Prólogo
Epílogo
Conto
Não havia vozes, risos, choros, ruídos ou qualquer outro som naquele mundo sombrio. O futuro tinha chegado como uma condenação maldita para toda a Terra e seus habitantes. Naquele espaço antes habitado e tão cheio de sons e vida, restavam apenas poucas lembranças de um lugar outrora repleto de seres humanos em suas mais fugazes lutas e ambições. Ambições que talvez tenham sido a causa de sua ruína.
Quando o petróleo virou motivo de guerra e as indústrias freneticamente produtivas jogavam seus gases e produtos químicos poluentes, quando a tecnologia tomou o lugar das relações entre os seres iguais, a Terra não suportou. Robôs foram construídos por seres humanos em busca de mais comodidade e lucratividade, sem que eles imaginassem que suas próprias criações seriam seus algozes.
Naquele dia, Martin saiu caminhando com sua pesada lataria pelas ruas com crosta de lama e cheiro de enxofre. Ele era mais um dos 40 robôs que resistiam à fúria do tempo, funcionando, sem qualquer manutenção. Durante as lutas incontáveis entre outros clãs rivais, a comunidade a que ele pertencia tinha conseguido sobreviver à custa da guerra desenfreada entre robôs que assolava cada vez aquele mundo frio.
Com o tempo, eles haviam aprendido sozinhos a substituírem peças velhas ou enferrujadas ou reprogramar suas funções. E para que isso fosse possível, outros robôs precisavam ser sacrificados. Ele sabia que um dia, mais cedo ou mais tarde, quando não existisse mais nenhum robô de outro clã, a guerra seria interna e, quando isso acontecesse, ele seria tão descartável como qualquer outro que já ajudara a desfazer em nome da sobrevivência.
Em seus últimos 200 anos naquele mundo sem humanos, Martin tinha vaga lembrança de como eles eram, antes de serem destruídos por sua própria criação. Naquela manhã escura, já que o sol, também ferido por substâncias nocivas, não costumava aparecer naquele lugar, ele caminhava solitário.
Algo luminoso lhe chamou a atenção de longe. Ele observou de pé, enquanto decidia se devia se aproximar. Num objeto cilíndrico, lembrando aço inoxidável, envolto por um vidro transparente numa das extremidades, havia um corpo inerte. O objeto, lembrando uma cápsula projetada para acomodar um ser humano, acompanhava o movimento ondulante sobre a água escura do mar de lodo. Ao avistar aquilo, ele recordou nitidamente a forma dos humanos com quem convivera antes de assistir à extinção da raça.
Era uma moça de pele pálida e cabelos ruivos que parecia dormir calmamente, alheia à escuridão e caos do mundo atual. Por uma fração de segundos, ele sentiu saudade da vida antes da catástrofe e teve a impressão de conhecer aquele rosto.
Aproximou-se da cápsula e, com a mão pesada, limpou o vidro embaçado para ver melhor quem estava lá dentro. Na parte de cima do objeto, havia uma inscrição que dizia: “S. L, 2001”. Se a inscrição se referia à sua data de nascimento, aquela bela menina deveria ter agora 199 anos.
Algum procedimento fizera o tempo parar para ela, que permanecia com a pele jovem e a aparência de uma adolescente. Martin ficou parado, com seu corpo de metal, imaginando de onde ela teria vindo e que futuro teria ali naquela terra sórdida, dominada por robôs.
***
O som de fúria encheu o ar. Ele já conhecia aquele barulho. Era mais um combate entre robôs de clãs diferentes. Em breve, mais máquinas seriam destruídas para que outras fossem consertadas. Num combate braçal, os clãs se enfrentavam, até que os mais frágeis fossem vencidos ou capturados para a retirada de peças. O tilintar de metais se batendo e o estrondo de máquinas caindo ao chão era ensurdecedor. As armas de metal e armadilhas usadas para render e capturar os adversários eram usadas a todo vapor naquele momento de confronto, onde os mais fortes e astutos venciam o combate.
Num ímpeto de simpatia pela espécie à sua frente, Martin instintivamente tomou a cápsula de vidro em suas mãos e correu com ela para distante dos clarões explosivos que enchiam os arredores, levando-a para longe em seus braços fortes. Num lugar que julgava seguro, colocou o objeto de pé e observou o gelo que derretia dando ar de vida à criatura que nele estava. Ele se aproximou do vidro para observar de perto o rosto. Os olhos dela abriram de repente.
Em seguida, um leve movimento das mãos foi mais um sinal de que ela estava viva. Ele observou assustado o renascer dela diante de seus olhos e, paralisado, não sabia como agir. Ao acordar por completo, ela bateu desesperadamente no vidro grosso, tentando sair, e Martin apenas olhou, sem ter certeza do que deveria fazer.
Ela parecia gritar, embora o vidro não o deixasse ouvir. Seu semblante aflito e as mãos frenéticas a bater na parede transparente eram um sinal de desespero que ele não conseguiu assistir por muito tempo. Com as mãos pesadas, Martin quebrou o vidro, que se estilhaçou à sua frente, libertando a menina que olhou para ele ao mesmo tempo agradecida e assustada.
— Por favor, não me faça mal — ela pediu olhando para o robô.
Martin apenas a observou sem dizer palavra alguma. O silêncio é o melhor caminho quando não se tem certeza do que falar.
— Eu só quero ir pra casa. — Ela continuou assustada.
Ele não sabia como explicar a ela o que havia ocorrido ao mundo nos últimos 199 anos. Pelo visto, ela não tinha noção do que havia acontecido.
— Por favor, eu só quero voltar pra casa. Eu não avisei meus pais, devem estar preocupados. Por que está tudo tão escuro?
— Você está em 2200 — ele falou finalmente.
— Você está louco? Semana passada foi meu aniversário de 17 anos. Estamos em 2018.
Martin teve certeza de que ela não tinha ideia do que havia acontecido com o mundo ou com ela mesma. Ficou observando aquele ser humano diante de si, sem saber o que dizer.
— O mundo mudou um pouco — ele disse por fim.
— Do que você está falando?
— O mundo foi dominado pelos robôs. Os humanos foram destruídos gradativamente até não restar nenhum da espécie. Desde então o que temos são guerras intermináveis entre os clãs.
— Isso não é possível! O que você quer me contando uma mentira dessas?
— Basta olhar ao seu redor. Não vê a destruição por toda parte?
Sophia olhou para os lados, certificando-se de que ele falava a verdade. Ela não podia acreditar, mas o mundo havia mesmo passado por uma mudança incontestável.
— Onde estão meus pais?
— Você não lembra de nada?
Ela fechou os olhos e deixou fluir em sua mente as últimas lembranças que lhe vinham. Os músculos ainda rígidos por tanto tempo de inatividade, a pele áspera pela ação do gelo e a cabeça dolorida e confusa lhe trouxeram à tona o rosto preocupado dos pais 5 dias após seu aniversário com o anúncio de que iriam ao laboratório naquela manhã para fazer uns exames de rotina.
— Eles me pediram para entrar na cápsula! — disse ela, assustada com sua própria lembrança. — Disseram que era uma nova tecnologia na medicina.
— Receio que eles queriam preservar sua vida, prevendo o caos da humanidade.
— Lembro de robôs invadindo casas, lojas e escolas. Vi nos noticiários. O que houve depois?
— Os robôs se rebelaram e tomaram conta da Terra. Houve milhões de mortes, eles queriam exterminar os humanos e dominar o mundo, mas não contavam com o caos predito que viria pela própria natureza.
— Como assim? Do que você está falando?
— Gases, produtos químicos, tecnologia desenfreada... Tudo isso já vinha devastando a Terra que entrou em colapso depois de anos de agressão. O que os robôs herdaram foi um mundo caótico, sem esperança de vida decente.
— Onde estão os outros robôs?
— Ocupados em alguma guerra.
— Por quê?
— Não temos humanos para construir as peças mestras que falham. Os robôs capturam uns aos outros para tentar roubá-las.
— Mas se os robôs evoluíram tanto, por que não constroem suas próprias peças?
— Porque nossa peça mestra é feita a partir de genes humanos.
— E por que então os robôs nos destruíram?
— Porque só descobrimos isso quando não havia mais humanos na Terra.
— E quando não restarem mais robôs?
— Aí será o fim de tudo.
— Você não parece mal — ela disse, tocando sua mão gelada.
***
Ele teve a impressão de conhecer aquele toque, mas retirou as mãos rapidamente, olhando distante. Avistou ao longe um fogo vermelho que crescia em sua direção. De um salto, pegou a menina em um dos braços e correu com ela para longe. Ela não teria sobrevivido se Martin não tivesse sido tão rápido e ágil naquele momento.
— Você precisa sair daqui — ele disse, preocupado com ela, — não vai sobreviver se ficar.
— E pra onde eu vou? — ela perguntou preocupada.
Martin percebeu que não havia opção para ela e, ali diante da menina ruiva, não soube o que dizer.
— O que está fazendo, Martin? — perguntou uma voz metalizada atrás de si.
— Ela é uma humana? — quis saber outro robô que chegava.
— Ele está traindo o clã! —gritou outro que chegava correndo.
Sophia apenas tentava se esgueirar entre as pedras cobertas de um líquido escuro enquanto os robôs se aproximavam furiosos. Martin ainda sem saber como agir tentava apenas servir de escudo para ela.
— Humanos não são bem-vindos! — gritou o robô que parecia chefiar o clã. — Os destruímos há séculos porque queríamos a Terra só para nós, e agora você nos trai protegendo uma humana?
— Eu apenas a encontrei boiando numa cápsula.
— E por que não a destruiu em seguida?
— Não tive tempo, vocês nos encontraram logo em seguida.
— Ótimo! Vamos destruí-la juntos na cerimônia do clã — disse o robô puxando Sophia pelo braço. — Há tempos não temos uma festa em nossa comunidade.
— Teremos genes para perpetuarmos nossa espécie por muitos anos.
Martin seguiu o clã vendo a menina sendo arrastada pelos robôs, pensando no que poderia fazer para salvá-la. Ele nunca concordara com aquela guerra entre robôs e humanos, ou entre robôs e robôs. Estava ali pelas circunstâncias que não lhe permitiram outra opção, mas lembrava de sua convivência com os humanos antes do caos e sentia saudade deles, embora sempre tivessem sido egoístas e gananciosos.
A moça foi atirada numa gaiola de metal que ficava numa sala escura e fedorenta. O cheiro de enxofre e lixo era muito forte. Por quase dois séculos, a Terra era apenas um depósito de sujeira e restos de um mundo onde já houvera vida. Lama, podridão, ruínas e ossos de gente e animais ainda eram vistos sobre o solo coberto de lama e lodo. Ela estava apavorada. A Terra, outrora cheia de cores e vida, se resumia a um amontoado de lixo e destruição. A escuridão que se misturava ao caos de uma paisagem sem vegetação e nenhum vestígio de vida compunha o cenário fétido e amedrontador onde ela se encontrava agora.
Não havia diferença entre o dia e a noite, e durante um tempo que ela não podia mensurar foi mantida ali sem comida ou água. Sua visão já meio turva confundia coisas e objetos. Por vezes, ela julgava ver pratos, talheres, água deslizando de uma taça até o copo, mas era apenas a cor acinzentada dos robôs circulando pelo local. Por vezes, mesmo tentando escutar o diálogo deles, não conseguia compreender o que falavam.
Deitou no chão gelado daquela gaiola triste e fechou os olhos com a garganta seca. Algumas imagens começaram a vir em sua mente. O rosto de seus pais sorrindo para ela... Uma caixa enorme com laço vermelho em seu quarto...
Ouviu barulho de pegadas pesadas em sua direção. Era o robô que a puxara pelo braço. Ele rodeou a gaiola várias vezes, observando-a enquanto ela fingia que estava dormindo.
— Preparem a cerimônia — ele disse, se retirando por fim.
Ela não sabia como tinha vindo parar ali, mas sabia que viera para morrer. Ouviu passos novamente. Não ousou abrir os olhos e apenas esperou seu fim. O robô que se aproximou veio em silêncio e permaneceu ali por alguns minutos sem nada dizer. Mesmo com os olhos fechados, ela sabia que estava sendo minuciosamente observada por ele.
Martin se esforçava para lembrar, mas em 200 anos muitos arquivos de seu sistema tinham sido perdidos, apagados ou substituídos. No entanto, a impressão de conhecer aquele rosto não saía de sua programação.
Sophia permanecia com os olhos fechados enquanto imagens vinham à sua mente. Ela voltou a ver os pais e a enorme caixa em seu quarto. Eles estavam desfazendo o laço quando a voz do robô, próximo à gaiola, lhe retirou de seu momento de lembrança.
— Precisamos sair daqui.
Ela não sabia o que fazer, e permaneceu com os olhos fechados.
— Eu não sei quem você é, mas algo dentro de mim me diz que preciso salvá-la — continuou Martin.
— Por favor, me tira daqui — ela disse por fim, confiando no robô ao seu lado.
— Hoje à noite, quando a maioria do clã estiver desligada para a economia de bateria, eu virei buscar você. Não grite, não faça barulho e apenas confie em mim.
— Eu confio! ─ ela disse com uma convicção que não sabia de onde vinha.
Ele apenas tentou esboçar um sorriso e retirou-se.
***
Horas depois, quando ele voltou cumprindo a promessa, suas pernas não tinham forças para correr, então ele a carregou nos braços naquela noite e correu pela escuridão sem fim, tentando levá-la para longe. O que existia depois dali era uma incógnita para os dois. Ela precisava saber o que aconteceria depois que ele a deixasse, mas a verdade é que nenhum dos dois sabia ao certo.
Eles chegaram num vale onde era possível ver um lago de água suja e negra. Ela sentiu seus pés tocarem o chão. Sentia que teria que seguir sozinha a partir dali.
— Fuja, menina. Não deixe que te peguem.
— Pra onde eu vou? — quis saber ela assustada.
— Eu não posso te acompanhar a partir daqui. Vai precisar ser forte. Depois do lago, tem um caminho estreito por entre as pedras. Siga na direção norte e encontre o lago transparente. Lá é o único lugar onde poderá sobreviver fora do alcance dos robôs.
— E o que eu faço quando chegar lá? Eu não vou conseguir.
— Você é forte, vai saber o que fazer.
Antes, porém, que ela pudesse dar um passo na direção de sua liberdade, viu que um grupo de robôs furiosos corriam em sua direção.
— Ele é um traidor. Destruam-no! — gritou o robô que vinha na frente.
Os outros vieram para cima dele com suas armas, e sua lataria foi espancada sem dó por minutos intermináveis enquanto ela apenas gritava e tentava se interpor em sua defesa. Seu corpo foi caindo lentamente enquanto seu sistema parecia falhar.
— Martin é um traidor! — gritavam os robôs cheios de fúria.
Um carrilhão de cenas veio à sua cabeça quando ela ouviu o nome Martin. Era como se de repente se descortinasse um passado do qual ela até ali não conseguia lembrar. A caixa enorme em seu quarto e o laço vermelho se desfazendo lhe trouxeram de presente um robô chamado Martin que seus pais lhe deram de presente em seu oitavo aniversário.
— Martin! — ela gritou demorando-se no som das sílabas —, não façam nada com ele. Ele é meu robô de estimação.
Sentindo seu sistema falhar mas finalmente lembrando de onde a conhecia, ele ainda conseguiu dizer:
— Sophia.
— Malditos, vocês acabaram com ele — disse ela se aproximando.
— Acabem com os dois — disse o chefe dos robôs, incitando um novo ataque.
Sophia se encheu de uma força desconhecida, e com pedras acertou diversos deles. Nunca soube de onde vieram os outros, mas o que se seguiu foi uma briga ferrenha entre aquele clã e uma porção de robôs brancos, dando-lhe a chance de fugir.
— Martin, você precisa vir comigo — ela implorou chorando.
Ele não mostrou nenhum sinal.
— Martin, você está me ouvindo? Levanta daí agora, seu robô rebelde, e vem comigo. A gente precisa fugir daqui.
Inerte e sem dar ouvidos aos seus gritos, ele apenas continuava deitado e imóvel enquanto ela percebia que seu tempo iria acabar.
— Levanta daí, seu robô ridículo! — ela disse por fim em desespero, puxando seu braço. — Sempre juntos, lembra?
Nenhuma resposta.
A luta entre os clãs parecia estar chegando ao fim com uma porção de robôs brancos caídos ao chão. Ela sabia que não teria mais tempo, mas não queria sair dali sem levar Martin.
— Você resistiu quando tomou banho de chuva ao me levar pra escola, Martin, você sobreviveu quando eu te enchi de sorvete gelado, sem saber que isso prejudicaria seu sistema, você não pifou quando caiu da sacada do prédio no dia em que a gente imitou o Super-homem, você resistiu ao fogo quando me tirou do quarto em chamas na noite em que brincamos com velas e o fogo queimou minha cama... Levanta daí, seu robô idiota, você é mais forte do que pensa! — ela disse por fim em prantos.
A cada palavra que pronunciava, Martin ia lembrando as cenas que vivera com ela na infância, numa era em que todas as crianças tinham um robô de estimação e seus pais, um robô para o serviço. Ele tinha se separado dela no dia em que os robôs se rebelaram contra os humanos e fora levado com outros tantos para servir no exército de metal. Rapidamente, os humanos foram vencidos e só lhe restou uma vida fria e o esquecimento dos melhores dias. Sempre ouvira dizer que robôs não têm sentimentos, mas como explicar aquela estranha onda de tremor e energia que circulava por todo o seu corpo metalizado e fazia vibrar seus circuitos quando estava perto dela?
No auge de seu desespero, ela correu na direção do robô líder para golpeá-lo com as mãos quando percebeu que ela e Martin estavam girando dentro de um redemoinho iluminado e veloz. Começaram a despencar num abismo por metros intermináveis, até chegar num local florido com água e luz abundantes.
Martin continuava paralisado, e ela, atordoada, tentava saber onde tinham ido parar. Tinha a impressão de estar num lugar lindo da Terra, antes de ela ser afetada por gases, produtos químicos, mal-uso da tecnologia e por fim a guerra dos robôs. Aquele pedacinho de mundo onde se encontravam agora parecia estar imune a todos os acontecimentos dos últimos séculos ou até mesmo de tudo que acontecera gradativamente à Terra desde que ela existiu.
***
Sophia percorreu com os olhos aquele lugar e desejou ver seus pais e amigos ali com ela. Por um instante, esqueceu do amigo robô e deteve-se diante da beleza daquele lugar. Caminhou por entre as árvores e observou um lago cristalino mais adiante. Tudo era perfeito, mas ela não sabia onde estava nem o que aconteceria ali.
Ela não tinha noção exata do tempo, mas pela contagem que tentava fazer já estaria chegando à terceira semana naquele lugar, sem saber como chegara nem como iria embora. A solidão começava a perturbá-la e já não achava sentido em ter sobrevivido por tantos anos numa cápsula para viver aquilo no presente.
— Martin — disse ela se aproximando do robô que, em sua contagem de tempo, já estaria inerte há mais de 20 dias —, eu devo agradecer ao universo por ter me dado a chance de reencontrá-lo. Você foi meu melhor amigo na infância, você pôs em risco sua própria sobrevivência para me defender do clã, mas agora que você se foi e eu não tenho mais ninguém...
Ela parou por um instante, enxugando as lágrimas e acariciando o corpo de metal do amigo, enquanto parecia refletir sobre as palavras que iria pronunciar.
— O mundo não foi legal conosco, Martin. Não vejo nenhum motivo para continuar uma vida aqui. Você se foi corajosamente e eu acredito que também chegou minha hora.
Beijou o rosto frio do robô e, deixando-o ali, caminhou até uma alta árvore de onde pretendia pular para uma queda sem retorno, entre pedras. Fechou os olhos e, respirando fundo, saltou. Ao contrário do que esperava, sentiu algo amortecendo sua descida e teve a impressão de estar sendo carregada.
Teve medo de abrir os olhos, mas a curiosidade foi mais forte e eles cruzaram com um par de outros olhos azuis diante de si. O ser à sua frente era alto, esguio, com orelhas grandes e arredondadas e boca bem pequena. Apesar de nunca ter visto um deles, ela não teve medo. Ele ainda a segurava nos braços e devagar a colocou no chão, sem dizer nenhuma palavra.
— Por que você me salvou? — ela perguntou, tímida.
— Sempre há possibilidade de um recomeço — ele disse por fim, sorrindo.
— Quem é você? — ela continuou.
— O recomeço.
Diante dela apareceram milhares de outros seres como ele. Altos, esguios, serenos e transparentes. O que falava com ela soprou na direção de Martin, e ele rapidamente se levantou como se nada tivesse acontecido. Sophia sentiu um misto de medo e surpresa. Queria abraçar seu amigo que ressurgira como num passe de mágica, mas os olhos arregalados fitavam o ser à sua frente na tentativa de compreender como ele fizera aquilo.
— Humanos, robôs e extraterrestres poderão dar origem a uma nova espécie.
— Do que você está falando?
— Una-se a nós e teremos uma nova raça imbatível e uma segunda chance para a Terra.
— Eu não sei do que está falando.
— Tudo o que precisamos é que você aceite se unir a nós num ritual de transmutação.
— O que isso significa? — quis saber Sophia, assustada.
— Nossos genes irão se unir numa cerimônia de fusão. Daí, surgirá uma nova espécie. Única, imortal, infalível.
— Mas por que devemos fazer isso?
— Para dar uma nova chance à Terra.
— E se eu não quiser? — perguntou Sophia, ainda temerosa.
— Você terá desperdiçado a única chance de mudar o futuro do planeta.
Sophia olhou para Martin, e naquele olhar mudo quis saber o que decidiriam. Ele a tocou nas mãos como sempre fazia para tranquilizá-la na infância, e ela entendeu que tudo o que lhe restava era uma vida sem sentido por alguns anos sobre aquela Terra desolada ou a esperança de refazer o planeta. Martin, mesmo sem dizer nenhuma palavra, a encorajou a aceitar a proposta daquele ser misterioso à sua frente.
Os dois, então, foram levados ao centro de um círculo gigante formado por milhares de outros seres de Hókia, um planeta transparente a bilhões de quilômetros de distância da Terra. Martin, Sophia e um hokiano entraram em processo de transmutação quando deram as mãos e sentiram seus genes circulando freneticamente pelas extremidades de seus corpos, num fluxo intenso e rápido. Um feixe de luz, causado pela circulação frenética da força daqueles três seres em transmutação rodopiou pelo ar dezenas de vezes até sair dele um ser que unia a robustez de um robô, os sentimentos de um humano e os poderes de um extraterrestre. O corpo era grande como o de um robô, sensível como o de um humano e transparente como o de um habitante de Hókia.
— Em milhões de anos de uma busca incessante, não encontramos em todo o universo seres que possuíssem mais inteligência e sentimentos que os humanos. Por isso, viemos com a intenção de dar nova chance para que a Terra possa recomeçar sua história.
— Mas os seres que estão surgindo não são humanos — observou Sophia diante daqueles novos habitantes que se multiplicavam rapidamente diante de si, unindo características dos três seres em transmutação.
— Humanos riem, choram, se apaixonam, amam, odeiam, se frustram, se recompõem, constroem, destroem, nascem, morrem, e são segredos e mistérios em todo o tempo. Nunca houve espécie tão encantadora e obscura em todo o universo.
E era esse sentimento obscuro e indecifrável germinado no coração dos seres humanos e agora perpetuado para a nova espécie que daria à Terra a chance de recomeçar sua história.
Em consequência da transmutação, ela e seu robô adquiriram vitalidade suficiente para viver por milhares de anos, resistindo às intempéries do tempo e testemunhando uma nova fase para o planeta. Ali naquele pedacinho de mundo, diante de si mesma, diante de Martin, dos hokianos e da nova espécie em construção, Sophia teve certeza de que a vida é apenas um ciclo infinito que se renova a cada vez que o caos se instala e ameaça o fim de todas as coisas.