Sinopse
Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :DAyodele é uma filha dividida entre a ciência e a cultura, seu ceticismo acaba sendo mais forte, mas as palavras de seu pai também são!
Prólogo
Epílogo
Conto
A figura imponente de Baba Nla, sentado em seu trono depedra, na Grande Sala do templo Orum-Aiyê, sempre impressionou Ayodele.Causava-lhe especial espanto observar como seu amoroso pai transfigurava-senaquele ser intimidante. Nesses momentos, ela sempre mantinha uma posturarespeitosa enquanto os demais sacerdotes cumpriam seus papéis cerimoniais. Masnaquele dia eram só ele e ela.
Com um gesto de cabeça, Baba Nla indicou-lhe o atabaque.Ayodele sobressaltou-se. Havia muito que ela não tocava. O que ele estariapretendendo? Ela sabia que seu pai estava descontente com sua decisão dejuntar-se à Pesquisa. Quando ela o informou de sua decisão, de juntar-se ao“inimigo”, seu pai retirou-se e não conversaram mais desde então. E hoje, ele aconvocou. Não como pai, mas como Baba Nla. Ela estava com medo.
Dirigiu-se ao atabaque, sentindo-se inadequada com suasroupas modernas. Olhou para seu pai. Em vão. Quem olhou de volta foi o Baba Nlae seu olhar implacável ordenou que tocasse. Pousou sua mão sobre o instrumentoe sentiu como se as vestes cerimoniais brancas e leves se materializassem sobrea perfeita pele negra. E tocou todos os pontos, sem pensar, sentindo-se livre,a vida do mundo passando por seus braços, suas mãos e sua voz honrando asforças da natureza e o mundo visível e invisível. O Orum e o Aiyê. Quandoparou, sentou-se diante de Baba Nla.
- Seu caminho volta para sua origem.
- Pai..
- Aqui, agora, não sou seu pai.
- Eu quero falar com meu pai.
- Pai? Aquele que você abandonou?
- Eu...
- Quando eu terminar o que deve ser dito, seu pai estaráaqui. Por ora, saiba que você tem um papel a cumprir, muito maior do queimagina. Ouça, observe, sobrepuje a dor e quando ouvir o atabaque, siga opássaro.
Ele fechou os olhos e, quando os abriu, era somente Dayo,seu pai.
- Perdoe, pai. Mas eu não tenho a fé necessária para ser suasucessora. Terá que ser outro.
- Não há outro, filha.
- Mas, e Lekan? Yeji?
- Nenhum deles está pronto, nem estará a tempo. É você quedeve assumir minha jornada e ser a nova Iya Nla.
- Não posso. Sou uma cientista. Perdão, mas preciso partir.Eu te amo, pai. Adeus.
E saiu correndo em direção a sua nova vida, sem olhar umaúltima vez para seu pai. Quando entrasse na Pesquisa, aquele seria seu novolar.
Ela entendia a preocupação de seu pai. Em 10 dias, elecompletaria 50 anos e se tornaria um Salvador: entregaria o próprio corpo paraa Pesquisa e um outro jovem assumiria sua trajetória. Chamavam isso de A Troca.Ele, naturalmente, a escolhera. Mas, apesar de seus dons naturais, era cética.
Seu pai tentou despertar nela, desde cedo, a fé. Contava-lhehistórias da Terra Ancestral, a Mãe África. Histórias dos orixás, de Olodumaré,e também da Criança e da Chuva. De como a Criança, protegida de Oxóssi,distribuía a fartura. De sua pele negra como a noite mais escura, seus olhos,brilhantes como estrelas negras e de seu nascimento na noite da Grande Chuva daMorte, a qual sobreviveu. E de como seu sacrifício apaziguou Oxumaré e tornou achuva abençoada novamente. Mas algo nessa história não fazia sentido e aciência a chamava com mais força.
Seu começo na Pesquisa foi empolgante. De sua mesa, erapossível ver, pela janela, a chegada dos Salvadores, em festa, despedindo-se desuas famílias adentrando a Pesquisa, felizes. Até o dia em que viu seu paichegando para a Troca. Ele chegou sozinho, parecendo triste e olhou diretamentepara ela, como se pudesse vê-la através da janela espelhada. Somente naquelemomento, Ayodele percebeu que os Salvadores iam lá para morrer. Sentiu-se estranha,em choque, por não ter percebido algo tão óbvio. Chorou por seu pai, emsilêncio e, em segredo, recitou as preces por seu espírito.
Um dia, enquanto arquivava documentos, ouviu alto e forte umatabaque e seu coração pulou. Sobre o armário, um uirapuru.
“Quando ouvir o atabaque, siga o pássaro”.
E ela o seguiu, em direção à área restrita, passando por umaporta entreaberta e chegando a uma sala que nunca vira antes, cheia de arquivosde memórias. Acessou uma delas, aleatoriamente, e outra e mais outra. Eramtodos de líderes da Autoridade. E então soube de toda a história sórdida. AChuva foi causada pela Autoridade. Uma chuva radioativa para promover uma“limpeza” étnica. Mas algo deu errado. Nem todos morreram e a natureza não foiatingida. A Criança sobreviveu. Precisavam descobrir o porquê. Como oshabitantes se opusessem às pesquisas com a Criança, forjaram sua morte ecessaram a chuva radioativa para alimentar a mística ao redor da Criança. E,enquanto o Culto florescia, prosseguiram com suas pesquisas.
A Criança era invulnerável e parecia imortal. As pesquisaslevantaram mais perguntas do que respostas e resolveram mudar as leis paracriar a Troca e poder pesquisar livremente as pessoas. Queriam replicar emoutro humano as características milagrosas da Criança. Aquilo era monstruoso.
Após acessar todas as memórias, ela não descobriu o que foifeito da Criança. Devem ter guardado material genético dela, já que aspesquisas prosseguiam. O uirapuru pousou em seu ombro. Era hora de ir. Mas, aoentrar no elevador, percebeu que ele não foi para seu andar, como esperado. Eladesceu para o subsolo 10, sem saber como, já que este andar nem aparecia comoopção. A porta abriu e ela desceu, hesitante.
- Ayodele, que bom que você veio. Esperei por muito tempo.
Diante dela, dentro de uma redoma de vidro grosso, estava ummenino, de uns 10 anos. A pele mais negra que ela jamais vira. Os olhos, maisbrilhantes que estrelas. A voz, de anjo.
- Você... A Criança?
- Sim, assim me chamam.
Ayodele caiu de joelhos e chorou.
- Meu pai...
- Era um homem bom esábio.
- Ninguém sabe a verdade.
- Sim. E isto é errado.
- Por que você não impede?
- Não consigo sair. Preciso de você.
- De mim? Como?
- De sua essência, de sua memória de liberdade.
Liberdade? E ela lembrou-se das histórias que seu paicontava da Mãe África, do atabaque e da força da vida correndo por seus braços.
Batendo as mãos sobre o vidro, soltou a voz e cantou anatureza, a chuva, honrou Oxóssi, mãe Oxum, Ogum, Iansã, Xangô, e todos mais. Ovidro se rompeu, sem som, os cacos flutuando junto dela e da Criança. Seucoração livre da dor se sentiu fundir com A Criança, com o universo.
No dia seguinte, só se falava na terrível explosão naPesquisa e de como, estranhamente, não havia escombros nem corpos, apenas umaimensa cratera e uma única sala, cheia de arquivos de memórias, intacta.
Toda a Amanaram estava indo para lá, ver com os própriosolhos. Mas, desistiram a meio caminho por conta de uma maravilha ainda maior. OTemplo Orum-Ayiê estava com suas grandes portas abertas. Todos os sacerdotes einiciados tocavam e dançavam. No grande trono de pedra, estava a nova Iya Nla,tão parecida com Ayodele, a filha do Baba Nla. Mas seria ela mesmo? Estavadiferente, parecia mais jovem e sua pele era a pele mais negra que já haviamvisto e seus olhos, que pareciam estrelas, tinham a sabedoria dos séculos.