Prólogo
Epílogo
Conto
Fomos divididos em planetas.
Fomos divididos em Zonas.
A minha é a Solar.
E a mim, isso deveria bastar. E a mim, isso deveria ser suficiente. A Inteligência ainda vai salvar o mundo é o nosso mantra, pois a Inteligência é nossa mãe, é nossa casa, é nossa origem. Devemos tudo à ela.
Se hoje vivemos numa sociedade organizada, isso vem da dádiva de termos uma Inteligência que nos conhece melhor que a nós mesmos. Isso vem de um sistema perfeitamente eficiente em ler os nossos defeitos.
Mas tem uma pergunta que nunca saiu da minha cabeça.
Enquanto a Inteligência está nos observando, quem é que a observa?
Há alguém observando a Inteligência?
Há alguém vigiando a Inteligência?
Há alguém comandando a Inteligência?
E se há, o que esse alguém quer?
II Um Shorts Novo
"Não, não vejo como isso pode ser possível, senhora."
O homem me encara com a testa franzida, mas não há motivo para a preocupação. Tudo está exatamente como deveria estar. Posso ver as pessoas passando por mim, cruzando a roleta alcançando os elevadores para seus respectivos andares. Seus sorrisos amenos me informam que não há nada a temer. Seus tênis de corrida estão limpos, como sempre. Seus cabelos alinhados em rabos de cavalo ou com gel. Seus sorrisos são modestos e serenos. Todos eles me conhecem pelo nome.
É apenas mais um dia pacífico na Zona Sol. O recepcionista do Centro da Atividade Física curva a cabeça para checar alguma informação no sistema.
"Estou dizendo que frequento esse Centro há mais de dois anos." Repito, tentando tingir minha voz com paciência.
Aguardo com um sorriso, com o cuidado de deixar minha apreensão para debaixo do tapete. Para me distrair, fito seu crachá dourado. As letras caprichosas se derramam em formato garrafal para compor o seu nome. Erik.
É um dos nomes mais antigos que conheço. Ele deve ser de umas das últimas Zonas. Urano, talvez até Netuno. Ele tem sorte de estar trabalhando aqui, como recepcionista de uma das áreas mais bem frequentadas.
"Ah, aqui está." Ele diz, em tom eficiente. "Lira Pinheiro. Terceiro andar".
Retribuo seu sorriso de nervoso com um olhar apaziguador. Deve ser seu primeiro dia.
"Sabia que ia conseguir resolver".
Erik coça a cabeça e se ajeita, de trás do balcão reluzente. Tudo no espaço expira limpeza e eficiência. Posso perceber seu esforço em casar com o ambiente. O esforço está dolorosamente aparente. Torço para que ele consiga sobreviver à primeira semana.
"Vejo que a senhora trocou o "andar de exercícios de alta intensidade" para o "andar de exercícios compactos"" ele fala voltando a analisar a tela lendo alguma informação que para mim é invisível, do outro lado do balcão. Sinto o volume de pessoas passando por trás de mim e sou impelida à movimentação para ganhar as roletas, o elevador e escapar da conversa com o simpático, porém desorganizado, Erik.
"Sim, é verdade. Eu troquei." Digo, num tom simpático e distante, sem querer entrar no assunto.
Erik se curva, e me olha num tom como quem pede desculpas.
"O sistema está perguntando por que a mudança".
Meu sorriso não se desfaz.
É claro que o sistema está perguntando isso. Será que há algo que o sistema não pergunte? "Por questões profissionais" respondo, calma, trocando a bolsa de ombro. Parte do meu eficiente rabo de cavalo vaza para cima dos meus ombros, mas me recuso em ajeitar o penteado. Mantenho a minha expressão de dignidade intacta.
Erik prontamente digita algo na tela.
"Certo." Fala, em tom prático. "Desculpe o inconveniente."
Começo a me afastar, balançando a cabeça:
"Sem problemas.." Falo e então me lembro. "Ah, aproveitando. Eu gostaria de adquirir um novo shorts."
Erik se levanta e pega um shorts padrão do tamanho que já consta na minha ficha e me entrega. Então me olha com expectativa.
"Vai querer devolver o antigo?".
Olho para o pedaço de pano embrulhado dentro da minha bolsa. O primeiro impulso é de entregá-lo a Erik, mas algo me para ao tentar recolher a peça.
Não sei se quero devolvê-lo. A malha é macia e familiar, confortável. Eu poderia usar para dormir. Às vezes, em meio a tudo de novo, sinto falta de possuir algo antigo. Possuir algo familiar.
Mas o antigo e o familiar são itens subvalorizados por aqui. O antigo e o familiar são lembretes vívidos demais de que, apesar de morar por entre máquinas eficientes e engrenagens impecáveis, apesar de repetirmos tantas vezes, a inteligência ainda vai salvar o mundo, sabemos que ela não vai salvar a nós. E que assim como o antigo e o familiar, tão rudemente descartados logo se expire sua data de validade, também nós somos artigos passíveis de extinção. O antigo e o familiar de um shorts velho me lembra que tenho muito mais a ver com essa peça de vestuário rasgada do que as máquinas que gostamos de imitar.
O antigo e familiar shorts me lembra que sou humana.
É só uma pena que essa não seja a sensação que o Sistema espere de mim.
"Sabe o que é..." começo, balbuciante. "Acho que esqueci meu shorts em casa."
Incrédulo, Erik me fita, seus dedos parando por um segundo, de digitar sobre o teclado. Ele repousa os pulsos no balcão antes se dirigir a mim:
"Esqueceu seu shorts de atividade física para vir ao centro de atividade física?" fala, num tom quase indelicado.
Prestes a insistir na história falsa, hesito. Olho para a câmera e, consequentemente, para a placa.
A inteligência ainda vai salvar o mundo.
Eles estão me observando, sei que estão.
Erik também está me observando.
Isso é um teste, tem que ser um teste.
Volto a sorrir, desta vez um sorriso quase cintilante. Espero tê-los enganado.
"Ah, claro" ensaio uma olhada distraída para dentro da bolsa que levo junto ao ombro. "Aqui está."
Com pesar, tiro a peça e a entrego para Erik. Ele sorri e me entrega o shorts novo, mas quando recolho a peça nova não sinto a mesma maleabilidade conhecida e gostosa de meus shorts antigo e de repente, sinto que algo foi tirado de mim, contra a minha vontade.
É uma sensação que se repete um bocado na Zona Sol.
Mas então, não sei se posso esperar que outra Estação seja tão diferente. Falam que todos os continentes são assim. A Inteligência é um projeto global que deu certo. A Inteligência é um hino que nunca cessa de tocar. A Inteligência é uma prisão que...
Não.
A inteligência ainda vai salvar o mundo.
A inteligência ainda vai salvar o mundo.
A inteligência ainda vai salvar o mundo.
É claro que vai.
"Você ganhou cinquenta pontos" Erik me informa, ao recolher a peça antiga e lançá-la sem mais nem menos junto ao triturador de dejetos. Ele não é o único que está sorrindo. Algumas pessoas perto de nós até param para aplaudir.
Cinquenta pontos dificilmente é uma quantia significativa de bonificação. Mas suponho que nesses dias, tão próximos do Dia Anual da Revolta, qualquer notícia boa seja causa para comemoração.
Algumas pessoas dão batidinhas em meus ombros, me congratulando.
"Não esperaria nada diferente de você, Lira." Diz Erik como se me conhecesse. Baseado na quantidade de informações pessoais que ele tem de posse sobre mim, eu diria que somos mais que meros conhecidos. Ao menos, a ele sou mais que um rosto sem identificação. Ele me conhece. Conhece meu endereço, minha função empregatícia, meus rendimentos, até
mesmo meus exames de saúde. Então talvez eu deva me surpreender com o tom de familiaridade com que Erik me trata.
Ainda assim, me surpreendo.
Mais que isso, me incomodo.
Sou um espírito rebelde que precisa se conformar. Um peixe que quer nadar sozinho, mas que morreria sem um cardume.
Não sou nada sem a Inteligência.
Não seria nada.
Então disfarço como posso e sorrio, tentando prevenir minha própria aniquilação. A Inteligência tem olhos em todos os lugares. Ela pode ler insubordinação a quilômetros. E quando Erik me fita, eu me pergunto o que ele está vendo.
Alheio ao meu conflito interno, Erik prossegue:
"Aqui na sua ficha diz que você possui um comportamento estelar. Digna mesmo de lecionar e habitar a Zona Sol". Retribuo o sorriso por mera obrigação. Às vezes penso que meus lábios vão se desfazer de tanto que forço o movimento.
"Imagine, é uma honra" digo em voz baixa. "A inteligência ainda vai salvar o mundo". Erik sorri e agora me afasto, ganhando as roletas.
"Ela certamente vai", diz jovial, incapaz de acreditar na própria sorte.
Algo na sua felicidade alucinada me causa um gosto amargo na boca e me viro para que a câmera não capture o desagrado em minha expressão facial.
Caminho até o elevador sentindo correntes se amarrarem, invisíveis, sob o meu pé. Lembro instintivamente de um quadro pendurado do lado de fora do Museu da Zona Sol.
Foi uma das primeiras obras a serem banidas com a instauração do Sistema Solar. Banida pela sua ambiguidade. Algo que nós, os moradores, também não somos autorizados a ter.
Monalisa parece sorrir ainda para mim. Seus olhos perseguem-me aonde quer que eu vá. Perseguem-me até onde as câmeras não vão. Perseguem-me, porque são um espelho.
Sou Monalisa.
Sempre sorrindo, mas será que feliz?
Calculo quanto tempo tenho até a Inteligência descobrir isso. Quanto tempo para saber que escondi, sob o meu porão, outras Monalisas. Dezenas de Monalisas esperando por libertação.
Estamos chegando, Inteligência.