Prólogo
Epílogo
Conto
Seus olhos logo viram a árvore que, pelo que sabia, dava nome aquele pequeno vilarejo. Era um final de tarde e o vento batia de forma suave fazendo algumas flores se soltarem da árvore e caírem no chão. Ao redor do tronco da planta havia um tapete rosado formado pelas pétalas das flores da cerejeira. O tronco da árvore era recurvado e parecia de alguma forma querer dizer que estava plantado naquele solo há muito tempo e mesmo com o passar dos anos ainda se manteria naquele lugar. Era uma cena muito bonita de ser apreciada, porém Akemi sabia que tinha que ficar de olhos bem abertos, pois a beleza era um bom disfarce para o perigo.
Estava tão distraída com a visão que não reparou que Yoko corria em direção a árvore. Ela tinha um sorriso no rosto que mostrava toda a sua ansiedade por conhecer melhor a planta. Suas mãos infantis estavam estendidas à sua frente na expectativa de tocar naquelas folhas cheias de vida que pareciam brilhar naquele fim de tarde alaranjado.
-Yoko, o que pensa que está fazendo?-perguntou Akemi correndo atrás da menina. O som de seus passos apressados quebrou um pouco o silêncio do local. Conseguiu segurar a criança apenas alguns poucos metros antes da árvore.
-Eu queria pegar uma das flores. Elas são tão bonitas.- Yoko ainda tinha cinco anos. Estava na idade em que tudo despertava a sua curiosidade. Ela tinha o costume de colecionar pequenas pedras e flores, às vezes até alguns insetos. Akemi estava tendo um cuidado redobrado com ela.
-Fique longe da árvore, porque ela pode ser perigosa.
-Porque?
-Não sei, mas sinto isso.- respondeu Akemi sendo sincera. Ainda não sabia o motivo, mas sabia que cuidado nunca era demais ainda mais em um local que estavam pela primeira vez. Aquela árvore podia não gostar muito delas que não eram moradoras da vila. - De qualquer forma está ficando tarde e é melhor procurar algum lugar que sirva uma refeição quente.
Yoko a seguiu mesmo contrariada. Sua filha era uma menina obediente, mas por vezes tão teimosa quanto ela e por isso sabia que tentaria novamente pegar uma daquelas flores.
A garota lembrava muito ela quando tinha a sua idade. Akemi lembra da primeira vez que viu a Ko-Naginata que havia sido da sua avó. A espada era muito bela e desde o primeiro momento notou que ela era diferente da arma dos homens, pois a espada parecia ser um pouco menor. Alguns anos depois ela entenderia que o tamanho aumentaria em muito a agilidade da guerreira que a empunhasse.
Sua avó ao vê-la olhando para a espada se apressou em dizer que era para ela se manter longe da Ko-Nagitana, pois poderia ser perigosa. Nesse momento ela teve duas certezas: a primeira era que a espada tinha um tipo de nome e a outra que ela empunharia aquela espada algum dia. Não demorou muito para que se aproximasse novamente da arma sem que a avó visse.
A lembrança a fez ter ainda mais certeza que Yoko se aproximaria novamente da árvore. Ficaria de olhos e ouvidos bem abertos, pois as vezes no silêncio o perigo é audível .
O povo na vila era muito hospitaleiro e as receberam com alegria, mas ela sentia que havia alguma coisa borbulhando por baixo daquela aparente calma. Ao observar as crianças que brincavam nas ruas notou que elas cantavam uma canção sobre a cerejeira. Seria um fato normal, pois a árvore exercia uma influência muito grande nos moradores, mas a partir do momento que Yoko começou a cantar a música como se a conhecesse há anos notou que algo estava fora do normal:
-A primavera gosta de cantar. Tapete rosado são melodias que só as crianças sabem escutar.
Teve certeza de que seja lá o que fosse que estivesse errado estava atingindo principalmente as garotinhas e garotinhos da vila. Akemi sabia que o mais fácil seria pegar a sua filha e ir para outro lugar seguro, todavia ela sabia que o caminho mais fácil nem sempre era o caminho da honra. Olhou para a espada que havia sido da sua avó, arma que sempre levava com ela e pensou que talvez fosse necessário a usar em uma possível luta para proteger as crianças. Iria ficar para tentar as deixar novamente em segurança. Foi tirada de seus pensamentos por novos trechos da canção:
-Flores de cerejeira se formam no girar. Enigma que os adultos não conseguem ainda desvendar. No silêncio a canção continuam a entoar para que novas flores possam então brotar.
As crianças começaram a formar uma roda ao redor dela enquanto repetiam os trechos daquela música enigmática. Por algum motivo ela se sentia paralisada naquela situação. E uma sensação de está sufocando começou a surgir à medida que a roda girava e parecia se fechar a redor dela, sempre ao som do sussurro da melodia.
-Crianças parem com isso.- disse uma senhora idosa saindo de dentro de uma das casas.- Estão a assustando.
A roda se dissipou rapidamente e cada criança correu para um lado de forma apressada Apenas Yoko ficou ao lado dela como se tentasse entender para onde tinham ido os seus novos amigos da vila.
-Obrigada.- agradeceu Akemi para a senhora e segurou firme na mão da menina. Olhou de forma desafiadora na direção da árvore como se dissesse para a planta que ela protegeria a filha a todo custo. Segurou no cabo da espada de forma firme, como que para garantir que ela ainda estava lá onde tinha que está.
*
Enquanto comia sua tigela de comida notava alguns olhares curiosos direcionados para a sua espada. Sabia que o papel da mulher havia mudado ao longo dos anos. Em séculos passados era comum ver mulheres lutando na linha de frente junto com homens ou defendendo suas casas enquanto os maridos estavam na guerra. Algumas garotas recebiam treinamento desde jovens e tinham espadas projetadas de acordo com a sua altura, às vezes as ganhavam quando eram ainda muito novas.
Mas no período atual as coisas haviam mudado um pouco, as guerras se tornaram mais escassas e com as terras já asseguradas alguns samurais viraram apenas donos de porções de terras ou cobradores de impostos para senhores com propriedades. Já as mulheres se tornaram em sua maioria apenas esposas e mães. Elas não tinham mais acesso ao treinamento militar com a mesma facilidade de antes.
Nessa nova realidade as histórias das lutas de outros séculos pareciam cada vez mais distantes. Mas vez por outra ainda se ouvia um relato sobre um samurai que realizou um grande feito heróico e salvou quem mais precisava. Essas histórias de bravuras muitas vezes viravam até mesmo canções que cantores viajantes cantavam de vila e vila, algumas vezes até aumentando um pouco os detalhes do ocorrido. Akemi entendia a curiosidade no olhar das pessoas que não deviam ver uma mulher samurai há um certo tempo.
-A senhora sabe usar essa espada?- perguntou uma menininha se aproximando de forma tímida. Ele fez a pergunta que muitos ali naquela pensão pensaram em fazer, mas não tinham coragem de se aproximar.
-Minha avó me ensinou as artes da luta quando tinha mais ou menos a sua idade, quando ela entendeu que não ia conseguir me separar da espada. – Akemi se animou e continuou falando- Ela já foi usada algumas vezes tanto por mim como por ela. A maioria das vezes para defender a vila em que moro e as proximidades, mas ela sempre está pronta para defender quem mais precisa.
Logo muitas pessoas se aproximaram e começaram a fazer mais e mais perguntas. Por um momento se esqueceu do jantar e da árvore misteriosa. A conversa durou longos minutos, mas depois de um tempo as pessoas começaram a se retirar para os seus quartos. Ficou apenas Akemi e mais algumas poucas pessoas, entre elas um garotinho que durante a conversa toda não havia dito uma palavra, mas em um ponto, quando havia ainda menos pessoas o menino fez um sinal para que ela se abaixasse. Queria sussurrar algo no seu ouvido. A moça se abaixou na altura da criança com um sorriso no rosto. Ele disse com sua voz suave:
-Será que a sua lâmina é afiada o suficiente para cortar até o que não consegue enxergar?
O sorriso de Akemi sumiu e ela teve a sensação que tinha que tomar ainda mais cuidado com aquela vila. O vento começou a soprar um pouco mais forte do lado de fora, era como se ele respondesse o olhar desafiador que a moça fez mais cedo.
*
Pensou em não dormir naquela noite, ficar de vigia. Mas o sono se mostrou um inimigo que não esperava. Geralmente ela sabia como o derrotar, mas naquele local o sono não parecia ter uma intensidade normal, acabou dormindo aos pouquinhos e antes que notasse já estava completamente adormecida.
Sonhou que estava novamente de frente para aquela árvore. O vento soprando palavras como se a desafiasse. Havia um redemoinho de nuvens se formando aos poucos. A planta parecia sofrer uma metamorfose bem na sua frente a medida que isso ocorria. Os galhos da árvore começaram a se juntar e se tornavam como braços que pareciam chamar as crianças que estavam cantarolando perto dali. Os garotos vinham correndo, mas quando estavam quase chegando raízes brotavam do chão e pareciam prender os pés deles de uma forma que não podiam nem voltar ou avançar. Era como se a árvore estivesse travando uma luta contra ela mesma e as crianças estivessem no meio disso tudo.
Puxou a sua espada e foi ao auxílio das crianças. Com um golpe preciso cortou a primeira raiz e um grito de surpresa se ouviu no ar. Era como se não achassem possível que a lâmina dela pudesse cortar.
-Essa lâmina foi forjada de uma forma especial. Um dia você vai entender.- a voz da sua avó se fez ouvir na sua mente e ela realmente agradecia por isso naquele momento.
Estava concentrada ajudando as crianças quando sentiu uma força invisível a puxando para trás, de uma forma tão forte, que deixou a sua espada cair no solo. A terra do solo começou a se mover enterrando a arma aos poucos.
Acordou do sonho no momento em que viu o cabo da sua espada ser submerso pela areia. Demorou um tempo para notar que aquilo tudo tinha sido um sonho. Olhou para o lado e Yoko não estava mais com ela. O lado da cama em que ela dormia se encontrava vazio. Isso foi o suficiente para que ela levantasse de um salto só. Notou que sua espada também tinha sumido. As portas e janelas continuavam trancadas o que aumentava o mistério sobre o que teria ocorrido enquanto ela dormia. Depois de revirar todo o lado de dentro do carro correu para o lado de fora chamando o nome da filha. Reparou que não era a única. Era possível ouvir vários pais chamando as crianças que também tinham sumido das casas. As várias vozes se misturavam de uma forma que não era possível ouvir os nomes com nitidez, mas a tristeza era bem audível.
Algo lhe dizia que a resposta para aquilo estaria naquela árvore. Foi correndo até ela, todavia ao chegar lá notou que tudo estava aparentemente normal. Sem sinal das crianças, mas de alguma forma que não soube explicar sentia que elas estavam por perto assim como a sua espada. O sonho estava ainda mais vivo na sua mente.
Começou a cavar com as próprias mãos sem saber exatamente o que queria encontrar. Depois de um tempo cavando sentiu algo parecido com o cabo da espada, mas não teve tempo de a desenterrar, pois sentiu uma mão invisível a puxando para trás e a golpeando. Na sua memória as palavras do garoto começaram a fazer sentido. Elas começaram a se repetir várias vezes na sua mente apresentando o mesmo tom infantil do menininho:
-Será que a sua lâmina é afiada o suficiente para cortar até o que não consegue enxergar?
Talvez a sua lâmina não conseguisse cortar o seu oponente invisível, mas uma vez em alerta seu corpo conseguia se desviar dos golpes. Akemi podia não ver, mas conseguia ouvir os movimentos, não o suficiente para atacar, mas o suficiente para se desviar. Depois de alguns minutos era quase como se pudesse o enxergar através dos outros sentidos. Lembrou de uma parte do seu treinamento que foi com os olhos vendados exatamente para que aprendesse a ver sem os olhos.
Fechou os olhos e seus sentidos se apuraram. O seu olfato começou a sentir o cheiro de flor de cerejeira que vinha do seu oponente, sua pele começou a sentir a onda de frio que vinha da pele do oponente e seus ouvidos conseguiram prever melhor os golpes. Antes que notasse estava atacando. Manteve o controle e se concentrou nos movimentos, mesmo que seus pensamentos estivesse somente na sua menininha. Sentiu quando sua mão atingiu em cheio a região do pescoço do seu oponente. Um suspiro de surpresa se ouviu. O tempo pareceu parar naquele momento. Até mesmo o vento tinha parado para esperar o que ia ocorrer.
No meio do silêncio começou a ouvir o som da canção. Abriu os olhos e viu sua filha e as outras crianças da vila cantarolando perto da árvore. O céu estava em uma cor rosada, assim como o lago próximo, o que indicava que aquilo devia ser um lugar paralelo. Correu até a sua filha e a abraçou entre lágrimas. Ainda estava com a menina em seus braços quando notou que havia uma bela moça presa por raízes perto dali e ainda mais afastado estava o seu oponente que naquele lugar era visível aos seus olhos.
Entendeu o porque de durante a luta sentir ondas de frio vindo na sua direção. O guerreiro que lhe encarava tinha a cara que o inverno teria se fosse uma pessoa. A palidez da neve e seus olhos apesar de escuros tinham a frieza do gelo cortante. Não sabia explicar, mas sabia que a mulher que estava presa era o oposto dele. Devia ser a primavera.
Por um momento não soube qual seria o primeiro passo. Sabia que tinha que ter cuidado, pois estava no território dele. Se ele havia a trazido até lá era porque sabia que o local lhe traria vantagem. Tentou tirar a sua filha do local em que estava, mas era como se estivesse grudada no chão.
-Devolva as crianças!-gritou Akemi muito irritada depois de mais uma tentativa de tirar a sua filha Yoko e as outras crianças de perto da árvore.
Ouviu-se uma risada gelada se espalhar pelo local.
-Nem deixou que me apresentasse. Devo dizer que lutou melhor do que esperava.
-Não tenho tempo para ouvir suas histórias. Quero apenas minha filha e as crianças da vila de volta.
-Você vai me ouvir. –um grito soou da boca dele, mas antes mesmo dele gritar Akemi já havia começado a ouvir o barulho de raízes se movendo do fundo da terra. Saltou antes que elas prendessem as suas pernas.
Um soar de palmas se fez ouvir:
-Que movimento surpreendente rápido.-disse o seu oponente a aplaudindo de forma irônica. – Mas se quiser as crianças terá que me ouvir. A história começa há um certo tempo. Minha irmã gêmea e eu nascemos dessa árvore como frutos que surgem logo depois do florescer, porém apesar de ambos temos o cheiro doce das cerejeiras minha bela irmã era a favorita tanto das crianças que a enxergavam como da árvore. As crianças fugiam de mim.
-Porque será?-perguntou Akemi devolvendo a ironia que recebeu há minutos atrás. Ela sabia que uma parte das palavras dele faziam sentido. Se ela quisesse o derrotar teria que ouvir suas palavras, pois as vezes é da boca do oponente que sai o segredo pra vencer.
-Como ia falando.- continuou ele ignorando o comentário dela- Já com ela era uma história totalmente diferente. Por gerações quando está perto da primavera as crianças começam a cantar uma melodia que ela lhes ensinou, que faz a árvore florir ainda mais bela. Mas quando chega o meu momento todas fogem de mim e da minha melodia que faz as flores murcharem. É o ciclo da vida. As flores precisam murchar para outras surgirem. Mas as crianças não gostam de quem tem que fazer isso. Então esse ano não terá canção e nem crianças.-fez uma pausa e olhou para a moça presa com um sorriso cruel- E nem flores novas. Era apenas isso que queria que soubesse antes de lhe derrotar. Sabe estou há um tempo sem conversar com outro ser.
Após falar isso ele fez surgir uma espada em sua mão que parecia ter sido trabalhada em gelo e vidro. Em um salto foi para cima de Akemi que estava de mãos vazias. A moça se afastou pois queria levar a luta o mais distante das crianças que fosse possível, mesmo sabendo que ele não iria atacar as crianças. Os golpes pareciam serem mais precisos. Estava começando a ficar cansada e foi quando lembrou que aquele mundo era um espelho do outro. Então a sua espada devia está enterrada em algum local. Segundos entre um salto e outro foram suficientes para que a lâmina gelada passasse raspando pelo seu rosto e cabelo, quase cortando-os.
Uma rasteira a fez cair de costas no chão, mas não era de desistir. Girou no chão no segundo exato para se desviar do golpe que seria certeiro no seu pescoço. A força empregada pelo seu oponente foi tanta que a espada dele ficou momentaneamente presa no chão, foi o momento que aproveitou para se recuperar e procurar a sua espada no chão. Mas no desespero parecia que ela não estava em parte alguma. Olhou na direção da filha para buscar forças e foi nesse momento que viu a cabeça da moça apontando para uma direção.
Correu até o local e encontrou sua espada, mas ainda tinha que a desenterrar e nesse meio tempo o seu oponente já havia desprendido sua espada e se preparava para atacar com ainda mais força. Desenterrava a espada com os pés, pois sabia que se fosse desenterrar com as mãos seria atingida. Quando notou que ela estava totalmente desenterrada tentou o seu golpe que seria tudo ou nada. Acertou um chute na mão do outro que fez a arma do outro cair no chão. O tempo que ele abaixou-se para pegar foi o suficiente para ela se armar com a sua.
Espada com espada iriam se encontrar com toda força no ar, mas usando toda a sua velocidade e esquecendo o cansaço, Akemi se abaixou dando um giro que mudou a direção do golpe por fim acertando seu oponente em cheio na barriga. O tempo novamente pareceu parar naquele instante. Ouviu o barulho das raízes que prendiam e amordaçavam a moça voltando para o chão e aquele cenário foi aos poucos se modificando. Seu oponente foi sumindo da sua frente como se o golpe dela tivesse o desintegrado ou como se ele estivesse desaparecendo para o outro lugar paralelo em que estavam momentos antes. Apesar do golpe ter sido extremamente profundo não havia sangue, somente algo semelhante com seiva de árvore sujou sua espada. Ouviu o som dos passos das crianças vindo na sua direção e notou que estavam novamente perto da vila real.
Antes de ir com as crianças de volta para a vila Akemi por algum motivo olhou em direção a cerejeira e a comparou a uma mãe que não se mete na briga dos filhos. Sentiu que seu oponente não tinha sido derrotado para sempre, ele ainda era parte da cerejeira assim como a irmã, mas até se recompor ele ficaria um tempo sem incomodar as crianças da vila e a irmã.