Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em

Sinopse

Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :D

Caiu como um raio, um mau humor súbito e justificado, não acredito que morreu, indignava-se, não acredito.

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Monarca
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Caiu como um raio, um mau humor súbito e justificado, não acredito que morreu, indignava-se, não acredito. O plano por água abaixo, a quase realização, vontade interceptada, tanto tempo no bom trato, dissimulando, para o filho da puta subir assim, tranquilo. O mais maldito dos homens, morrer dormindo, vingança não expressada, o cancro entalado, em quem descarregar?

Valia descontar nos parentes? Um filho, uma irmã, a mãe do condenado, absolvido pelo acaso de um infarto? Não podia respingar o troco em terceiros, apesar da vista grossa ao longo de todos esses anos, do mesmo sangue correndo nas veias, deles e dela. Sim, dela, um tio distante, parente de não sei quem lá, não sei que grau, mas parente, próximo, próximo demais, grudento, melado, ela acometida pela camisa desabotoando do umbigo para baixo, constantemente, do zíper asqueroso, as mãos de barata. Os registros na memória, entalhados a força de ferro, sem esmero artesão, acha que esqueceu? Ruídos aflitivos, manchas no tecido da lembrança, ora vermelhas, ora leitosas, ora salgadas. Filho da puta, morreu dormindo, murcho e seco.

Esse murchar foi um caminho sem volta, de velho coitado, segundo os parentes. Ela alvoreceu com os anos, antítese a mediocridade do monstro. Conforme aflorava, entendia o que passou, nomeava o asco que sentia do tio: ódio. Cultivava o desejo de morte, primeiramente, depois o de matar, matar pela cara de leso, falso inocente, cara de peixe morto, ingênuo, pela faísca nos olhos semicerrados quando ela atravessava a sala. A invadia inteira com um olhar monárquico, recaído sobre terras que lhe pertenceram indignamente. Nenhum rei tem o direito de ser rei. O velho não ousava abrir a boca, a família suspeitava e ignorava na mesma medida. Ela entendia e aguardava.

Até que ele calou de vez, veio o derrame; castigo divino? Pouco, era pouco. Queria ajuda do cão pra capar a bimbinha do tio, vender a alma pelo direito de enviar a dele para o inferno. Deus já estava esquecido nas quinas obscuras dos abusos. Não tinha providência nesse acaso. Era só isso mesmo, um acaso, assim como a morte por enfarto não era um livramento de seus intentos. O derrame afetou a fala do velho, mas parecia entender ainda alguma coisa, piscava com aprovação ou desaprovação, mudo. O olhar monárquico intocável.

Quantas vezes não desejou cessá-lo com um tapa, nos aniversários ou churrascos onde ele a espiava descarado na cadeira de rodas, a mão sobre o órgão falido. Um tapa público, muito pouco. Considerava assunto pessoal, vingança íntima. Devia ter agarrado uma chance, ido ao encontro do tio e sussurrado em seu ouvido, eu lembro de tudo o que você fez, seu velho brocha, e vou descontar pouco a pouco, tá me entendendo? Vou me oferecer pra cuidar de você nos últimos dias, logo acaba o curso de enfermagem. Por que não eu, alguém da família, com vontade, jovem, de confiança? Sim, eu mesma, vou te envenenar aos poucos, arrancar uma a uma as unhas dos seus pés, te dar comida azeda, enfiar o cabo de vassoura no teu rabo, tá me entendendo?

Um risco de água cedeu por baixo dos óculos escuros, absorvido pelo pretume do vestido. Frustração, auto penitência, passa cada coisa na cabeça numa hora dessas.

O acaso o levou antes de qualquer chance. Levou dormindo, assim como morrem os ditadores apátridas, dormindo, cinicamente aminéticos, impunes. Espero que tenha visto o demônio quando arregalou os olhos alucinados na escuridão, a garfada no peito. Que o demônio tivesse a minha cara.

Vai começar, alguém informou, a cerimônia, a encontrando num banco afastado do salão. Sinalizou com a cabeça um sim. Felizmente ninguém pergunta se está tudo bem no velório, dá pra chorar à vontade, ainda que de ódio. O evento no fim, os parentes pingados como tinta preta na água, dispersos no saguão, bocejantes, a casca do tio no meio, caixão aberto, semblante tranquilo, em desafio. Mal rondou o corpo durante a vigília, tão perto de acabar, o asco mais repelente ia perdendo o sentido. Acanhou um passo diagonal em direção ao corpo, um primo qualquer ocupou a vista, num abraço, tardando a marcha, proferiu algumas palavras louvando o tio, das quais ela ouviu e dissimulou em favor de sua grandeza, de sua vontade de vida, mesmo mudo, limitado. O primo um tonto. A visão periférica ainda no caixão, quem preparou o corpo? Quem escolheu o terno, as flores, quem ajeitou o rosto transfigurado, quem esqueceu de lacrar os olhos definitivamente? Pareciam, do ângulo oblíquo de cima do ombro do primo, semicerrados.

Saiu brusca do abraço, alterando a rota desbaratinada, amanhecia, o pastor havia atrasado, mais tempo naquele inferno, rompeu em choro compulsivo, “gostava tanto assim do tio?”, estranharam os parentes, o primo sem entender. Só lágrimas, caindo em gotas espessas amaldiçoando o solo que cobriria seu algoz, segredo não dito. Só isso? O soluço variava, louco e dolorido, transmutado em urro, traduziu-se em força.

O ombro armado bateu na madeira como um tanque, o caixão oscilou perigando queda. Antes dos parentes horrorizados intervirem, ela empurrou o defunto, munida de agudo grito, “cretino!”, o corpo estatelou ridículo, honesto com a índole em vida. Arfava, menos insatisfeita, a avó passando mal, a mãe constrangida, o primo pasmo, o conhecimento dos motivos da cólera inibia os demais de qualquer reprimenda. Cuspiu no cadáver, desimpedida, chutou as costelas como a um saco de lixo, um monte de merda, e o barulho do baque sepulcrou qualquer reação da plateia. O morto no chão, saciada, partiu batendo os saltos sob a luz tímida da alvorada.

O zelador chegou para avisar que o pastor já esperava no local de enterro, junto do coveiro, e diante da cena incomum, o caixão tombado, flores despedaçadas, o morto empertigado pelo primo, lhe responderam, foi um acidente, só um acidente.

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