Peregrino

Sci-Fi
Março de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Deles era o mundo

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Peregrino
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A claridade tinha diminuído bastante, e a falha do calor natural dava a entender que em breve ia escurecer, apesar de ser, acho, por volta das cinco da tarde.

Os dias andavam cada vez mais quentes e a temperatura caia consideravelmente durante as noites. Não era bom estar exposto. Não havia luz elétrica em lugar algum. Tudo estava envolto por cinzas durante o dia, imaginem à noite.

Parecia que estava andando em círculos, mas certamente nunca tinha passado por aquela cidade. As ruas estavam desertas, e era mais prudente andar sobre a faixa amarela, bem no meio da rua.  

Procurava por um abrigo, um buraco qualquer onde só eu coubesse. Por isso, mantinha-me atento a qualquer coisa que pudesse indicar movimento nas construções fantasmagóricas de ambos os lados. Sentia que me vigiavam, mas eram apenas as câmeras embutidas nos olhos das estátuas que pareciam não retransmitirem para mais ninguém. Apenas totens ocos e observadores mudos no alto dos prédios do que restou do abandono da nossa espécie.

Esbarrei com todo tipo de gente em minha peregrinação. Feridos, maltrapilhos, desorientados... Antes os encontrava debaixo das marquises e ao longo de calçadas, mas também foram desaparecendo. Lembro que alguns me contaram histórias de outros tempos, tempos melhores que estes, mas não necessariamente bons. Tenho flashes próprios dos dias em que as coisas não eram assim.

Enquanto caminhava, senti um gosto estranho na boca. Um dos meus dentes estava mole. Uma trilha úmida escorria pelo meu rosto. Era sangue. Segui-a com o indicador e achei uma protuberância em minha testa. Não tinha ideia de como a tinha conseguido. Talvez tenha caído na porrada com alguém por um pouco de comida. Ainda estava meio zonzo, mas não sei se por conta daquele tipo de galo ou pela fome.

No entanto, lembrei-me de outro ferimento parecido com esse. Foi na época em que as irmãs de caridade andavam agoniadas porque a dispensa do orfanato se encontrava quase vazia e os mercados estavam sendo saqueados. Eu e minha melhor amiga praticamente tínhamos crescido lá, e regulávamos uns sete anos. Em nossa ingenuidade infantil, achamos que poderíamos conseguir algo para a casa, bem no meio de toda aquela confusão. Acreditamos que ninguém perceberia nossa presença por sermos pequenos, mas as pessoas tendem a ser muito violentas quando os recursos se tornam escassos, e não perdoaram nem camundongos como nós.

O governo não pôde, não quis, ou não soube conter as rebeliões que explodiram por todos os lados. A insatisfação é amante do medo, e dos dois nasceu a intolerância. Os noticiários davam a entender que nosso lado primitivo esteve latente por muito tempo, coberto apenas por um fino lençol de cordialidade. Poderíamos ter buscado outra reação, a de união talvez, mas nos deixamos usar frequentemente  pelos ditos homens de bem.

A tecnologia tinha avançado muito, mas não para todos, e o descontentamento era cada vez mais evidente, porém, tudo continuava tranquilo para os mais ricos. Ainda conseguimos coexistir por um tempo, mas o tic-tac do relógio parecia contar os minutos de uma inevitável segregação.

Ouvi em algum lugar que, quando acaba o pão e o circo, os burgueses são os primeiros a cair fora. Costumam ter informações privilegiadas do que está por vir. Os que não conseguem, dividem-se em grupos distintos: caça e caçadores.

Então, a violência aflorou de forma avassaladora, destruindo tudo que viam pelo caminho. Barricadas, ônibus incendiados, casas invadidas... Tudo virou caos. O povo aturdido corria sem direção, pisoteando a tudo e a todos. Aquilo seria o suficiente para atestar que as coisas estavam realmente ruins. Estávamos em estado de guerra civil contra um inimigo inanimado. No orfanato, fomos ensinados que a natureza do homem é boa porque seu criador é só amor, mas os livros retratam uma coisa bem diferente; que nossa origem é primitiva; ciumenta, possessiva e assassina. Ninguém confessa que carrega uma área obscura dentro de si, até que circunstâncias adversas o obriguem a assumi-la de vez por uma simples questão, a sobrevivência. Parece até uma licença para matar. Dizem que é a lei da selva, mas os animais não matam por prazer.

Só tivemos noção de que as coisas fugiram do controle quando a fome atingiu a cidade e os animais de estimação passaram a sumir. Hoje é raro encontrar algum bicho doméstico. Os cachorros, tão leais, foram os primeiros a desaparecer. Os gatos, mais espertos, não costumavam dar mole. Se os procurasse nos lugares certos, ainda conseguiria achar algum, mas era muito difícil.

Nosso organismo necessita de carne para sobreviver, um hábito difícil de largar. Os animais pequenos são costumeiramente os mais indefesos e mais práticos de se pegar. Sou jovem e pequeno, e por isso preciso me manter seguro. Para onde quer que eu olhe, sinto o perigo à espreita por trás dos muros semi destruídos, nos becos, nas casas abandonadas com um odor de coisa morta empesteando o ar.

No início foi muito difícil, mas a gente se acostuma a tudo. Os mais velhos, que sobreviveram àqueles primeiros dias em que perderam tudo: família, bens e a dignidade não se acostumaram, só desistiram. Os mais jovens e fortes, adquiriram novos hábitos. Dava para ver em seus rostos, em suas arcadas metamorfoseadas e cravejadas de dentes pontiagudos. As narinas ficaram mais largas e o olfato mais aguçado. Os hábitos noturnos vieram logo depois que nossas pupilas dilataram, tomando quase todo o globo ocular.

Tinha uns dois dias que eu não conseguia nada para comer. Pensei que daria sorte na próxima cidade, mas os grupos dos mais fortes invariavelmente chegavam antes, arrastando tudo que pudesse ter algum valor. Qualquer coisa era útil, principalmente o que pudesse servir de arma, combustível ou remédio. Precisávamos manter vantagem. Os grupos de andarilhos variavam de pequenos a bem numerosos. Os maiores eram assustadores! Às vezes eram famílias inteiras, ou torcidas organizadas de algum time de futebol, sei lá. O mais importante era não estar sozinho e no caminho deles, ou seria uma presa fácil.

Parecia uma invasão Persa. Ouvíamos seus passos trazidos pelo vento, e o chão chegava a tremer. Só tínhamos três opções: fugir, entrar para o bando, ou morrer, e havia inúmeras formas desagradáveis de isso acontecer. O mundo tinha virado de cabeça para baixo e nós ficamos do lado de baixo, bem na base da cadeia alimentar.

No início eu e minha amiga andávamos com um grupo grande desses porque, como disse, éramos bem menores e sem qualquer escolha. Quando passávamos dias sem encontrar nada, alguma coisa dentro dos mais velhos foi se modificando. Seus olhos perderam o brilho e outra coisa entrou no lugar. Uma espécie de possessão demoníaca, por assim dizer.

Havia grávidas no grupo e outras tinham acabado de ter seus bebês. Ainda me pergunto: “Como alguém teve coragem de não se proteger para evitar que acontecessem coisas assim?”; mas agiam como animais no cio e, inevitavelmente, o resultado era esse. Observei que as adversidades costumam roubar a coerência das pessoas, mas passado um tempo, percebi que aquela também era uma estratégia de obter comida, porque alguns bebês sumiam um dia antes de termos guisado.

Primeiro houve o desespero; depois um choro contido, e depois ninguém mais se importava. Não poupavam nem os camundongos. Lembra? A sobrevivência tinha enterrado o pouco de humanidade que existia naquelas pessoas e penso se isso não esteve sempre neles, escondido bem do fundo de suas almas, esperando apenas um motivo para sair.

Viramos andarilhos e, quando dava, procurávamos nos instalar perto de um rio ou de alguma nascente. Bebida era uma coisa que nunca faltava. Até eu aprendi como destilar qualquer coisa que pudesse produzir álcool. Era um jeito de enganar a fome e dormir sem ficar paranoico com qualquer barulho diferente. Não tinha mais medo das cinzas que caiam por todo lugar, ou das cidades desertas. Mantínhamos nossos narizes e bocas cobertos com faixas para tentar filtrar o ar poluído e o cheiro de podridão, mas os olhos ficavam de fora e era isso que dava medo. O que estava oculto por trás das máscaras.  

Lembro que o grupo sempre procurava se esconder no que restava de mata. O bando tinha uma espécie de acampamento que servia como ponto de encontro. Procurávamos ficar ocultos enquanto outras gangues passavam com seus enormes cortejos para saquear qualquer coisa, inclusive os outros bandos. Aprendi muito com eles; a ser furtivo, silencioso, quase invisível.

Enquanto caminhava, fragmentos de memórias com os outros que moravam comigo no orfanato, invadiam minha cabeça. Parecia uma tentativa do meu cérebro de não me deixar esquecer quem eu era.  Lembro que tínhamos uma televisão na sala principal, mas as irmãs, que tomavam conta da gente, evitavam ao máximo que fosse ligada. Preferiam nos poupar dos horrores externos e contar histórias mais adequadas a nossas idades, que variavam de bebês rechonchudos a pré-adolescentes. Porém, sempre que elas davam bobeira, ligávamos o aparelho e ficávamos sabendo do que acontecia do lado de fora. Recordo vagamente de um furgão cinza com um escudo militar na porta, de onde um cara de uniforme sempre saía carregando caixas com legumes e verduras e as deixava na mesa do refeitório uma vez por semana. Nunca mais o vi.

Nossas refeições passaram a consistir de sopa, bolos, pão caseiro e ovos uma vez na semana. Tínhamos uma galinha parideira e a horta nos fundos, em que todas as crianças tinham a tarefa de cuidar, plantar e colher. A irmã mais velha era esperta, e parecia saber o que estava para acontecer. Tornamo-nos vegetarianos pelas circunstâncias, e me acostumei a isso.

As noticias também chegavam pelas poucas visitas e pela rádio local. Pela TV, soubemos que os tumultos estavam cada vez mais frequentes nas cidades, afetando a economia dos estados, o clima e a relação entre os países. A voz do locutor era perceptivelmente ansiosa, pelo medo de uma tragédia que se alinhavava dia a dia. Não foi surpresa quando noticiou que um imbecil poderoso resolveu arrumar encrenca com outro poderoso imbecil do outro lado do mundo. A briga se alastrou pelo planeta e a população insuflada pelo ódio, pagou o pato. Simples assim. Mas, acho que me esqueci de contar que um deles jogou sujo, e partiu para o uso de armas bacteriológicas -, coisa de psicopata com um microscópio a disposição e com um objetivo bem prático: matar uma porrada de gente do lado adversário sem dar um único tiro, nem explodir coisa nenhuma. Limpo, letal e econômico. Porém, até onde sei algo deu muito errado. Parece que não contaram com o paciente zero. Disseram que correntes de ar espalharam o agente patogênico que, em contato com poluentes, sofreu mutações. Ferraram com os dois lados. Os mais pobres morreram primeiro, e os que sobraram ainda não sabem dizer se tiveram sorte ou azar.

Parecia um apocalipse zumbi, mas sem a glamourização das telas de cinema. Logo fomos invadidos por um monte de carros do exército, com adesivos na lataria, do tipo daquele carro que nos entregava comida.  Primeiro tentaram conter os casos isolados de pessoas que surtavam com explosões de violência desmedida. Depois vieram os lança chamas para conter a horda que avançava sobre os militares, mas esses também não deram conta. Quando as explosões ficaram cada vez mais próximas sabíamos, de dentro do orfanato, que não teríamos a menor chance.

Fomos invadidos, espancados, saqueados e quase todos mortos. Apenas eu e outra garota menor fomos levados com a gangue. Uma das mulheres do grupo achou que seríamos úteis para passar por pequenos buracos.

Em pouco tempo, nosso bairro parecia um monte de escombros, com carros abandonados e casas fumegantes. O exército nos abandonou. Criaram barreiras de contenção para que não ultrapassássemos e acabássemos por nos extinguir a nós mesmos. Porém, enquanto isso não acontecia, tornei-me o especialista em grãos, acho porque conhecia muito de hortas.

Não era fácil achar alguma coisa, mas reconhecia o que podia ser comestível, e com isso eu ia me virando, alimentando minha amiga e sendo útil ao grupo. Era tudo contado e muito difícil. Havia lutas internas por qualquer motivo, mas o que mais me angustiou foi quando tivemos aprender a roubar, a caçar, e a matar.

A menina, no entanto, não teve a mesma sorte.  Por mais que eu quisesse protegê-la, ela era muito frágil e não resistiu. Foi quando percebi que a humanidade tinha tirado longas férias. Ela virou guisado.

Apesar da fome roer-me por dentro, não conseguia mesmo comer carne, e hoje agradeço por isso. Senti que uma hora ou outra eu seria o próximo a estar numa caçarola, então dei no pé. Saí durante a madrugada.

Estava começando a falar sozinho. Criava diálogos comigo mesmo e isso de certa forma me mantinha são. As coisas que aprendi no orfanato na convivência com meus irmãos desafortunados ainda eram mais fortes do que eu tinha aprendido com a gangue. Era no que eu queria acreditar.

Já tinha uns dias que eu tinha fugido deles, e os ecos de seus gritos chamando por mim ainda me assombravam durante a noite. Tinha medo do que poderiam fazer se me encontrassem, mas de uma coisa eu sabia, e essa era minha vantagem, eles também tinham medo. Divididos se tornariam fracos, e não fariam isso para me procurar. Não eram apenas as super gangues, as cinzas, ou o ar poluído que os assustava, mas algo que tinha nascido de todo aquele horror. A maldade havia criado vida própria, uma espécie de entidade que estava se espalhando por todos os cantos. Eu nunca a tinha visto, mas acreditava. Era como se uma energia emanasse do mal em natura e fosse se materializando na medida em que mais pessoas aderissem a práticas cada vez mais obscuras.

Já estava andando há horas, sem encontrar um lugar minimamente seguro, quando passei por uma loja de departamentos abandonada. Tinha restado parte de um espelho por dentro da vitrine e assustei-me com o que vi. A princípio, não reconheci meu reflexo. Achei que talvez fosse uma alucinação. Uma lua pálida deu um contorno monstruoso à minha imagem patética. Estava embrutecido, calvo e mais envelhecido do que a minha idade cronológica. Quase um Goblin, versão latina. Dava para escrever sobre a sujeira que cobria meu corpo esquálido, e o sangue seco na lateral do rosto só piorava as coisas.

O galo parecia ser um tumor, e era bem maior do que eu achava. Talvez minha tontura não fosse apenas da fome. Senti as pernas vacilarem e, por mais que aquele não fosse um lugar seguro para passar a noite, na rua é que eu não ia ficar.

Entrei por uma passagem estreita, uma abertura feita na porta de alumínio semi arrancada, e me escondi entre as gôndolas. Assim que minha visão se acostumou à escuridão, arrastei-me pelo chão como um soldado entre as trincheiras, parando de vez em quando e apurando os ouvidos até perceber que estava realmente sozinho. Espantei-me com minha destreza.

Parecia um shopping com várias lojinhas circundando o que um dia foi uma praça central. Já tinha um bom tempo que não me abrigava em uma construção. Estava sempre sob as estrelas, em uma clareira qualquer, entre um bando de gente estranha e perigosa. De certa forma, eles tinham se tornado minha família. Mas, não era saudável ter uma família que poderia lhe comer a qualquer momento.

Levantei bem devagar e me aproveitei das várias colunas para ser sorrateiro. A área era bem grande, e apesar de quase destruída pelo vandalismo, ainda tinham coisas ignoradas  que um sobrevivente esperto poderia utilizar. Entre restos de roupas cobertos por poeira e cinzas, pude encontrar ganchos de cabides, fios, sacos, pés solitários de sapatos..., – nem me lembro da última vez que tomei um banho – Um espaço daquele tamanho tinha banheiros para clientes, e pensei, “Porque não?”.

Peguei algumas coisas com toda cautela e segui as setas, rumo ao piso superior. Era o banheiro feminino, mas quem se importava?! Surpreendentemente ainda tinha água nas torneiras, - “Irra!” – um resto que sobrou no encanamento.

A sensação de estar limpo me trouxe lembranças de uma época que talvez nunca mais voltasse a ver. Aproveitei cada segundo daquela civilidade capenga. Não importava se algumas peças eram femininas, se não tinham o tamanho ou cor adequados. Estavam mais limpas do que as que eu vesti por meses. Olhei no espelho e fiquei feliz com o que vi. Joguei meu outro eu no lixo e saí do banheiro. Sentia-me renovado, rico, poderoso e capaz de enfrentar qualquer coisa dali por diante. Peguei uma mochila abandonada e comecei a recolher meus pequenos tesouros, só faltava a comida, mas a isso eu já estava acostumado e poderia aguentar por mais um dia. Precisava dormir. Ainda que tivesse removido o sangue seco, o calombo ainda estava lá e minha cabeça latejava.

Um lugar para desabar seria bem vindo e procurei por uma loja que tivesse prateleiras altas. Achei uma de artigos esportivos, e escalei a da seção cujas prateleiras se estendiam até o teto. Do alto eu poderia ter uma visão privilegiada, caso alguém tivesse a mesma ideia de entrar ali. Estava tão empolgado com meu cantinho e minha nova aparência que me esqueci de ser cuidadoso. Deixei rastros.

Por algum motivo eu não consegui dormir. Permanecia com um olho aberto e outro fechado, tentando ouvir qualquer barulho. Por mais que não me sentisse seguro no meio da gangue, alguém sempre ficava de vigia, até mesmo quanto a injustiças dentro do grupo, e isso de certa forma me tranquilizava.

Estava há dias completamente sozinho, e a empolgação estava cedendo lugar à paranoia. Em dado momento comecei a ouvir um barulho, como se fossem coisas se arrastando pelas paredes. Achei que poderia ser algo vindo dos canos. Apurei os ouvidos e segui com os olhos na direção do barulho. De um buraco, por detrás de um balcão, uma horda de ratazanas infestou o chão e subiu pelas paredes tentando me alcançar. Não estava mais sozinho. Perguntava-me como tinham ficado daquele tamanho?! Eram enormes! Pareciam gatos adultos. “Um banquete de proteína para minha gangue”, pensei.

Arrastei-me pela prateleira e desci pelo outro lado. Não me importava mais se estava ou não fazendo barulho. Precisava fugir, e no desespero, acabei deixando a mochila com meus preciosos tesouros para trás.  Contudo, por mais que eu corresse, eles eram mais rápidos e estavam chegando cada vez mais perto. Corri como se o próprio diabo estivesse atrás de mim e escorreguei algumas vezes por conta dos sapatos frouxos em meus pés, mas me levantava rapidamente e driblava aquelas aberrações rabudas. Entrei novamente no banheiro, achando que a porta os deteria. Péssima decisão. Não havia obstáculos para eles, que se espremiam até passar por debaixo da porta. Subi no vaso sanitário e escalei a parede divisória dos boxes, mas as ratazanas, após algumas escorregadas, logo aprenderam a subir umas sobre as outras, fazendo uma pirâmide para me alcançar. Foi quando uma placa de gesso caiu do teto e uma mão cheia de feridas, saiu do duto de ventilação, com uma voz que gritava:

- Anda! Agarre minha mão!

Tive medo, mas não tinha escolha, ou era isso ou ser devorado.

O cubículo estava completamente escuro, e numa primeira olhada não deu para ver como era o dono da mão, mas sabia que era forte o suficiente para ter conseguido me puxar numa arrancada só.

- Fique tranquilo, aqui é seguro, eles ainda não aprenderam a roer aço. – o cara disse.

- Há quanto tempo você vive aqui? – perguntei olhando para aquele cubículo cheio de quinquilharias.

- E onde está sua boa educação? – ele perguntou em tom de reprovação.

- D-desculpa. Obrigado. - corrigi-me.

- Tô te zoando. – deu uma risadinha baixa e esquizofrênica.

- Ah... Que hora boa pra isso, né mesmo? – reclamei com um sorriso amarelo no canto da boca, imaginando o ar de deboche naquela cara, provavelmente desfigurada.

Realmente a hora não era nada boa, mas eu não queria desagradar o cara que tinha acabado de salvar a minha pele.

- Estava te observando daqui de cima, e percebi que você não foi muito modificado, né? – ele falou pegando no meu queixo e virando meu rosto de um lado para o outro. – Não te estragaram muito...

- Estragaram? Tá falando do povo da gangue? – perguntei.

Estava angustiado porque ele conseguia me ver, mas eu não conseguia vê-lo, apenas um contorno parcial de algo que não era bonito. Sujeitos às mesmas circunstâncias, deveríamos compartilhar de habilidades semelhantes.  Só pude perceber que a voz era de um cara jovem e que cheirava muito mal. Não era só pela sujeira, mas devido a algum tipo de doença terminal. Percebi que ele estava se desfazendo.

- Você não tá conseguindo me ver, mas acho que se pudesse, lembraria-se de mim. Moramos juntos no orfanato.

Senti de imediato um aperto no peito. Instantaneamente minhas memórias voltaram e um cheiro de bolo invadiu minhas narinas, fazendo-me salivar.

- Impossível. Todos morreram, exceto eu e uma menina da minha idade. – informei melancólico.

- Mas, é a pura verdade! Vivi com você, as irmãs e os outros, mas fui levado pelos caras dos carros com brasões na lataria. Faz exatamente 1.872 dias desde que ferraram com tudo. Lembra?

Eu não lembrava exatamente quantos dias. Para falar a verdade, não fazia a menor ideia que dia da semana ou mês nós estávamos, mas o cara foi contando coisas que faziam sentido e me transportaram para aquela época em que as coisas eram infinitamente melhores que agora, embora tristes. Em pensar nisso me senti extremamente velho, assim como os que me tinham contado coisas de tempos antigos.

- Sabe pra onde te levaram? O que fizeram com você? Como saiu de lá? – perguntei.

- Sim. Experiências para uma nova ordem mundial. Fugi.

O cara era econômico nas palavras, mas, por hora, eu ia deixar quieto. Vai que ele se metamorfoseava? Não seria eu a irritar o sujeito. Mas, o cansaço foi pesando, num tipo de fuga para entorpecer a fome, e minhas pálpebras teimavam em cair.

- Não durma! – disse o cara, sacudindo meu braço. – Não vai dar pra ficar aqui com você. Vai correr risco comigo ou com os ratos. Eles ainda não roem aço, mas aprendem rapidinho a escalar.

- Não tenho pra onde ir agora. Se eu sair, as ratazanas vão me pegar. Já sentiram meu cheiro e estão só esperando pra me dar o bote.

Eu meio que estava implorando, enquanto esfregava os olhos e dava tapas na minha própria cara. Porém, ele estava certo. De forma alguma eu poderia dormir, naquelas condições.

- Não me leve a mal. Aqui é muito apertado pra nós dois. Se tivermos que fugir, de repente, vai ser um problema. - ele alertou.

- Fugir de quê? Das ratazanas?

- Não. Dos caras do exército. Se não o virem pelas câmeras, vão desconfiar da existência de um esconderijo. Eles nem imaginam que sobrevivi.

Meditando rapidamente sobre suas palavras, não sei dizer se aquilo era o mesmo que sobreviver, e a cara que fiz foi um indicativo de que eu estava descrente da nóia dele.

- Você pensa que isso tudo foi uma consequência da economia ruim; de gente incompetente e gananciosa, né mesmo? Está muito enganado! Todos estão! Essa mutação, esse estado das coisas, foi tudo arranjado pelos caras de farda, ou por alguém acima deles. Pense bem, você era o mais inteligente nas aulas de ciências. Se já estamos mandando sonda pra Marte; se fomos capazes de criar robôs com inteligência artificial, você realmente acha que o governo não teria capacidade de alimentar as pessoas de uma única cidade, ou de criar uma força tarefa, com aqueles caras vestidos com macacões brancos e estéreis para nos desinfetar? Brincaram com a gente, meu caro! Somos objetos de estudo para criação de uma super-raça. Nossa cidade foi escolhida aleatoriamente, em meio a um monte de cidadezinhas de merda que ninguém faria caso. Espalharam o vírus e puseram câmeras para nos monitorar o tempo todo. Os mais velozes, com plena visão noturna e adaptação ao meio, são recolhidos. Fui um desses, mas algo deu errado.

O sujeito começou a falar, levando todo meu sono embora. Não dava para crer que tudo tinha sido uma grande conspiração. Segundo ele, aparentemente fomos atingidos por uma grande maré de azar, e no uni-duni-tê elegeram nossa cidade para tomar parte em um estudo, e continuou...

- Os senhores da guerra, cansados de brincar com hologramas de soldados universais (filme EUA/1992), partiram para a ignorância e criaram uma alegoria; uma espécie de cenário que sustentasse seu projeto de pesquisa. Seríamos a resposta para saber o que fazer no caso de uma catástrofe nuclear, invasão extraterrestre, ou ambos. Não que o mundo já não estivesse à beira do caos, ou que já não estivéssemos sendo modificados.

Ele me esclareceu que, sermos envenenados por meio de pesticidas em alimentos, no ar, ou em produtos de higiene e limpeza fazia parte de um grande projeto de poder. Só faltava um acelerador, um alienador psicológico mais potente que as mídias, algo mais eficaz e controlador que nossa própria realidade. Assim como no Show de Truman (1998), a sociedade precisava tomar parte, condicionando-se passivamente à essas e novas bizarrices, como realidade. Na época ele era um pré-adolescente, sem escolha alguma.

Após ouvir teoria dele naquele túnel escuro, pensei que poderia ter realmente chegado meu fim. O que poderia esperar ao sair dali? Campos floridos, comida farta sobre uma toalha quadriculada, e uma família margarina brincando com bolinhas de sabão? Não! Entretanto, ser alterado biologicamente para sobreviver a um ataque extraterrestre era um pouco demais. Fiquei com medo que nossa história particular acabasse mesmo por se transformar em algo terrivelmente cotidiano, assim como o Show de Truman acabou se tornando para a maioria da sociedade mundial.

- Parece um conto de terror, eu sei, mas é a mais pura verdade! – completou o cara, enfático.

No mesmo momento em que conversávamos, um neblina cinza e densa se agitava no breu do lado de fora, e um vento sinistro invadia os corredores vazios do shopping. Um sussurrar de espectros silenciosos adentrava o perímetro para nos caçar, e não eram os ratos. Realmente o mal pode se materializar, mas não como eu o havia imaginado. Na verdade eles eram bípedes, com indumentárias high-tech pretas de visão noturna. Não demorou muito para que scanners de calor nos localizassem no ducto de ar. Felizmente as ratazanas agora tinham novo objeto de atenção e deram o alarme de que algo em breve oscilaria em nosso temporário esconderijo. Meu companheiro de catre também sentiu um desequilíbrio estático.

- Huston, temos um problema (filme USA-1974). – ele sussurrou.

Senti seus olhos cravados em mim, e um suor gelado correu por minhas costas. Minhas narinas imediatamente se dilataram para identificar algum cheiro mais estranho que o do meu colega de catre. Tanto ele, quanto eu percebemos que um grupo se deslocava estrategicamente com seus coturnos bem abaixo de nós. Ele fez sinal com o indicador para que eu ficasse em completo silêncio e indicou que deveríamos dar o fora da li o quanto antes. Contudo, as tralhas dentro do ducto impediram nossa mobilidade e acabamos nos atrapalhando na fuga. Abaixo de nós, algum sádico ganhou tempo e achou que seria legal apontar o lança chamas para se livrar das ratazanas e dar uma aquecida no aço da ventilação nos forçando a sair. Meu parceiro, no entanto, tinha uma rota de fuga, e eu o segui engatinhando pelo labirinto.

Por mais que os Robocops (filme USA-1987) estivessem em malhas sintéticas e super aparamentados para nos localizar e capturar, não conseguiriam cobrir todas as saídas de ventilação, ainda mais com paredes a bloquear o fluxo. Ledo engano. Havia me esquecido do gás, - eles sempre usavam isso nos filmes - e não era um gás lacrimogêneo qualquer.

Era impossível conter a tosse e o sufocamento nos pulmões, assim como a queimação na pele por aquele vapor ácido que eclodia em bolhas sobre minhas áreas descobertas. Parecia a ante sala do inferno, modelo pocket. Lágrimas embaçavam minha visão, o lança chamas contra o aço, fritava nossas mãos e joelhos, e as bolhas se alastravam ardendo por todo o corpo. Quando estava prestes a desistir e me entregar, senti uma leve brisa em meu rosto. Bem a minha frente, meu companheiro deu novamente sua leve gargalhada esquizofrênica e um sorriso daqueles que escapam da pena de morte retornou aos meus lábios. “Se foderam!” – pensei. Estávamos próximos a uma saída e isso bastava para qualquer condenado.

Aguardei meu salvador inverter o corpo para chutar a grade que nos separava da liberdade, e fiz o mesmo. Entretanto, estávamos a uma altura de uns seis metros, equivalente ao mezanino do segundo pavimento. “Que merda!”, foi só no que pensei. No mínimo quebraríamos uma perna, e aí eles nos pegariam na próxima esquina. Era isso ou ser cozido. Empurrei ele.

Não me levem a mal. Como havia dito, fazemos o que é necessário para sobreviver, e num lapso de segundo, imaginei meu companheiro amortecendo minha queda.

Meu subconsciente queria que um arbusto, ou uma grama bem fofinha, estivesse logo abaixo dele. Quem sabe, um daqueles enormes containers de lixo podia ter amparado sua queda, mas o que ouvi foi um barulho surdo, como algo se quebrando sobre o asfalto. Não tinha muito tempo para lamentar o que fiz, pois vários pontos verdes refletiam nas paredes do ducto, indicando que os caras estavam nos meus calcanhares.

Caí exatamente sobre ele, e o som de seu gemido de dor jamais sairá dos meus ouvidos.

- Me perdoa, cara!

Não podia lhe negar aquele ultimo segundo. Eu não era um monstro! Talvez aquele sujeito tenha sido o mais perto de um irmão que tive nos últimos anos. Por algumas horas ele tinha cuidado de mim sem querer nada em troca, e eu o havia traído da forma mais sórdida. Lágrimas genuínas escorreram pelos meus olhos, lavando o constrangimento e o ódio que senti de mim mesmo, enquanto eu ajoelhava a seu lado e segurava sua mão.

- Não há o que perdoar, já que somos a mesma pessoa. – e exalou seu último suspiro.

- O quê? - Congelei.

Foram apenas dois minutos, o suficiente para algo ser injetado em meu pescoço, e braços musculosos sob malhas sintéticas me levantarem pelos braços e pernas acima de suas cabeças. Fui removido do local como se fosse uma oferenda a ser sacrificada aos deuses do caos.

Seis brutamontes, numa marcha lenta e cadenciada me carregaram com extremo zelo, totalmente diferente da atenção despendida a mim dentro do shopping. Parecia que estavam sob incisiva supervisão de um alto comando qualquer. Estava totalmente paralisado, com minha perna enfaixada e a cabeça pendida, sacolejando a cada passada. Devia ser alta madrugada, e enquanto cortávamos a névoa densa e cinza que pairava sobre a avenida, meu precioso amigo jazido ao chão, desvanecia-se no ar como uma fumaça que se mesclava à noite que nos envolvia. Meus olhos continuavam úmidos de tristeza. Não sabia se me despedia dele ou de mim mesmo.

Fui depositado sobre uma maca no compartimento traseiro de um furgão, que mais parecia uma versão otimizada do DeLorean DMC-12 (De Volta Para o Futuro – USA/1985). Poderia jurar que tocava The Power of Love (Huey Lewis - 1985), no Spotify de algum dos soldados. Porém, acho que a droga estava fazendo efeito, embaralhando meus sentidos e convicções. Não conseguia raciocinar. O que quer que houvessem me injetado devia ter a função de anular qualquer elaboração de fuga. Mas, eu era apenas um adolescente. Por que tanto desperdício do suado dinheiro público com um camundongo como eu?

Enquanto estava apagado, flash backs me assombravam com pesadelos intensos e muito reais. Eu sendo arrastado do orfanato; homens de jaleco injetando drogas em mim, e chips sendo implantados no meu cérebro. Minha amiguinha também estava no sonho, mas era muito mais fraca que eu e, ainda assim, submeteram-na aos mesmos treinamentos com jatos d’água, fome, frio e vento. Agora entendo porque ela não resistiu.

Acordei cheio de eletrodos na cabeça e mergulhado em um tipo de banheira de vidro, cheia de um líquido viscoso e avermelhado, semelhante ao agar-ágar. Ainda chorava pela minha colega de orfanato e pelo meu falecido amigo, mesmo sabendo que este podia ter sido uma alucinação de uma pessoa faminta e desesperada por auxílio divino. Porém, ainda que ele fosse só uma ilusão, as palavras sobre uma teoria da conspiração faziam total sentido.

Só conseguia mexer os olhos, mas o ambiente ao redor me dizia que o que vivi nos últimos cinco anos estava bem longe de um Apocalipse zumbi. Vi-me sozinho numa espécie de laboratório super limpo, climatizado e repleto de painéis com luzinhas, que piscavam numa cadência aleatória. Perto de mim, uma tipo de suporte repleto de aparelhos estranhos, que pareciam monitorar até um peido que eu desse. Minha boca também estava obstruída por uma goma saborizada com hortelã, – nada mal – mas eu preferia comida de verdade.

Ouvi o barulho de portas deslizando e vozes conversando a meu respeito. Na medida em que se aproximavam o tom ficava mais baixo, como se não quisessem perturbar meu sono de beleza. Tentei gritar, mas a goma de hortelã estava lá para impedir isso, então gemi o mais alto que pude. Alarmes dispararam ao meu redor, e um bando de homens com jalecos azuis se posicionaram em volta da banheira para checar os monitores. Descobri que estavam me reestruturando naquele gel lotado de sais minerais e outras substâncias. Realmente eu devia estar um lixo depois de tudo pelo que passei, mas nada se comparava ao vapor de ácido derretendo minha pele. – “Malditos!”

- Vejo que acordou. Como está se sentindo? – perguntou um cara de jaleco branco, inclinando-se sobre mim.

Gemi.

- Humm... Isso é muito bom!

Todos balançavam a cabeça positivamente, uns para os outros, com um sorriso nos lábios. Para mim, não passavam daqueles cachorrinhos com pescoço de mola que enfeitavam os painéis dos carros antigos.

“Chega mais perto, seu filho da puta!” Queria dar uma dentada naquele protótipo do professor Doofenshmirtz (Phineas e Ferb – USA/2007).

- Pois bem, meu nome é Doutor Amadeus, e sou o responsável pelo Projeto DARWIN, no qual você se destacou brilhantemente. Talvez você não esteja entendendo nada do que está acontecendo, mas devido ao seu surpreendente desempenho, terá o nosso beneplácito em ser esclarecido, tão logo se recupere desses inconvenientes.

“Beneplácito? Inconvenientes? Do quê esse infeliz tá falando...?”

Ficaram mais algum tempo discutindo dados sobre seus tablets de vidro, e instruindo outros funcionários em jalecos azuis. Esses últimos, permaneceram para ajustar os botões e verificar meus eletrodos. Em pouco tempo, apaguei.

Acordei com o barulho de uma forte explosão, seguida de intensa gritaria. Uma voz ao fundo se destacou. Era o líder da minha matilha, o canibal chefe da gangue, o cara de órbitas pretas e dentes pontiagudos. Pelo que deu a entender, estava sendo resgatado, mas a sensação era de estar entre o Freddy Krueger (A Hora do Pesadelo – USA/1984) e o Chucky (filme – USA/1988). Estremeci.

Para minha sorte, os painéis se apagaram e os dispositivos que me prendiam à banheira high tec também. Pelas minhas contas, já estava há duas semanas naquela espécie de incubadora e devia estar recuperado. Portanto, seria apenas uma questão de destreza e auto domínio, por assim dizer. Arranquei os eletrodos, desvencilhei-me dos ductos e cabos, e deslizei para fora do gel. Estava completamente nu, e até gostei do que vi quando passei por uma parede de aço polido. Eu era outro cara! Bem diferente do ser decadente refletido no espelho quebrado do shopping. Providencialmente, havia um suporte próximo à porta deslizante, com macacões brancos e jalecos de cores variadas. Limpei o restante da gosma que escorria de mim, por todos os lugares, e entrei rapidamente em um dos macacões. Quem pensaria em cuecas numa hora dessas?

O som da balbúrdia estava mais próximo, assim como os gritos desesperados pelas mortes violentas. Alguém do bando gritou que teriam estoque de carne por muito tempo, e isso me apavorou. Mas, agora seria diferente. Não estavam mais lidando com um adolescente franzino e faminto. Tinha assimilado muito e, como o doutor arremedo de deus havia dito, fui brilhante. Escapismo era um de meus atributos.

Peguei uma cadeira, subi em um dos painéis e arranquei a grade do ducto de ventilação, tendo o cuidado de trazê-la para dentro a fim de recolocá-la em seu devido lugar. Ainda havia um pouco de gosma em mim, muito útil para escorregar sobre superfícies lisas. Graças aos deuses de Asgard, uma corrente de ar me indicava a saída, - minha Bifrost. (Marvel Comics – USA).

Estava com muita sorte, o ducto era no andar térreo e pude ver o DeLorean da minha  fuga cercado por corpos ensanguentados e ainda ligado no estacionamento. Bastava aguardar o momento certo e pedir aos céus que o combustível fosse suficiente para me tirar dali. Sim, eu tinha aprendido a dirigir com a gangue.

Um par de horas se passaram e ninguém estava nos meus calcanhares, ao invés disso, os troglos se banqueteavam com a carne bombada dos guardas e a insípida dos doutores. Darwin ia querer anotar isso.

Escorreguei pela parede como um gato, e corri como uma ratazana até o carro. Os painéis ainda estavam acesos, mas a maior parte da gasolina tinha queimado. Estava na reserva, o suficiente para dar o fora. Mas, para onde?

O carro era super silencioso e tinha modo camuflagem. Acho que meu lado humano ainda era bem forte em mim, pois tive certa compaixão pelos inúmeros cadáveres que cruzei - e tive que passar por cima - ao longo do percurso. Para minha surpresa, não estava em minha cidade natal. Segui o rastro de destruição ao contrário, e dei de cara com uma muralha por trás de uma imensa bolha que envolvia minha cidade fantasma, separando-a do resto da civilização que vivia normalmente mais um dia de semana. Alguém da matilha descobriu uma falha estrutural e entraram pelo lado Norte - totalmente oposto a área urbanizada e feliz. No curso das horas, atraíram todas as gangues da região com o cheiro de sangue fresco. Fiquei parado por um bom tempo metabolizando toda aquela informação e pensando no que fazer. Devia ligar o foda-se e ir embora, ou ser o herói do dia? Não estava triste, mas também não estava feliz. Se os troglos chegassem a mesma conclusão, em breve todos estariam mortos ou contaminados pelo vírus. Voltei.

Encontrei alguns agonizantes pelo caminho. Não havia como salvá-los.  Com a arma de um deles, mais uma vez fiz o que achava que devia ser feito, vocês sabem o que,  mas antes, consegui extrair de um guarda a localização do paiol das armas.

Tinham um pouco de tudo. Os caras estavam realmente preparados para uma improvável invasão extraterrestre, mas não para os seus canibais de estimação.  Castigo divino? Talvez, mas os demais não precisavam passar por isso. Eu não ia dormir bem.

O prédio tinha apenas três pavimentos distribuídos em colmeias. Procurei ser rápido e eficiente. Não lembrava onde ou quando tinha aprendido, mas armei com habilidade os dispositivos de C4 em pontos estratégicos. Ia implodir a porra toda e finalizá-los por explosão ou soterramento. Foi o que fiz. Como estávamos a uma distância cautelar da cidade saudável mais próxima, o máximo que devem ter ouvido foi uma explosão de um ducto de gás.

Fiquei ainda alguns minutos, admirando minha obra e esperando a poeira abaixar. Ainda não tinha me dado conta de que tinha estado novamente debaixo do sol até o céu ser tingido de púrpura. Tudo estava bem, até ouvir uma tosse atrás de mim.

- Camundongo... É você? M-mas, como? – perguntei aturdido, quase perdendo o equilíbrio.

Os olhos dela também se arregalaram, e acho que ficaram úmidos a me ver. Não estavam mais pretos, e ela estava divina. Corri para dar o abraço mais demorado da minha vida. Ela estava ali. Minha amiga, minha grande amiga!

- Você não me viu morrer, viu?

- N-não, mas... O guisado indicava que...

- Você está me sufocando... – ela reclamou, empurrando-me com carinho.

Ela sabia o que eu queria saber e foi contando, enquanto eu voltava lentamente para o carro com o braço em torno do seu pescoço. Não iria mais me afastar dela.

- Estava voltando de uma caminhada quando ouvi a explosão. Parecia vinda de um ducto de gás... - “Bingo!” – pensei. - Mas, ao ver a nuvem de poeira, corri o mais rápido que pude pra cá.

- O que fez todo esse tempo? O que aqueles desgraçados fizeram com você...? – perguntei, segurando seus braços de forma protetora.

- Você deve lembrar que fomos tirados do orfanato ainda pequenos, treinados e jogados aos lobos para ver como nos sairíamos, mas apagaram essas lembranças antes disso. Éramos os experimentos mais promissores, e fomos monitorados todo o tempo. Quando perceberam que eu não era talhada para aquele tipo de ação, decidiram nos separar. Enfim, trouxeram-me para cá, fui restaurada, otimizada e devolvida ao comando para ser uma agente Beta. Você, pelo que observei, saiu-se muito bem! Foi bem além das expectativas sob condições tão adversas. Manteve-se íntegro.

Estava tão feliz em revê-la, que ignorei a última parte. Teríamos o resto de nossas vidas para conversar sobre isso em qualquer outro lugar. Contudo, quando abri a porta para que entrasse, ela estancou.

- O que está fazendo? – perguntei surpreso.

- Não vou com você. – informou, com a maior calma do mundo.

- C-como assim? Você só pode estar de sacanagem!

- Já disse. Serei uma agente Beta. Agora sou eu no comando.

- O que tem aqui pra você? Pra nós? – perguntei atônito, sem perceber que ela estava com um dispositivo de comunicação em uma das mãos.

Minha melhor amiga, meu amor de infância, deu alguns passos para trás e se afastou de mim. Isso estava acabando comigo.

- Veja! – insisti, estendendo os braços ao meu redor - Destruí tudo! Acabei com essa merda de conspiração! – berrei orgulhoso.

- Tolinho... Você achou mesmo que esta era a única célula? Isso vem sendo feito há vários anos, e por diversos métodos. Existem milhares iguais a esta espalhadas pelo planeta, selecionando apenas os melhores como eu e você. Uma raça única, forte, sobrevivente e desprovida de sentimentalismos paralisantes. Também avançamos muito no processo de reformulação genética de algumas espécies, e até otimizamos outras. Lembra-se dos ratos com tamanho de gatos no shopping? Pois é... Tive uma ótima ideia ao sugerir a união os dois, não? São sobreviventes natos! Trabalham bem em equipe, escalam qualquer coisa, e passam por qualquer lugar. Ótima fonte proteica para momentos de crise. Precisam apenas de uns pequenos ajustes e...

- Você enlouqueceu? – gritei. – O que fizeram com você...?

Mal acabei de falar, uma nuvem de helicópteros bélicos surgiu levantando muita poeira e se postando bem acima de nós. Foi ensurdecedor. Senti imediatamente a ameaça ejetar meus caninos, dilatar minhas narinas e pupilas. Surpreso, percebi que fui otimizado e estava mais do que pronto para contra atacar. No entanto... O resto do por do sol desaparecia no horizonte, e minhas esperanças com ele.

- Foi você...? – perguntei decepcionado olhando para sua mão, mas minha voz era apenas um fio, e não seria mais ouvida.

- Nunca estive longe de você. Entenda! É tudo por um bem maior! – ela gritava desesperada enquanto eu, arrasado, deixava-me conduzir por novos clones bombados em suas malhas pretas sintéticas e óculos verdes high tec.

Nos últimos vinte anos observo perplexo a população mundial sendo gradativamente reduzida. Focos de guerra, fome, falta d’água, doenças... Tudo fomentado pela alta cúpula do comando. Os que conseguem sobreviver são extraídos por células locais para serem modificados ou otimizados, forjando a criação da super raça, como ela bem havia dito. Seres extremamente capacitados em diversas áreas; sem etnias, emoções e altamente tecnológicos. Tudo em prol da nova ordem mundial.

Nunca mais a vi, só soube que tinha se tornado uma Alpha. Procurei ficar o mais distante possível dela.

Hoje, com trinta e sete anos, observo no espelho um cara super forte, com novas habilidades e alguns nano chips espalhados por todo o corpo. Há muito não me sinto mais eu mesmo. Nunca contei a ninguém, mas volta e meia vejo meu velho amigo do ducto de ar no reflexo, bem atrás de mim. Talvez, o resquício de uma inconveniente sanidade. Há alguns dias, recebi o comunicado de que em breve também serei o Alpha de uma enorme e nova célula de comando, por ordens da chefe. Segundo ela, por um bem ainda maior. O quê devo esperar?

***

Fim

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