Prólogo
Epílogo
Conto
“Call of nature…”
The company of wolves
Era uma vez, uma vila distante e pacata, como toda vila de história. Ao redor dela, existia uma floresta cujas árvores tocavam o céu. Nada era próximo e tudo era difícil. Existia apenas uma estrada de acesso para esse humilde lugar.
Nessa vila, existia uma menina cuja alma não havia ainda sido tocada pela maldade do mundo. Morava com sua mãe. Não conhecia seu pai. Também não se preocupava e sequer tinha curiosidade em conhecê-lo ou saber o que fazia da vida. E sua mãe, por sua vez, nunca teve vontade de lhe dizer. Só tinha no mundo a mãe e a avó. A segunda, nos últimos meses, se encontrava um tanto quanto doente. Um mal inominável que consistia em uma misteriosa e infalível febre, que repetidamente a atacava por seis horas seguidas após às 6 da tarde, todos os dias. Isso, sem contar as crises que a deixavam acamada por vários dias.
Por esse motivo, todos os dias, a menina ia levar broas, frutas e algumas guloseimas para a velha senhora. Como já possuía o costume de sair sozinha, a mãe não se preocupou quando disse a jovem que fosse sempre pela estrada e não conversasse com estranhos. Sabia ela que a filha, apesar de haver saído da infância há poucos anos, era muito responsável.
A garota arrumou-se, colocou seu delicado capuz escarlate e saiu despreocupadamente de casa, levando sua cesta.
A casa da avó era isolada. Seria necessário atravessar a única estrada de terra e que passava por dentro do bosque para chegar até lá.
A garota ia calmamente adentrando a floresta, olhando as flores e as borboletas que passeavam pela trilha.
As casas em seu caminho iam se tornando mais escassas.
Encostado em uma árvore, como se estivesse conversando com ela, Lobo dirigiu a palavra à mocinha.
— O que uma garota tão linda está pensando em fazer numa floresta tão assustadora?
— Eu só vou visitar minha avó doente, seu Lobo — respondeu a menina em tom meigo, sem hesitar.
Lobo aparentava estar na casa dos 40 anos, usava um casaco xadrez desbotado e entreaberto, calça jeans, botas. Olhava a menina de maneira paternal. Ela se lembrava que, todas as vezes que sua mãe ouvia o nome Lobo, tremia de nervosismo e deixava o que estivesse em suas mãos ir ao chão. Ela havia feito a menina prometer que não mais falaria com ele, no entanto, ele era tão educado e preocupado com ela, que a menina não conseguia ficar sem responder as palavras que ele lhe dirigia. Era como o pai que não tinha, mesmo que a mãe desaprovasse.
— Cuidado nestas trilhas, pequena! Eu não gostaria que nada de ruim acontecesse com a minha predileta — disse ele, acariciando o capuz que estava sobre a cabeça da menina.
— Não se preocupe, seu Lobo. Eu sempre tomo muito cuidado. Tchau!
— Tchau, minha pequena — disse, enquanto a garota se afastava.
De repente, como se nunca houvesse estado ali, ele simplesmente desapareceu por entre as árvores.
A menina passeava no caminho de terra tranquila e sem se preocupar com o tempo. As árvores com suas folhas verdes como nunca. O cheiro das flores. Os sons do mato. Divertiu-se horas com um rato branco que por ali procurava comida. Estava tão distraída que, quando se deu conta, notou que o sol já estava se pondo. Podia ver a sombra da lua cheia começar a surgir no céu. Despediu-se do amiguinho e correu pelo caminho. Não olhou para trás nenhum momento, senão veria que o rato estava, naquele instante, sendo devorado por um gato que por ali passava. Mas essa é outra fábula.
Enquanto isso, a avó da menina distraía-se com o tricô. Era um dos poucos momentos do dia em que tinha forças para fazer algo.
A centenária mulher já havia escapado de quase tudo que se pode imaginar. Desde as guerras mais banais até uma epidemia de cólera. Era irônico estar quase à beira da morte por causa de uma simples febre. Contudo, nos momentos em que tricotava, esquecia-se de tudo mais. Encontrava-se tão entretida que, por pouco, não ouviu as batidas em sua porta. A pessoa do outro lado parecia tranquila e certa de que ela estava em casa.
— Quem é? — perguntou a anciã.
— Sou eu vó, o Lobo — disse a pessoa do outro lado.
— Pode entrar, meu filho. É só levantar a aldraba que o ferrolho desce. — Assim ele fez e entrou na humilde casa.
Lobo possuía o olhar turvo, como que envolto em trevas, mas ainda mantinha os gestos educados de costume. Em suas mãos uma espingarda.
— Me disseram que estava doente, vó. Fiquei preocupado.
— Ah, meu filho! Não precisava. Para nós velhos, um espirro quer dizer pneumonia.
— Tem uma besta solta por aí. A senhora tem de tomar cuidado.
— Não precisa se preocupar comigo, meu filho.
— O sol já este se pondo, vó... A menina vem para cá. Eu a encontrei no início do bosque.
— Então, meu filho, é melhor que você vá embora.
— Por que, vó? Que crime existe em eu e ela nos encontrarmos?
— Não se faça de desentendido, filho. Ela é muito nova para conhecer a verdade.
— Crianças são embaladas num mundo de ilusão... — murmurou derrotado.
— Por favor, filho... você sabia das condições.
— Saber é o que mais faz doer.
— Então eu lhe imploro, vá de uma vez — disse a velha em tom mais de ordem que de pedido.
— O sol já está se pondo... já posso até ver a lua... — disse Lobo, quase como se não houvesse escutado nada do que fora dito pela anciã. Estava de costas para ela, olhando a janela. Sua voz era estranhamente rouca.
— Lobo, vá embora de uma vez — disse ela, agora em tom grave.
Lobo silenciosamente virou-se para a senhora, caminhou até sua cama. Uma penumbra tomava conta de seus olhos. Ficou cabisbaixo ao lado dela.
— Adeus, vó — disse enquanto punha dois dedos sobre a boca da senhora. — Perdão... a besta foi mais forte que eu... — Num rápido movimento, antes que ela pudesse perceber, toda a mão peluda dele estava sobre seu rosto.
O dia já estava quase no fim quando a menina chegou na casa da avó. Sentiu um pouco de preocupação pelo fato de haver dividido um dos bolinhos que a mãe fizera para a avó com seu amigo roedor. Contudo, sabia que a avó era muito compreensiva e não se preocuparia com tal pequeno fato. Talvez nem percebesse. Ainda assim, contaria para a avó a verdade, pois ela e sua mãe assim haviam ensinado. Sempre dizer a verdade, não importando qual fosse ela. “É melhor conviver com uma triste verdade, do que com uma alegre mentira”, a mãe dizia sempre.
Chegou em frente à porta e bateu delicadamente. Ouviu uma voz rouca e baixa dizendo:
— Quem é?
— Sou eu, vovó! — respondeu alegremente.
— Entre, minha filha. É só levantar a aldraba que o ferrolho desce — disse a voz, quase um murmúrio.
Na sala mal iluminada, entrou a menina sem se preocupar. Uma figura ofegante jazia deitada na cama, num canto mais escuro da sala.
— Vovó, por que está num lugar tão escuro? — perguntou a menina.
— É porque a luz do sol me incomoda. Por favor, minha menina, deixe a cortina fechada.
— Vovó, sua voz está tão rouca! A senhora se sente pior?
— Não querida... é o ar da noite que me deixa assim...
— Vovó, e seus olhos? Estão tão amarelos!
— É o luar que faz ficar assim! — disse o vulto revelando-se Lobo.
— Se-seu Lobo? O que está acontecendo? Por que o senhor está assim? Cadê minha vó? — disse a menina, petrificada de espanto e medo.
— Em um lugar bem melhor — disse ele, limpando o sangue que escorria de sua boca.
Como se descrever um instante? Um gesto único que faz a diferença entre a vida e a morte? Sabe-se lá por que intromissão do acaso, a garota, ao encostar na parede, acuada de pavor, encontrou em suas mãos a velha espingarda do Lobo.
Foi necessário apenas um tiro para que Lobo, que havia se lançado em um único salto para cima da menina, caísse agonizando no chão com o ombro ensanguentado. Nesse instante, em mais nada a pensar, tampouco olhando para trás, a garota correu para um armário que existia no canto do cômodo. O armário era velho, mas, ainda assim, parecia ser muito resistente. Era embutido na parede. A menina trancou-se ali e ficou a observar, pelo buraco da fechadura o que ocorria.
Talvez a coisa mais insensata que fizera até aquele dia.
Viu o educado e prestativo Lobo se contorcer de dor no chão da casa da avó. Ficou preocupada com ele, afinal, levara um tiro dado por ela. Quando decidiu sair do armário para ajudá-lo, ouviu apenas um pedido de perdão e viu o corpo do homem que tinha quase como um pai crescer, aumentar, rasgar as roupas, encher-se de pelos. O terror apoderou-se dela e nada pode fazer a não ser olhar, pois, naquele momento, o amável Lobo havia se tornado uma fera de pelo cinzento, caninos afiados e enormes olhos amarelos a lhe fitar também.
Amanhecer. A mãe da pequena já estava mais do que preocupada. A menina nunca demorara tanto na casa da avó. Algo com certeza acontecera. Não sabia o quê. Quando por fim decidiu ir ao encalço da filha, ouviu as batidas na porta. Rapidamente foi abri-la, esperando que fosse a sua menina. Não era. Lobo estava rasgado, ensanguentado e sua fisionomia era a de alguém que passou a noite brigando com fantasmas.
— Elas estão mortas... — foi o que disse de cabeça baixa para a mulher.
— Não... — As lágrimas começaram a rolar pelo rosto dela.
— Perdão... — murmurou Lobo. — ... eu deveria ter escutado o que disse a vó. Mas agora, as duas estão mortas... e eu sou o assassino.
A mulher não sabia como agir. Fez talvez aquilo que julgava não ser o mais sensato, mas o mais humano. Abraçar o homem amargurado à sua frente, como uma mãe faz com um filho que brigou na escola. Ajoelharam. Ele, com a cabeça em seu colo, murmurou palavras intermináveis.
— Eu a matei... meu amor... eu matei nossa filha.
Ela, resignada em seu silêncio, apenas acariciava os cabelos do amado, como se dissesse: “Eu te perdoo.”
Som algum fora proferido depois. Ficaram em silêncio ambos. Unidos pela solidão e pela tragédia. Mas mais que isso, unidos por um amor animal. Como uma matilha a chorar a morte de seu único filhote.