Prólogo
Epílogo
Conto
A mulher, cansada, fecha a janela e põe o casaco de lã que sua avó lhe deu. Retira a chaleira do fogão e derrama toda a água quente em uma xícara de duas alças. Aproveita para refletir sobre a escrita de seu novo poema. “Modesta”, pensa. “Demasiado modesta.” O que poderia fazer para torná-la vigorosa? Não que houvesse problemas em se compor um poema de escrita modesta, mas há de se questionar a autenticidade do mesmo, não? É verdade que muitos poetas hoje em dia não vêm mais se importando com a paixão. Escrevem por um método, por uma forma mecânica de vender o que é escrito. Sentimentos tornaram-se produtos. Anabel respira fundo e, percebendo que não estava chegando a um lugar novo com sua linha de raciocínio, decide tomar um ar fresco. Ou melhor, um ar frio mesmo. Seja como for, ela termina o chá, recolhe o chaveiro cheio e sai de casa depressa, como alguém que precisa fugir dos próprios problemas. Fecha a porta e gira a chave para trancá-la.
Fica por alguns minutos parada de frente para o seu quintal, observando a rua deserta e livre daquela miséria de anos atrás. Sorri. Desce os dois degraus de madeira em direção à calçada, e um vento gelado faz todo o seu corpo arrepiar. Para uma manhã de primavera, estranha a sensação de se arrepiar. A caminho do mercado, volta ao seu embate filosófico sobre poetas e o mundo contemporâneo. A rotina é o assunto mais discutido entre eles: a capacidade de escrever todos os dias, em horas exatas, em tempos exatos. Anabel achava tudo isso um absurdo. Como podia alguém pôr sentimentos no papel em tempos exatos? “12 minutos para um poema de 36 versos”, mas que estupidez! Encontra Guilherme no mercado e leva um susto.
O pequeno Gui está com uma perna robótica — ou melhor, uma estrutura óssea robótica. Anabel não consegue entender muito bem, mas vê aquilo sob a pele fina do garoto. É capaz de enxergar ainda pequenas luzes saindo da maquinaria que se entranha na perninha esquerda do rapaz. E, involuntariamente, aponta para ela, os olhos arregalados, a boca se abrindo numa expressão de: “Oh!” O menino não entende e move a cabeça para o lado. A maquinaria então some e a mulher vê pura pele, mais nada. Uma perna normal. O quê?
— Tia Bel, tá tudo bem? — O rapaz pergunta.
Ela se recupera e, piscando sem parar, responde afirmativamente. O menino abre um sorriso amarelo e retorna correndo à mão da mãe, Tereza, que carrega em sua outra uma cesta pesada de comida, e encara a mulher com uma expressão fechada. Anabel sabe que tipo de poeta Tereza é. Daquelas metódicas e rotineiras, ela sabe. Daquelas que se nomeiam “poetisa”, que se inferiorizam, que se entendem menor por serem... mulheres. Mas não pode julgá-la. O mundo em que as duas vivem as influenciam a ter esse tipo de atitude. Ter sentimentos autênticos seria ir longe demais.
Despede-se, olha para o outro lado, abatida, pega uma cesta e vai até o departamento de doces. Está cheio, como de costume.
Entra na fila e aguarda. Começa a observar as pessoas e suas expressões — adora fazer isso quando precisa aguardar. Estranha. Todos, por um segundo, num vislumbre, estão com partes mecânicas substituindo seus ossos — e, alguns, até seus órgãos! Anabel vê um senhor com uma caixa de metal e tubos no lugar do coração. Uma jovem alta com a coluna curvada em vértebras que lembravam polias com discos de metal entre elas, movimentando-se e tudo. Um pequeno bebê com os pezinhos dentro das meias substituídos por pés mecânicos com luzes coloridas. O segundo se passa e todos voltam ao normal. Será que esteve bebendo chá demais? Ela não se lembra de ter posto nada alucinógeno dessa vez.
— Quais doces a senhora quer?
— O quê? — Desperta. A fila já andara. Que tempo estranho tem sido. — Ah, dois chocolates belgas e um pacote de jujubas, por favor.
A atendente os entrega e Anabel agradece. Vê por um momento os olhos dela se movendo como lentes de vidro ou metal, como se fossem robóticos ou sei- lá-o-quê. Fica cada vez mais assustada. Será que está ficando louca?
— 13 listras, senhora. — Ela paga.
Volta a pensar sobre os poetas. Anda obcecada por eles, não de uma forma tão boa. Lembra-se de uma palavra que sempre costumam usar: META. Cada letra maiúscula para representar algo ainda mais grandioso do que queriam que fosse. Imagine só, escrever poemas com meta. Colocar poesia no papel e esperar que o tempo perdurado para isso seja preciso e imutável. Não dá.
Sai do mercado sem saber para onde ir. “Aonde devo distrair minha mente com açúcar mercantil?”, pensa. Olha ao redor. O asfalto fendido faz lembrar rachaduras de um forte terremoto. E o frio só agrava a sensação de estar no meio de um grande conflito. As pessoas andam para lá e para cá, as perninhas em ação, as cabeças ao chão... Anabel olha para cima. Parece que vai chover. Começa a caminhar sem destino, para qualquer lugar em que pudesse se proteger da garoa e pensar um pouco melhor.
Uma cafeteria surge como primeira opção. Ela entra, contente.
— Bom dia! – A atendente é simpática, o que torna tudo ainda mais precioso. Esses pequenos gestos e momentos, não sabem todos o quanto estão a deixá-los se esvair de suas grandiosas mãos. Responde a saudação e surpreende a atendente com um abraço.
Riem, como velhas amigas. Nunca se viram na vida. “É assim que poetas deviam ser”, pensa. “Inesperadas.”
— O que a senhora vai querer? — Ela pergunta, agora empolgada.
— Um mesclado doce, por favor. Mais leite que café. E bastante açúcar!
A mulher anota o pedido e por um momento os ossos dos dedos de suas mãos parecem magríssimas vigas de metal, saindo delas ruídos arranhados, enquanto movem a caneta no minúsculo caderno. Anabel se espanta e suspira para dentro.
— Moça, está tudo bem?
— Seus dedos... — Anabel aponta, mas é claro que já haviam voltado ao normal.
— O que tem eles? — A atendente parece estar realmente preocupada, ora olhando para suas mãos, ora para a expressão de horror da poeta, que se senta.
— Deixe, deixe. Estou um pouco esquisita hoje, não é nada. — Sorri.
E não é assim que poetas deveriam mesmo ser, esquisitas? Como falar do mundo de outro modo sem enxergá-lo de outro modo? O mundo é um só, mas visto de formas infindáveis. Infindáveis e, por vezes, esquisitas. O mesclado chega. Ela abre o pacote de jujubas e deixa o chocolate para depois. Tem o hábito de deixar sempre o melhor para depois, mas às vezes se questiona: e se o “depois” eventualmente for um “tarde demais”? Outro susto, dessa vez de uma trovoada, contudo a água ainda não despenca do céu.
Come, bebe e sem saber a razão se lembra do pequeno Gui, filho de Tereza. Como será viver sendo filho de quem estabelece metas para escrever poesia? Seriam também estabelecidas metas para cada passo e evolução que o menino dá? Ir à escola com o fim programado de passar de ano. Ou será com o genuíno fim de aprender? O que será que se passa na mente dele? E na de Tereza? Programam-se os fins sem entender as vontades?
Anabel não discorda, no entanto, da maior dica que os poetas sistemáticos têm na ponta de suas línguas. “A técnica suprema”, alguns dizem. Era uma resposta pronta, ela sabe, mas não deixa de conter seu sentido: Ler. Para Anabel, foi importante ler. Foi com a leitura das poesias que conheceu, transcreveu, transformou e finalmente se tornou a poeta que é hoje em dia. Não que ela seja isso tudo, mas já é alguém. Alguém que pensa, reflete, critica, escreve sua própria poesia sem amarras... e é então que percebe.
É isso que a tem inconformado o dia todo, portanto é sobre isso que deveria escrever. Sobre as poetas metódicas. É claro. Decide de súbito voltar para casa; tem finalmente um conceito para aprimorar o seu poema.
Ela larga as jujubas, o mesclado bebericado e até mesmo o chocolate, e se põe a correr, antes que a ideia se esvaísse. Antes que fosse tarde demais. Entende agora o porquê de ter visto as peças mecânicas implantadas nas pessoas: eram metáforas! As pernas de Anabel, contrárias à sua mente, já se cansam ao chegar em casa e os chuviscos começam a cair pesados, seguidos de alguns trovões. Sua mente esteve tentando revelar como todos são parte alguém, parte máquina — como não percebeu antes? Ela esteve tentando revelar como todos são na verdade maquinarias orgânicas vivendo para o produto, vivendo pelas listras a serem pagas.
Só que... nós não podemos impedir isso, podemos? Uma trovoada mais forte dessa vez. Ela sobe as escadas do quintal correndo e roda a chave em sua fechadura, a ideia para o poema já estava desaparecendo. De uma forma ou de outra, todos seremos máquinas orgânicas neste mundo desesperado, não? Abre a porta e acelera ainda mais o passo, indo até o seu escritório. Depara-se com uma imagem assustadora na porta de seu armário. Alguém invadira a sua casa! Uma pessoa pior que todas as outras. Ela solta um grito. As vigas de metal em todo o corpo, nos dedos, nos braços, nas pernas, com luzes piscando nas mais diversas cores. Lá estava: a essência de cada máquina, atuando como engrenagens por dentro de toda uma outra pele. O coração, uma pequena caixa de metal palpitando, vermelha. Os olhos biônicos pareciam questionar a própria veracidade de seu ser.
Anabel percebe que se vê refletida em seu espelho.