Reflexos

Terror
Agosto de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Os espelhos do Circus Capella

Sinopse

Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :D

-?ei, tem certeza de que quer ler este contO .você pode se sentir um pouco estranho e se assustaR

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Reflexos
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1.


Eu me lembro que, por muito tempo, quando eu via minha imagem no espelho, tudo que podia pensar era: “para onde é que vão os reflexos quando nós não estamos lá para que eles nos reflitam?”

A partir disso eu conseguia imaginar claramente as imagens dos espelhos existindo em outra realidade, oposta à nossa, refletida, deixando o cômodo do espelho quando nós o deixávamos para fazer sabe-se lá o quê. Ou talvez fazendo exatamente o mesmo que nós, nos seguindo de perto para que estivesse convenientemente ali quando precisássemos que surgisse em outro reflexo, em qualquer outra superfície reflexiva.

Mas é claro que eu aprendi sobre a luz, e sobre reflexão e sobre como nossos olhos funcionam, e entendi os espelhos e os reflexos, então pensei menos a respeito dessa possibilidade. Em algum momento, ver minha própria imagem refletida se tornou algo comum, sem a magia que a infância e a ignorância haviam me proporcionado.

A magia, porém, reaparecia rapidamente, se eu tivesse espelhos o suficiente por perto. Era irracional, e eu sabia disso, mas bastava espelhos o suficiente para que eu me encantasse e ignorasse tudo que sabia. Coloque um espelho de cada lado de um cômodo e se forma um corredor infinito. Em toda oportunidade eu tentava ver o fim do corredor, ver se havia alguma diferença nas imagens infinitas mais longínquas, e tentava enxergar atrás de minha própria imagem, em vão.

Naturalmente, me interessei quando me disseram que o circo estava na cidade, e que a atração principal era a Casa dos Espelhos. Meu fascínio com esse tipo de coisa sempre teve a vaga tristeza de nunca ter sido plenamente atendido por um lugar do tipo. Sentindo necessidade de afastar meus pensamentos de tudo que era real e lógico, de tudo que a realidade me oferecia de tormentoso,  não titubeei em ir conferir. Ignorar a lógica olhando para imagens refletidas não apenas parecia divertido, como seria um alívio à minha mente cansada.

Aparentemente o circo tinha outras atrações, e a maior parte das pessoas parecia estar mais interessada nas apresentações, mas fui direto à Casa dos Espelhos, com a perspectiva de brincar com os reflexos com o mínimo de intromissão possível. Para minha felicidade, uma vez lá dentro, encontrei apenas silêncio e reflexos. Era perfeito.

Assim que passei pela entrada, me encontrei em um semicírculo refletindo minha imagem dez ou doze vezes. A iluminação por todo lugar era indireta, partindo de focos no teto e no chão, que ajudavam a tornar as bordas dos espelhos vagas, dando a impressão de que as imagens refletidas eram repetições reais.

Comecei a caminhar de um lado para o outro, observando as alterações de ângulo das imagens mais distantes. Era divertido, mas me parecia pouco. Se aquela saleta fosse tudo, os boatos haviam sido realmente exagerados, porque mesmo o efeito visual ali não era nada de especial, especialmente quando, conforme eu mudava de ângulo, o luminoso com letras vermelhas, acima da porta, surgia em um ou outro reflexo como um lembrete da irrealidade de qualquer efeito mágico: ADÌAS. Isso é, “SAÍDA” de trás para frente.

Pensei em desistir, quando notei uma alteração em um dos espelhos próximos do meio do círculo. Nele, a minha imagem parecia um pouco mais distante, angulada. Me aproximei, tentando entender a ilusão, e para minha surpresa descobri que não havia um espelho naquele ponto do semicírculo: havia um corredor com outros espelhos, e por um efeito das luzes e de como a imagem chegava àquele ponto, em alguns ângulos parecia que havia outra superfície.

— Veja só isso… — murmurei, e em seguida me surpreendi com o eco de minha própria voz sussurrando de volta pela sala.

Segui corredor adentro, agora com minha imagem me ladeando, multiplicada. Alguns passos depois, uma curva, e a iluminação se transformou, agora com focos de luzes arroxeadas e verdes, que dificultavam ainda mais a identificação dos espelhos e até da minha própria imagem. Senti o sorriso no meu rosto antes mesmo que pudesse confirmar que sim, estava me divertindo.

Era engraçado pensar naquilo. Havia quanto tempo eu não me divertia? Havia quanto tempo que eu não estava pensando em algo que tinha que fazer, ou em algum problema, ou em alguma pessoa com quem tinha que falar? Ali, havia só a brincadeira dos meus reflexos e eu.

Coloquei atenção nos meus sentidos. Eu ouvia apenas meus passos contra o carpete. O ar era frio, provavelmente fruto de um ar condicionado industrial, mas eu não ouvia qualquer barulho que indicasse seu funcionamento. Ao meu redor, minhas cópias se projetavam em corredores infinitos que eu desejava irracionalmente explorar, mas eram tantas opções e todos tão próximos que mais de uma vez parei para me localizar, tentando encontrar o caminho de onde eu havia vindo.

Essa parte da casa, logo notei, era um labirinto. A confusão visual seguia escondendo as passagens, e por vezes ângulos inteligentes dos espelhos escondiam meu próprio reflexo até o último instante. Perdi a conta de quantas vezes me deparei com minha própria expressão de surpresa ao fim de um corredor.

Não sei dizer quanto tempo passei no labirinto, mas me lembro bem do momento em que, julgando ter obtido a vitória, acelerei o passo em direção ao fundo de um corredor, deixando de tatear as superfícies ao redor como guia. Não foi sem algum nível de insulto que recebi a pancada e o som surdo de minha testa contra o vidro. Cambaleei para trás, até cair no chão com o orgulho ferido.

Fiquei ali por alguns instantes, tentando entender o mecanismo exato dos reflexos e superfícies, até que, sem opção, sentei-me e me coloquei a rir, e meus reflexos riram comigo, tanto em imagem quanto pelo som de minha voz que ecoava por todo o ambiente. Momentos depois, coloquei-me em pé e me aproximei do espelho que havia recebido minha cabeçada. Ele estava intacto e, melhor ainda, sem qualquer mancha do contato com minha pele na superfície. Me perguntei se haveria algum tratamento especialmente na superfície, mas não me prolonguei muito no pensamento, preferindo continuar a explorar.

Não sei dizer qual era o caminho para fora do labirinto por conta de suas voltas, idas e vindas, mas sei que o encontrei. Parte do truque, eu percebi, era que haviam superfícies de vidro transparente formando barreiras parciais em alguns caminhos. Essas, junto com um posicionamento hábil da luz, davam a ilusão de que estávamos vendo caminhos bloqueados, mas na prática havia sempre ao lado uma passagem, que ficava disfarçada pelos espelhos imediatamente atrás.

Assim que saí do labirinto, senti uma emoção difícil de descrever. Era a alegria do adulto que tem um sonho de infância atendido. Algo agridoce, misturando a alegria da realização com a tristeza de não ter atingido antes e, mais, a leve angústia e excitação que acompanham a possibilidade de um sonho impossível: eu vi que poderia entrar no túnel de reflexos, como sempre desejei.

A sala era projetada de modo peculiar. Retangular, ela levava espelhos de corpo inteiro nas paredes paralelas e uma iluminação azulada mais intensa, quebrando aparentemente propositalmente o efeito de dubiedade dos espelhos ao deixar as bordas de cada um bem definidas. O efeito, quando eu caminhava em frente a cada par, replicava os corredores infinitos de espelhos, subindo em ângulos estranhos, que eu conhecia e amava. Mas com a luz azul, eles pareciam portais para outra dimensão, outra realidade estranha e infinita, ou múltiplas realidades. E cada uma, claro, com uma cópia minha.

O melhor, porém, não era esse efeito em si, mas o fato de que quem havia projetado aquela sala parecia saber bem daquele desejo irracional de entrar no túnel infinito, pois havia um ponto da sala onde o meu reflexo não surgia, mas o túnel seguia indefinidamente. Era uma passagem real, física, longa, que se projetava para dentro. A cada poucos metros, linhas no chão, nas paredes e no teto, junto com luz azul, simulavam as bordas dos espelhos. O primeiro, o segundo, o terceiro, e tantos outros a se perder de vista, só que dessa vez não havia meu próprio reflexo no caminho. Não havia ninguém para impedir que eu olhasse o que havia no fim, ou para impedir que eu passasse.

Segui pelo corredor, hesitando apenas na primeira passagem por medo de outra colisão com um espelho mas, quando nada aconteceu, segui em frente com uma alegria incontida. As paredes ao meu redor eram espelhadas como antes, ajudando na percepção de que eu seguia dentro de um de tantos daqueles túneis bizarros. Algum detalhe da iluminação, acabamento ou ventilação fazia um leve chiado a cada marcação que eu passava, criando em minha a ilusão de que eu realmente ultrapassava barreiras, entrando infinitamente no mundo dos reflexos.

Havia um efeito visual peculiar, também, no sentido em que o corredor realmente parecia se projetar em um ângulo superior, conforme eu prosseguia. Mas eu não sentia a alteração sob meus pés, nem no meu esforço de progredir. Logo, também, estranhei o modo como o fim não parecia chegar. Ainda que eu adorasse o efeito, havia algo de estranho nele quando eu pensava nas proporções da Casa dos Espelhos, quando vista do lado de fora. Estava longo demais.

Só pelo som da passagem de cada portal e da minha respiração que notei que eu havia acelerado o passo, e aí me dei conta de meu nervosismo. Estaquei, novamente apurando os sentidos, e encontrei meu rosto preocupado nas paredes laterais. Fazendo uma nota mental de cada um de meus movimento, voltei-me para trás para ver o quão longe eu estava do começo do corredor, e descobri que, assim como o caminho para frente, eu mal conseguia distinguir o fim.

Olhei bem, e pensei distinguir, bem longe, o meu reflexo. Voltei para a frente do corredor, e também pensei ter visto minha imagem.

Sentindo um leve pânico claustrofóbico crescer, analisei minhas opções: eu podia voltar, mas com o tanto que já havia caminhado, era provável que estivesse mais perto do fim. Também poderia gritar por ajuda. Provavelmente eles tinham alguém olhando por alguma câmera de segurança escondida, e tinha quem pudesse me resgatar, se as coisas ficassem estranhas demais. Decidi seguir em frente, tentando não pensar na maneira como ninguém mais havia entrado naquele lugar.

O chiado da passagem por cada espelho falso voltou, e notei que eu até sentiria algum alívio se ouvisse passos que não eram os meus, ou até algumas crianças barulhentas para quebrar o clima daquele lugar.

Isso seguiu por alguns instantes, até que, para o meu alívio, o corredor parecia finalmente ter um fim. A cada passagem parecia existir um fim definido se aproximando e, nele, eu já enxergava meu reflexo. Uma pontada de dúvida me fez pensar que talvez fosse uma brincadeira de péssimo gosto e fosse outro beco sem saída, mas preferi acreditar que seria questão apenas de desviar de alguma parede posicionada estrategicamente no final, então segui.

Finalmente, quando alcancei a última barreira de espelho, meu corpo estava cansado. No fim das contas, tudo aquilo havia sido exagerado demais para o meu gosto, e eu sentia que a magia havia se perdido, para mim. Queria apenas voltar para casa, e felizmente eu já enxergava o luminoso que indicava SAÍDA.

Nesse momento, ouvi um estalo. Era um som de vidro, talvez de um espelho se rachando, ou talvez fosse metal. Era seco, curto, rápido, mas intenso. E então eu vi que muito do que eu havia enxergado até aquele momento já não fazia sentido, a começar pelo luminoso.

O luminoso estava no reflexo do espelho. Ele não dizia ADÌAS, mas SAÍDA. E a imagem que estava à minha frente, meu próprio reflexo, não estava olhando para o luminoso do mesmo modo como eu olhava. E o espaço atrás era a porta de entrada da Casa dos Espelhos, vista por dentro.

Engraçado. Meu primeiro impulso de horror não foi olhar para a pessoa na minha frente, mas me voltar para trás, para o corredor, para me certificar de tudo mais. E quando me voltei, não havia mais o corredor. Havia a porta e, nas laterais, as pontas do semicírculo, e o luminoso ADÌAS. Meus olhos arderam e minha mente parecia doer com a alteração súbita de realidade percebida, mas tentei caminhar em direção à porta, apenas para descobrir que não conseguia mais me mover.

Girei o corpo automaticamente, então, e finalmente encarei meu reflexo.

Era minha própria imagem, certamente. Em todos os detalhes, em todos os defeitos. Mas a expressão não era uma que eu costumava fazer. Não era meu aquele sorriso, o arquear de sobrancelhas, o modo como parecia encontrar prazer na minha percepção de que realmente não era eu. Era horrível.

Pior, mesmo sem tocar meu próprio rosto eu sentia meus músculos se esforçarem nessa configuração pouco familiar, com o cansaço de um sorriso forçado, ou de um sorriso que não é nenhum dos que eles sabem configurar.

Então eu senti que meu corpo queria tremer, mas não tremia. Eu queria olhar para outra direção, mas meus olhos não se moviam, e minha cabeça não se virava. Eu queria correr e não podia, e queria cobrir os olhos, mas meus braços estavam congelados.

Como se lesse meus pensamentos, meu reflexo levantou as mãos e levou-as aos lados do rosto, deslizando os dedos pelas bochechas. E então, arqueando os dedos como garras, fincou-os com uma força que eu desconhecia e começou a puxar, cortando a pele.

Eu queria gritar, mas não podia, porque era o reflexo que tinha controle sobre meu corpo, apesar da minha dor ser igual à dele. E então, em uma clara provocação, ele arreganhou a boca em uma caricatura exagerada, segurando-a aberta por alguns momentos, com os olhos fixos nos meus.

E então o reflexo gritou, e eu junto com ele.



2.


Depois que o Reflexo se foi pela porta da Casa dos Espelhos, eu fiquei na escuridão.

Eu também, com os dedos cobertos de sangue dos cortes do meu rosto, os olhos lacrimejando e a boca escancarada, segui gritando até desaparecer no reflexo da porta de saída que, diferente dele, não me levou a lugar algum. Não fosse minha consciência, eu diria que inexistia.

Era melhor do que sentir a dor, isso é fato. Eu tinha a vaga percepção de um corpo, em uma escuridão completa sem cansaço, fome, sede, sono, até sem respiração. Pela combinação desses fatores, também estava sem tempo mensurável.

Esse meu corpo era como uma memória vaga, como um membro fantasma que um amputado sente após o procedimento. Eu levava as mãos inexistentes ao rosto inexistente apenas para certificar que não havia sangue, ferimentos e dor, e realmente não havia, mas se me desconcentrasse, esses mesmos toques se esvaíam e eu me via perdendo as noções de dimensões corporais, atravessando com meus dedos inexistentes o espaço que eu deveria ocupar com partes que não estavam da maneira que deveriam ser.

Por muitas vezes da minha vida eu pensei em desaparecer, mas nunca daquela maneira. Era o dilema de todos que já passaram por sofrimentos similares: não é que você necessariamente quer deixar de existir, é só que isso parece muito mais fácil do que consertar o sofrimento. Se você está em um prédio em chamas, mais do que enfrentar o fogo e queimar até a morte, pular pela janela passa a ser extremamente atrativo.

Eu não tinha nada que me agradasse plenamente em minha vida. Nada era excitante ou divertido. Nada me trazia realização. Mas, ao mesmo tempo, toda minha vida parecia presa ao que havia se configurado. Meu trabalho, amizades, relacionamentos, minha relação com a família. Tudo era protocolar, tudo era baseado em obrigações. Quando eu não pensava em acabar comigo, eu pensava em acabar com tudo. Com todos.

Chegou a um ponto em que meus próprios pensamentos me impediam de confiar em qualquer pessoa. Era natural: se eu conseguia viver a vida encarando a todos com sorrisos, conversas amigáveis e ao mesmo tempo eu desejava assassinar todos ao meu redor com crueldade, eu só conseguia imaginar que o mesmo se aplicava para eles. Éramos uma coleção de pessoas doentes, sobrevivendo de fingir que não havia ódio mútuo por nós e por todas as circunstâncias.

Eu tinha certeza que eu não terminava com tudo porque não sabia como sobreviver minimamente sem tudo aquilo. Tanto porque invariavelmente haveria uma punição, quanto porque eu deixaria de ter a proteção homicida de todos que me cercavam. A incerteza era igualmente nociva, e era a única coisa que protegia aqueles ao meu redor de minha própria índole.

Talvez fosse por isso que eu gostava da magia dos espelhos, do estranhamento dos reflexos. Ir para outro lugar, quebrar a lógica da realidade, tudo isso me atraía muito.

Eu me imergia nesses pensamentos quando a realidade ao redor se distinguiu novamente. Primeiro veio o tato, depois senti que eu tinha olhos para ver, e com eles eu vi que estava novamente em um dos espelhos da entrada da Casa, vendo a placa de SAÍDA. À minha frente estava o Reflexo.

Suas bochechas estavam cobertas de pequenos curativos, e notei que as minhas também estavam. Se eu prestasse atenção, podia sentir uma leve dor, distante. Mas meu foco, naquele momento, era em suas mãos.

O Reflexo olhou para mim, sorrindo, e me disse uma coisa que levei alguns instantes para entender.

Sua fala parecia distorcida, com a cadência toda errada, dita lentamente, como se requeresse um esforço anormal. Loucamente, conclui que já que era um reflexo, sua voz era espelhada, como uma gravação invertida de uma fala de trás para frente.

— .eu tenho um presente para vocÊ — disse ele.

A proposta de um presente só não me incomodava mais que a voz, que a maneira como disse isso. 

Os olhos do Reflexo estavam focados nos meus quando ele falou e sorriu seu sorriso dolorido, e depois seus olhos baixaram e os meus também, apontando para a caixa que estava em minhas mãos.

Era uma embalagem quadrada, de papelão, com um laço de fita colado no topo da tampa como um enfeite. Era pesada, mas eu não me importava com isso.

Ainda que com a cabeça baixa eu o visse apenas com a visão periférica, eu sabia que seguia os movimentos do Reflexo. Com uma das mãos eu apoiei a caixa e, com a outra, removi a tampa.

Demorei alguns instantes para entender o que havia no interior da caixa. Era como se eu não conseguisse focar os olhos e, com um resquício de minha mente lógica, me perguntei por um instante se era porque, como reflexo, a luz não estava incidindo no fundo do pacote.

O Reflexo, então, colocou o objeto no chão e colocou as mãos no interior. Era algo quente e úmido, desagradável ao tato, mas muito sólido. Eu podia apenas ouvir os sons úmidos enquanto mantinha os olhos fixos nos meus, até que colocou o objeto em frente ao rosto, e me vi encarando a cabeça decapitada e deformada de meu pai.

Eu apenas sentia, mas nada podia fazer. O horror de segurar uma cabeça já era inescapável, mas a ele se sobrepunha um abismo imenso pelo fato daquela cabeça ser de quem era. E ao redor de tudo aquilo, a incapacidade do meu corpo de produzir ao menos um arrepio, um calor, uma taquicardia, tudo era enlouquecedor. Eu não gritaria, se o Reflexo não quisesse, e meu corpo não rejeitaria aquilo, porque ele não era mais o meu corpo.

Então o Reflexo se curvou e agarrou a outra cabeça arruinada — minha mãe —, e segurando-a junto da outra, com os braços cruzados à frente do corpo, como se fossem um bebê, ele sorriu e começou a andar de costas, em direção à porta de saída, sem me dar o alívio de soltar em instante algum.

Antes de sumir e me relegar outra vez à inexistência, o Reflexo me disse mais duas palavras.

— .de nadA



3.


Na inexistência, as cabeças não me acompanharam, o que não quer dizer que o horror não o fez.

Por vezes, tanto como meu corpo me parecia incerto, eu sentia o sangue nos dedos, ou o peso do presente, mas eram apenas ilusões, sempre ilusões. Se a falta de controle e o desconhecimento antes me atormentaram, saber que o Reflexo estava em algum lugar matando pessoas em meu nome era mais perturbador do que tudo até então.

Não. A verdade é que o que era realmente mais perturbador era que ele parecia saber que eu queria aquilo. Que eu havia desejado aquilo.

Eu havia imaginado a morte de meus pais, como havia imaginado a morte de todos que me cercavam na vida. O jeito fácil de me livrar de meus problemas. A solução-relâmpago.

“De nada.”

Não era só uma provocação. Era realmente a confirmação de que ele esperava minha gratidão por tudo que havia feito. Estava me livrando de minha própria vida, da vida que eu tanto odiava.

Mas a realidade da morte e da execução daquilo era outra. Eu poderia continuar sofrendo, reclamando e sonhando, mas só fazia sentido enquanto era possível sofrer, reclamar e sonhar. A realização não me trazia alívio algum, muito menos liberdade.

Na prática, de toda a experiência, havia um único alívio na percepção de que havia um plano claro. Provavelmente o Reflexo ia me livrar da minha vida, do modo como ela existia. Eu podia esperar o que viria em seguida, eu podia esperar o pior para as pessoas que eu havia desprezado. E depois… o quê? O que haveria para mim, no fim?

A resposta começou a surgir na visita seguinte.

O Reflexo tinha a roupa suja de sangue e barro, mas o rosto limpo. As feridas já haviam se cicatrizado, sem deixar marcas. As mãos estavam atrás do corpo, e dessa vez ele foi diretamente em frente ao espelho e, naturalmente, me aproximei também.

Ele passou as mãos à frente. Também estavam sujas de sangue. Primeiro, ele levantou sua mão direita, e me vi erguendo a esquerda. Tive um instante de surpresa ao ver que minha mão também estava suja de sangue, antes de me lembrar que não poderia ser diferente.

Colocando atenção na minha aliança de namoro, o Reflexo pegou-a entre dois dedos da outra mão, tirou-o e, parando um instante para examinar o anel, jogou-o para trás. Então, enquanto me olhava nos olhos e sorria, buscou alguma coisa no bolso direito, meu esquerdo, até que voltou com uma outra aliança.

Eu compreendia o que aconteceu, e não precisava de mais, mas ele aproximou o anel do rosto, forçando-me a ver, no interior, o meu nome e o nome de minha namorada, mais uma data.

Eu não me importava com a aliança, com a data, e realmente odiava essa tradição de anéis e sinais de compromisso. Aquilo estava acabado, como provavelmente estava acabada sua vida, e depois de um instante em que senti essa morte, eu notei algo estranho. Eu não me lembrava de nada significativo sobre ela. Minha memória estava perfeita, era só que eu não me importava o suficiente com ela. Claro, era uma morte de um ser humano, e eu sentia esse tanto mas… talvez meus piores pensamentos tivessem alguma razão. Talvez não fosse só minha vontade de não enfrentar as coisas, mas eu que realmente não me importava com nada.

Quando meus olhos voltaram ao rosto do Reflexo, pensei ter lido alguma surpresa no sorriso estático, mas era difícil dizer. Ele jogou o anel para trás, como havia feito com o primeiro, e tirou outro objeto do bolso. Era um pote plástico de maquiagem.

Ficamos ali em silêncio, por alguns minutos, enquanto o Reflexo aplicava em nossos rostos uma maquiagem completamente branca. O sorriso e o olhar fixo só desapareciam momentaneamente, quando era necessário para o aplicador.

— !prontO — exclamou o Reflexo.

Então saiu devagar da Casa dos Espelhos, caminhando de costas, sem tirar os olhos dos meus.

Naquele momento de inexistência, eu queria pensar sobre o que aquilo significava, sobre a maquiagem e meu papel e minha falta de reação, mas eu não conseguia. Eu sentia apenas um vazio, e era até confortável pensar nisso. Eu estava me livrando de tudo que não conseguira, antes.

Mas eu não pensei muito. Não tive tempo para pensar, porque logo estava outra vez encarando o Reflexo.

Ele ainda tinha as roupas sujas e a cara branca, o que me fez pensar que estávamos ainda no mesmo dia. De todo modo, o ponto focal era o objeto que ele empurrava. Era claramente um corpo em uma cadeira de rodas, apesar do lençol manchado que a cobria. O equipamento parecia reaproveitado, com as rodas guinchando com o esforço do movimento, e uma leve puxada à direita. Ou à esquerda, para mim. É claro, o corpo estava também à minha frente, e eu conseguia sentir essa diferença e o cheiro de podridão que vinha de baixo.

O Reflexo havia trazido, dessa vez, uma vítima inteira para mim. Senti quase interesse quando ele fez um floreio antes de puxar o lençol, mas me arrependi assim que aconteceu.

O corpo que estava por baixo estava inchado, e o movimento perturbou algumas moscas, que passaram a voar, girando agitadas pela sala. Era um homem com um terno arruinado, cheio de feridas e sangue. Ele parecia ter sido espancado por uma pá, ou algum objeto igualmente pesado. O rosto estava tão deformado que só compreendi que era meu chefe quando o Reflexo se aproximou das pernas do cadáver para alinhar um papel amarrotado.

Ele a alinhou precariamente na coxa do cadáver e, puxando a caneta de seu bolso, colocou-a em sua mão e, agarrando-a precariamente, assinou em uma linha na parte de baixo.

— .esta è sua carta demissãO — disse ele, levando o documento à frente de nossos olhos.

Então ele largou o papel e, se aproximando do espelho novamente, tirou de um bolso um pincel e do outro um pote de tinta. E ali nos maquiamos por mais tempo. Primeiro os lábios, depois as bochechas e por fim os olhos.

Estávamos lá, um ótimo palhaço, pronto para o circo, e seu reflexo.

E então eles vieram.

Meu olhar estava preso com o do Reflexo, admirando o rosto de palhaço finalizado, mas era impossível deixar de notar os corpos que entravam, agitados mas silenciosos.

Eram muitos, tomando todo o espaço por trás do Reflexo e, por consequência, por trás de mim, ocupados em tarefas que escapavam à minha visão periférica.

Quando o Reflexo deu dois passos para trás e eu o acompanhei, foi mais fácil notar que se pareciam com pessoas comuns, não fosse o sorriso similar ao do palhaço, e os olhos que piscavam pouco. Do que eu conseguia ver, a maioria vestia roupas comuns, e um ou outro parecia usar algum tipo de traje circense.

Duas pessoas que também tinham o rosto pintado ladearam o Reflexo, e seus equivalentes me cercaram. Então começamos, eu e o Reflexo, a ser vestidos pela dupla, que trocava nossas roupas por trajes coloridos e exagerados, cheios de babados, botões, lantejoulas e pompons. Eles nada diziam enquanto o faziam, e o Reflexo só se movia para ajudá-los no processo quando era estritamente necessário.

Não bastasse o incômodo da violação de minha privacidade, o toque daquelas pessoas era gelado e úmido, e mesmo o mínimo contato que tiveram com minha pele me trazia um desconforto imenso, ainda que meu corpo não reagisse de acordo com qualquer tipo de asco, simplesmente porque o Reflexo não sentia asco.

No fim, se afastaram e nos deixaram ali, palhaços completos, e então eu me dei conta de duas coisas: a primeira era que tudo que eu havia desejado havia se cumprido, e eu tinha uma vida nova e aparentemente uma nova ocupação, com todas as minhas responsabilidades tendo desaparecido facilmente. A segunda coisa que notei foi o que as outras pessoas faziam: elas estavam desmontando a Casa de Espelhos.

O Reflexo ficou parado, enquanto os trabalhadores levantavam segmentos inteiros de parede, piso, teto e tudo que podiam de acabamento.

Quando um deles passou por trás do Reflexo — e atrás de mim — carregando um espelho, por um instante o efeito de túnel se fez, projetando-se infinitamente para trás. Mas o movimento do espelho no transporte também me permitiu ver a curva de projeção das infinitas repetições do túnel, e notei, com certo horror, que eu não via as repetições do próprio Reflexo, nem da minha imagem. O túnel estava vazio, como aquele em que eu havia passado antes, até minha prisão como reflexo do Reflexo.

Foi apenas um instante, mas ele trouxe toda a compreensão que me faltava sobre meu destino, e a aparente consciência disso fez com que o sorriso do Reflexo se alargasse.

Ele então caminhou para trás mais alguns passos, e um dos homens colocou-se à frente do espelho que eu estava, tanto na minha presença quanto na presença do Reflexo. Esse homem então voltou-se para mim, e simultaneamente para minha cópia e, quando falou, pude constatar que apenas o que estava no mundo real tinha voz, e que ela não era revertida.

— Posso guardar este último?

O Reflexo não se moveu por alguns instantes, deixando que eu pudesse contemplar as consequências daquelas palavras.

— .pode guardaR — disse ele, finalmente.

E então o homem, que eu via de modo duplicado entre o real e o refletido, pegou uma chave de fenda e, tirando parafusos que eu sequer havia notado nos cantos da parede, habilmente deslocou a placa de madeira em que o espelho estava afixado, e ele junto.

O homem levantou o espelho e, virando-o de lado, colocou-o embaixo do braço e saiu, sem me dar qualquer atenção. E então, notei que ao meu redor não havia mais qualquer espelho, e que eu encarava uma parede vazia da Casa de Espelhos desmontada.

Foi quando tentei mover meu corpo novamente, e por um instante descobri que conseguia.

Mas, no momento seguinte, eu estava na inexistência, pois não era mais reflexo.


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