Prólogo
Epílogo
Conto
Hospedou-se, como bom giramundo, na velha estação ferroviária desativada do centro da cidade.
Fazia um frio polar e o saguão de mármore mantinha-se aquecido graças a algum artifício arquitetônico.
Desenrolou o saco de dormir, o pôs no meio do salão e deitou-se sob o céu de afrescos iluminados por spots públicos.
Em um deles, um austero senhor idoso parecia fitá-lo com olhos vívidos e inquisidores. Tinha nas mãos uma lanterna a óleo usada pelos agentes de plataforma do século passado.
No plano de fundo com cores da madrugada, pessoas de semblante tristonho seguiam-no. O rosto familiar de uma passageira de vestido vermelho o fez viajar em reminiscências.
Os dosséis da abóbada animaram-se, convertendo-se em nuvens de fumo de jasmim. Uma mariposa vermelha, que voava entre centena de outras de cor marrom, pousou no seu rosto com a carícia de lábios que evocaram um nome escrito em cada um de seus poros: Lúcia.
Ondas de prazer e dor fizeram seu corpo vibrar na mesma amplitude da nuvem. Na outra dimensão, ela deixou que lhe sorvesse o pescoço, os seios, a vulva e o âmago até fundirem-se num estado de gozo e inconsciência.
A enorme porta da entrada rangendo, uma rajada de vento frio e o som de passageiros entrando no saguão o acordaram de sobressalto, fazendo-lhe enrolar o saco de dormir num impulso.
O vazio e o silêncio teriam lhe jogado em um novo estado depressivo se um bilhete de passagem, grudado no suor da testa, não tivesse lhe mostrado algo estranho: estava pago, tinha o seu nome e indicava que deveria viajar em uma linha que partiria daquela estação às três da manhã.
Um trecho da Marcha Fúnebre de Chopin soou três vezes, no imenso relógio do saguão, como prelúdio para o apito do trem, os anúncios do agente e o vozerio dos passageiros na plataforma onde vários e velhos conhecidos, que haviam desaparecido nas ruas, formavam a fila dos que embarcavam.
O velho de olhos vívidos e inquisidores iluminava os rostos e as passagens dos que entravam no vagão 1920 com a lanterna a óleo. Fez sinal para que ele se aproximasse, examinou o bilhete, fitou-lhe e disse:
— Ainda não há data. Aproveite sua estadia na última cidade.
Fechando a porta do vagão, apitou e gritou o conhecido comando:
— Todos a bordo. Todos a bordo.
O maquinista soou a buzina e o trem partiu pela linha que findava, após alguns quilômetros, numa mureta de bloqueio cujos faróis vermelhos lampejavam no breu.
Apesar dos seus acenos e gritos, o trem seguiu, aumentando a velocidade, até atravessar o concreto como a luz da lua atravessava a neblina.
As luzes acenderam subitamente. Os passageiros que ele vira partir, sentados nos bancos ao longo da plataforma, seguravam os bilhetes com a firmeza dos cadáveres.
A tétrica disposição padronizada daqueles corpos, sem roupa, sem pele e olhando para o horizonte de uma linha desativada, formava uma lúgubre instalação finalizada com uma passagem bíblica escrita no chão: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei”.
Uma fraqueza repentina lhe roubou os sentidos e as forças até acordar, meses depois, no hospital da penitenciária estadual, assistido pelos olhos da amada crisálida que ele libertara.
— Vamos, meu amor. Você cumpriu sua pena. Não percamos mais tempo aqui.
Sobre o criado-mudo, o bilhete estava completo e tinha o desejo de boa viagem da empresa: primeiro de setembro de 2020, três horas da manhã – Requiescat in pace.
O atestado de óbito de mesma data e horário indicava que João esfolador, artista plástico e famoso serial killer, morrera de causa desconhecida “com um sereno sorriso de uma criança”.