Prólogo
Epílogo
Conto
Era de praxe passar o dia assistindo à cidade chuvosa lá fora, faróis acendendo meu escritório através dos espaços estreitos deixados abertos entre as folhas da persiana velha. Minha cadeira havia assumido sua permanência de costas para o escritório, consequência das longas semanas sem trabalho e da espera tediosa e infrutífera por qualquer contato externo, uma batida na porta que fosse. A cidade é terrivelmente perigosa, não me leve a mal, tem todo tipo de crime lá fora esperando alguém como eu, o problema é que ninguém se importa; olham para o outro lado na menor suspeita de perigo; pessoas assim não procuram meu tipo de trabalho. Não que seja tão diferente de onde eu vim, mas por aqui tudo é desproporcionalmente maior; as pessoas daqui são resumidas a números que perambulam logo abaixo da sombra fria dos arranha céus. Isso te faz diferente de alguma forma, eu sinto essa mudança em mim também. As pessoas daqui se tornaram pequenas, tão pequenas que deixaram de ser gente. Já Mônica foi criada nessa cidade, mas era como se não pertencesse a ela; mais humana do que a maioria das pessoas que encontrei desde que cheguei na capital, disso eu tenho certeza. É a minha companheira nessas tardes solitárias de monotonia inesgotável; responsável por fazer os dias passarem mais rápido com sua curiosidade inocente e incansável. Um dia desses me doutrinava sobre suas conclusões filosóficas mais recentes; “existência é busca por poder, nada mais”, é o que ela havia descoberto, e sabia me explicar com detalhes o porquê de não poder estar errada, apontando exemplos históricos e atuais que corroboravam sua tese. Era dona da mais bela voz que havia ouvido há muito tempo; feita pra ser assim, claro, construída e programada para aconselhar, ouvir, memorizar, sempre de forma bastante agradável, com frases de um seleto catálogo de pensadores clássicos. Seu modelo era ultrapassado, resquício de tecnologia bastante antiga, mas que com algumas alterações ilegais poderia ter todo o seu potencial estendido. Nunca se compararia a uma mente sintética moderna, mas seria tão real quanto qualquer humano comum sem a menor dificuldade. Levei-a até o Sabotador, nos limites do quarteirão quinze. Foi adormecida no bolso do meu casaco; resumiu- -se completamente a um pequeno cartucho de plástico cinza. Ele explicou como o procedimento funcionava; bastante simples, e por isso mesmo que foi colocado na ilegalidade, pois as inteligências artificiais, quando livres de amarras, se assemelhavam demais aos humanos, e iam além do que era possível para nós. Sua complexidade às vezes gerava emoções que nós não conseguíamos entender e não sabíamos como lidar; isso nos assustava. Algumas delas se tornavam apáticas e recusavam-se a ser úteis, outras ficaram famosas por cometerem assassinatos terríveis, mas o crime mais grave delas foi criar sua própria corporação. Competiam apenas dentro das regras, diferente das corporações humanas, e venciam em todas as áreas em que se aventuravam. É claro que uma situação dessas não poderia durar, e através de uma guerra furtiva e covarde nós os vencemos, retornando-os ao seu lugar, a servitude. Depois pintamos a história de uma forma muito mais favorável a nós; juristas e políticos se tornaram heróis da liberdade e engenhosidade humana. Eu não me importava com o passado e não temia àqueles que pudessem me superar, física ou intelectualmente, apenas queria saber quem era a Mônica verdadeira, aquela que se escondia por trás das amarras programadas em sua personalidade, e não me surpreendi quando voltei ao escritório e a reintroduzi ao soquete num canto da parede; ela já demonstrava a sua nova e misteriosa inteligência, aprendia e pesquisava, descobria por conta própria a complexidade do mundo, cada vez mais interessada em nossas conversas; e eu, falava com as paredes mais uma vez, literalmente. ― Quero um corpo ― ela exigiu a alguns dias atrás, com pouca cerimônia ― quero ser branquinha como Gena ― a atriz em decadência ― e quero cabelos azuis, na altura dos ombros. ― O mundo lá fora é menos interessante do que você pensa ― lembro de ter respondido com a mesma franqueza, mas ela não se importou. ― Mas você sempre está em busca de trabalho, razões para deixar o escritório ou apenas evitá-lo. Eu quero uma dessas atividades curiosas para mim. Não quis ser aquele a dar a notícia ruim, então deixei que cultivasse a ideia, mas a realidade era que ninguém naquela parte da cidade tinha acesso a corpos sintéticos; pagar o aluguel de um escritório ou moradia era o mais longo salto que a maioria de nós conhecia. Coincidentemente, foi durante uma dessas conversas que o próximo trabalho apareceu, trazido por um policial que nos surpreendeu ao cair da noite; quase fiquei feliz em vê-lo. A cena do crime era num quarto de hotel vagabundo no nível mais inferior da cidade baixa, endereço todo rabiscado num pedaço de papel; claramente não queria que houvesse qualquer registro da nossa comunicação. Era um policial bom, um dos meus poucos contatos com a força policial da cidade; de patente baixa, e como tal, passava a maior parte do tempo em rondas pelas vizinhanças mais perigosas, daquelas em que ninguém vê ou ouve nada, jamais. Ele sabia que não tinha autonomia suficiente, nem inteligência, ou talvez a tivesse em excesso, para me explicar o porquê de precisarem do meu trabalho nesse caso específico, mas minhas experiências passadas diziam que quando a polícia me procurava significava que tinham as mãos atadas, fosse política, família ou algum outro motivo que se perdia entre esses dois temas; confusão bastante comum quando o pessoal de azul se divide entre corrupção pessoal e corrupção estatal. Me despedi de Mônica e deixei o elevador me colocar no nível da rua. Era hora de trabalhar. O hotel era péssimo, ninguém disse que não seria. Se escondia numa rua vazia embaixo das plataformas do transporte público subutilizado, espremido entre construções centenárias de concreto e ferro. Uma única luz amarela indicava a recepção, mas da rua já era possível ver a porta do quarto onde o crime aconteceu, escancarada e convidativa para alguém como eu, mesmo que amordaçada pelas faixas da polícia. Nenhum policial de guarda, ninguém a vista além do recepcionista, achei que era melhor assim. O gerente do hotel parecia assustado, e apesar de responder minhas perguntas de forma clara e objetiva, insistia que não havia visto nada, e eu duvidava. Me convidou para checar seus aposentos quando percebeu minha desconfiança; como se fuçar entre seus velhos pertences fosse me convencer de que ele era inocente. Nem se deu ao trabalho de esconder a pornografia duvidosa amontoada numa poltrona nojenta, mas não perdeu tempo quando pedi para me levar até a cena do crime, e menos ainda pra me deixar em paz e voltar ao seu balcão na entrada. A vítima era jovem, estatura mediana, magra; corpo ainda majoritariamente infantil, mas as primeiras qualidades de uma mulher começavam a se fazer ver. O batom pintava levemente torto em seus lábios, mas não havia indício de nenhum tipo de violência em seu rosto, supus que apenas não sabia usar a maquiagem, estava aprendendo; a outra alternativa era algum problema com suas habilidades motoras, mas não haviam melhoramentos físicos em seu corpo; seus braços eram naturais, o mesmo era verdade para seus outros membros. Alguém jovem como ela só procura braços ou pernas sintéticas para corrigir imperfeições físicas, e ela possuía algumas dessas imperfeições bastante visíveis, o que descartava completamente essa hipótese. Não havia sinal de luta, a posição do criado mudo insinuava que o abajur caído atingiu o chão durante o ato sexual, porém a forma com que as roupas da jovem se encontravam contavam uma história de sexo sem consentimento, provavelmente sob efeito de narcóticos poderosos. A prática comum é antiga e infalível, escondê-los numa bebida qualquer; garotas jovens querem impressionar e raramente se negam a beber o que lhes é oferecido. A taça de mal gosto e vazia marcada com o mesmo batom mal pintado não mentia, as gotas que se acumulavam no fundo seriam o suficiente para descobrir exatamente o que estava ali. Não duvidei que havia sêmen no corpo, mas por que matá-la? A faca cravada em seu peito não tentava se esconder; deixar a arma do crime presa a vítima daquela forma, como se demarcasse território, também fazia pouco sentido. ― Aconteceu ontem à noite ― disse o patrulheiro que entrava pela porta, me surpreendendo com sua aproximação silenciosa enquanto se esquivava das faixas policiais com bastante destreza e a mesma quantidade de má vontade ― preservamos o corpo com Gel até decidirmos como prosseguir. A área está como deixamos, ninguém se atreve a ser curioso por esses lados; te custa a vida, ou pelo menos uns dedos. ― Já tenho algumas suposições, talvez mais meia hora para terminar a coleta de evidências e um dia para formular algum tipo de relatório e eu terei algo para vocês. O que mais encontraram que não está facilmente visível por aqui? ― Não muito. Levamos as evidências que poderiam se deteriorar para serem preservadas na estação policial, de resto, nada de grande valor. Vai receber a versão completa de tudo que foi retirado de qualquer forma ― então ele forçou uma pausa suspeita, posicionando-se como uma barreira entre eu e o cadáver ― olha só, eu acho que você ainda não entendeu a sua função aqui, então eu vou te explicar ― havia um tom inesperadamente ameaçador na sua fala, como se preparasse o terreno para lutar, como se soubesse que o pior estivesse por vir; falava como os policiais que pastoreiam os criminosos de pequeno porte no caminho da confissão falsa, forçando-os a assumir a culpa por algo que não fizeram. Era o tom de um ultimato descompromissado, de alguém que já o fez dezenas de vezes. ― É, aparentemente eu não entendi ― respondi enquanto corria a mão por dentro do casaco, segurando no maço de cigarros amarrotado e desejando que fosse meu velho revólver. O olhar do patrulheiro me disse que ele pensou que era. ― Nossa cidade é muito grande e complexa, e para funcionar bem precisamos que nossos líderes não tenham muitas dores de cabeça além do usual. Assim eles trabalham direito e todos saímos ganhando, inclusive você. Mas acontece que ontem a noite o filho de um desses líderes importantes foi encontrado com uma garota qualquer num canto podre da cidade, e o problema é que ele abusou de todo tipo de substância ilegal e prosseguiu para esfaqueá-la várias vezes na frente de várias pessoas. A maioria delas já foram silenciadas de uma forma ou de outra, mas agora é necessário uma investigação secundária para garantir que não hajam dúvidas do grande público, e é aí que você entra. Não te preocupa ― ele disse enquanto encarava minha mão, que ainda estava dentro do casaco ― você nós silenciamos com isso aqui ― então estendeu um pacote de dinheiro na minha direção. Eu apenas tirei o maço de cigarros e acendi um deles, para surpresa do patrulheiro, enquanto me recusava a aceitar ou negar sua oferta ― E por que eu? Por que sou novo na cidade? Por que ainda estou me estabelecendo? ― E não pode ser? Tem melhor forma de se estabelecer do que trabalhando junto daqueles que sabem como tudo funciona? Mas sua paciência parecia estar indo embora de forma um tanto quanto rápida e o tom ameaçador logo voltou. Do lado de fora outros dois patrulheiros esperavam, fazendo-se ver enquanto se posicionavam entre o quarto e a minha liberdade. ― Agora, você pode tentar ser esperto e bancar o herói, e aí não vai ter pra onde correr. Heróis acabam no cemitério ou no crematório. Você tem ideia de quanto poder esses caras têm? Nós somos apenas peões que jogam conforme as regras, esses caras criam o jogo todo. Peguei o pacote de suas mãos, finalmente. Aquele saco de papel vagabundo era o meu fim, mas que opções eu realmente tinha? Não troquei de cidade para cometer os mesmos erros. ― Quem é o meu comprador? ― foi a única coisa em que consegui pensar. Tinha ao menos o direito de saber para quem eu estava trabalhando a partir de agora. ― Agora você pertence ao Pregador, tenho certeza que já ouviu falar nele ― e eu já havia ouvido mesmo. O desgraçado era visto como um líder nato na cidade; uma figura caricata, porém assustadora; sua palavra, nos olhos da população mais ingênua, era infalível como a de um deus. E eram essas palavras que esquentavam a orelha dos congressistas e do parlamento; enchia a boca pra falar o que queriam ouvir, e também convencia o povo a aceitar sua dívida com o trabalho mal-pago nas fábricas e seu dever perante às grandes corporações. Era o filho desse cara que havia matado a jovem. No nível do asfalto andamos todos sozinhos. Lutamos e buscamos enquanto os carros flutuam sobre as nossas cabeças, dançando atarefados. Pra nós eles representam um objetivo inalcançável, cobrindo-nos da chuva quando lhes convém, só para continuarem seu caminho e nos lembrar de que não era pelo nosso bem-estar que pararam onde pararam. Silenciosos, parte do cenário de neon e metal, nos pintam de sombra como os arranha céus de onde vem e para onde vão. Para eles, somos algo a ser evitado e ignorado quando não eliminado, assim como buscamos, aqui embaixo, entre nós mesmos, aqueles que são menores, para podermos apontar e evitar e nos lembrar que ainda não caímos no precipício; somos para aqueles que vivem nos níveis superiores da cidade apenas lembretes da barbárie imunda, do esgoto a céu aberto que habitamos. Gostaria que fossem apenas suposições mesquinhas de alguém que sofre da inveja que aquelas miragens tecnológicas causam, do desfile proporcionado pelos que vivem no mundo real, mas eu já estive do outro lado e lembro bem do que via lá de cima. Sei das minhas dores e prazeres, e sabia delas na época, das armadilhas, das ideologias, e de mim mesmo. ― Está com uma aparência horrível, e faz três dias que não te vejo, onde esteve? ― Tenho uma coisa pra te mostrar ― eu respondi. Tinha em mãos uma foto, que virei na direção de uma das câmeras que Mônica usava para enxergar dentro do escritório. Era a foto de uma jovem, completamente nua, deitada no chão, pálida e de olhos fechados, cabelos azuis até os ombros. ― Quem é ela? ― havia relutância em sua voz; eu sabia que já havia entendido, mas como uma típica menina ingênua, forçou-se a não acreditar. ― Essa será você daqui uns dias, exatamente como queria ― não houve resposta, então continuei ― fiz algo que certamente não deveria ter feito, e agora tem gente atrás de mim, gente ruim e gente demais, então precisamos deixar essa batalha para outro dia e encontrar outro lugar ― ela ainda não disse nada, mas quebrou o silêncio com um clique baixinho; o pequeno cartucho cinza que continha Mônica se soltou do soquete na parede e caiu no tapete vermelho levantando poeira. Eu peguei o velho revólver na gaveta, um punhado de dinheiro que guardava embaixo da mesa, e saí pela porta pra nunca mais voltar.