?
– Pois não?
– Há quantos dias eu estou neste hospital?
– No dia depois de amanhã completar-se-á uma semana.
– Quase uma semana!
– Acalme-se, por favor. Você precisa se recuperar de seus ferimentos.
– Não... Eu preciso encontrar meu irmão. MEU IRMÃO!
•
Quando os dois viraram um corredor, Clarisse já apercebeu-se de algo estranho havia acontecido. Dois seguranças estavam diante da porta onde o paciente deveria encontrar-se. Eles falavam com um enfermeiro. O Dr. Elliot também estava presente, a testa coberta de suor.
– Onde está o paciente? – perguntou Mac’Griffin, meio ofegante.
– Quem é o senhor? – questionou rispidamente um dos seguranças.
– Clarisse, o que está fazendo aqui hoje? – o Dr. Elliot estava trêmulo.
– Por favor, doutor. O que aconteceu com o paciente?
– Bem, é exatamente isso que estamos tentado descobrir. Nós o havíamos isolado novamente, por apresentar agressividade. E agora ele desapareceu.