A Fuga

Sci-Fi
Agosto de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Civilizações

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A Fuga
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Não sei precisamente quando as coisas se tornaram tão difíceis. Éramos espectadores inertes, acomodados. Vivíamos o dia a dia, como um roteiro ensaiado e enfadonho, mas toleramos.
As redes sociais eram uma resposta econômica para amizade e outras distrações. Tudo estava ao alcance de um toque, menos o outro.
Prometemos que não largaríamos a mão de ninguém, mas largamos.
Temos, por hábito, deixar as coisas para a última hora. Acho que é cultural sofrer com os prazos apertados. Não verificávamos as vacinas. Não atualizávamos passaportes. Estourávamos os cartões de crédito nas Black Friday. A caderneta de poupança, constantemente morria de fome.
Quando o lança granadas atingiu um grupo de estudantes em protesto, os jornalistas que acompanhavam o movimento ao vivo fizeram um minuto de silêncio. Todos ficaram estarrecidos. Tanto os profissionais, quanto a população que assistia ao noticiário no conforto do lar, ficou muda.
Aquilo não podia estar  realmente acontecendo. Éramos o povo do futebol, afetuosos por natureza. Bebedores de cachaça e cerveja aos domingos e frequentadores orgulhosos de nossas praias paradisíacas. Aquilo não podia ser verdade, não é mesmo? Mas era.
Pais, mães, esposas, namorados, amigos..., acompanhavam incrédulos a horda de estudantes e militantes infiltrados, correrem feito baratas fugindo do inseticida. Acuados, esconderam-se atrás de pilastras, em padarias e nas lojas de conveniência que, por sorte ainda estavam abertas, mas não por muito tempo.
A truculência da polícia tinha aumentado vertiginosamente nos últimos anos, mas não tinha atingido nenhum conhecido meu. Não me sentia afetada diretamente. Não era comigo.
As linhas telefônicas ficaram congestionadas e ninguém se atreveu a pedir ajuda a polícia. Afinal, eles eram os algozes a mando de alguém, ou de alguns. Já não sabíamos mais a quem culpar e nem pensávamos nisso naquele momento. Queríamos apenas saber como resgatar amigos, filhos e parentes. Saber se estavam bem, mas sabíamos que não. Ninguém estava.
Surgidos, não sei de onde, tanques tomaram as ruas, numa ordem silenciosa para que ninguém ousasse interferir no que estava acontecendo e no que estava por vir. Os mais exaltados foram abatidos sumariamente, sem qualquer alerta ou contenção preventiva. As cadeias já estavam lotadas há muito tempo, mas ninguém se importava com isso. Se eram inocentes ou não, se suas condições eram indignas ou não, cabia a justiça responder a um órgão qualquer da controladoria, dos direitos humanos ou da ONU. Quem se importava? Apenas os jovens que estavam lá pleiteando uma lista enorme de direitos suprimidos.  Não importou o fato de serem ingênuos, corajosos, impetuosos, ou baderneiros. Todos foram abatidos com tiros de verdade e não pelas balas de borracha que também feriam e cegavam quando miradas na cara. Sprays de pimenta já eram usados como se fossem aromatizantes, mas as notícias de abusos de poder eram tão recorrentes, que caíram no senso comum. O dia seguinte traria novas e mais toleráveis aberrações. Não nos importávamos.
Um flashback tímido surgiu em minha mente, com um dedo acusador em riste contra  minha testa dizendo: "Você permitiu isso!" Sacudi a cabeça tentando dissipar o que me estapeava. Não tinha como negar. Fomos todos culpados.
Arautos do Facebook, compartilhávamos freneticamente os abusos de poder e o desrespeito a frágil Constituição que devia nos proteger como nação democrática. Rimos do inimigo. O subestimamos.
Lentamente me sentei no sofá. Mal tinha me dado conta do tempo que estava absorta com a bizarrice frente aos meus olhos. Estava em negação.
Sob a imagem principal da TV, corriam mensagens sobre o fechamento de aeroportos e outras possíveis vias de fuga, onde uma legião de desesperados se avolumava entre simples mochilas, valises de nylon e poucas malas de grife. Enfim, fomos encurralados e igualados. excetuando os mandantes no alto clero  político no poder. Não havia o que fazer.
O controle remoto em minhas mãos adquiriu vida, zapeando entre um canal e outro, compartilhando telas, onde vi monomotores sendo alvejados no ar. Acabou.
Aos poucos, um a um, os canais foram saindo do ar. Estávamos sob ataque terrorista doméstico. Se é que isso tinha um nome.
Corri para o banheiro. A bile me subiu a garganta queimando no trajeto. Tive medo.
Certamente alguém bateria a minha porta e não saberia como reagir. Cada um estaria tentando salvar a própria pele e eu não tinha ideia a quem procurar ou pedir ajuda em caso de real necessidade. Os amigos tinham esvaído aos poucos com suas convicções idiotas e irredutíveis. Achava infantilidade brigar por algo que, quatro anos depois, iria mudar. Sempre mudava. Contudo, pensando bem, nunca mudava para melhor. Agora vejo um filme de ação que não foi aos cinemas. A realidade vinha pela esquina e eu nem carro tinha. Estava ficando com dor de cabeça. Melhor desconectar.

Apertei um botão no display de minha cadeira e o dispositivo, similar a um cartão de memória, foi retirado de minha nuca. Uma USB implantada a meu pedido há muito, muito tempo atrás. Para ser mais precisa, algumas semanas antes de partirmos na Intrepidus.

Parecia auto sabotagem me infligir novamente aquelas sensações, mas eu, mais que ninguém, precisava me lembrar do motivo de estarmos ali, a quilômetros de meu planeta natal. Tudo havia ficado para trás quando conseguimos fugir. Parecíamos fogos de artifício lançados ao ar, rumo ao desconhecido. Lindo, e assustador.

Ainda me sentia culpada. Poderia tê-los prevenido, ou os impedido. Os rumores eram mais que rumores, mas não atentei aos sinais. Éramos uma republiqueta da América do Sul e achava que ninguém se importava com o que nos afligia. Ninguém liberava verba para nossos estudos, por mais inovadores que fossem; ainda que eu fosse a coordenadora prodígio do departamento de Física da Universidade Federal; ainda que eu tivesse revolucionado a Escala de Kardashev e sua definição dos três níveis de civilizações, com base na ordem de magnitude de poder. Era uma nerd recém formada, Bacharel em Física e ousada o suficiente para encarar os veteranos no concurso mundial de jovens talentos. Não tinha sido a primeira, Carl Seagan já tinha contestado alguns pontos e só segui meu mentor. Da física para a astronomia; do doutorado para o PhD, foi um pulo. Investi todo o valor de alguns prêmios em dinheiro para sustentar o avanço das minhas pesquisas. Parecia que só eu e meus alunos acreditávamos que poderíamos revolucionar a ciência ao descobrir uma forma ímpar de energia alternativa, limpa e auto sustentável vinda das estrelas.

O planeta passava por uma grave crise energética e combustíveis fósseis ainda eram a moeda de troca que estava dizimando nações sob a hostil beligerância do capitalismo selvagem. Fazendas eólicas foram atribuídas aos hippies de terno e gravata, com sortilégios tão escusos quanto o das grandes corporações, e eu apenas queria fazer minha parte.

Estava em casa, em estado de choque, por reconhecer alguns de meus alunos esvaindo em sangue, ao vivo, no acesso a esplanada dos ministérios. Um furgão blindado estacionou em frente ao meu portão, enquanto homens de preto, com trajes similares ao RoboCop (José Padilha/2014), arrombavam a porta dos fundos. Não havia como resistir àquilo. Fui algemada e colocada no banco traseiro daquele enorme trambolho cinza, tal como o céu cheio de fuligem e nuvens carregadas de tristeza. Haviam outros trancafiados comigo. Homens e mulheres com semblantes assustados e rostos machucados por algum enfrentamento. Em certo momento o motor parou. Tínhamos percorrido por quase duas horas um caminho tortuoso, que não dava para decorar e a expectativa da morte contraiu meu estômago. Um daqueles homens entrou e pôs capuzes em nossas cabeças. “Para quê?” – me perguntei - Não havia como fugir!

Atados, uns aos outros, seguimos arrastados para uma espécie de galpão – o capuz era um tanto fino. Um enorme elevador conduziu a todos para vários níveis abaixo da terra. Tinha claustrofobia, mas estranhamente o medo suprimiu o desconforto. Não estávamos resistindo, mas saímos do elevador novamente arrastados com brutalidade desnecessária para um gigantesco salão, o qual só pude ter a real dimensão depois que retiraram nossas algemas e capuzes. Nos depositaram individualmente em células de vidro com um acolchoado sobre uma cama de cimento e um sanitário por trás de uma paredinha. Era uma cela um pouco mais bem elaborada, mas uma cela.  Aquilo devia ter sido projetado há um tempo considerável. As engenhocas que pude ver de meu cubículo eram de fazer babar qualquer cientista maluco.

Rumores se filtravam pelas paredes e os anos que se seguiram foram marcados como tatuagem no antebraço com nossas próprias unhas, em sinal de uma resistência silenciosa e pueril. Depois, com laser em nossos tornozelos. 

O Bunker nos protegeu do inferno de fora. A terceira guerra mundial havia deflagrado e não tínhamos tomado conhecimento. Nossos semelhantes foram abatidos como caça, mas não acabou por aí. Tudo deu errado para todos. A arrogância dos poderosos, das cinco famílias que dominavam o mundo, desde a segunda guerra, não teve o êxito esperado. Todos perderam, e as consequências foram inomináveis. O planeta estava contaminado, morrendo. Não podiam alimentar ou abrigar a todos. Fomos antecipadamente “resgatados”, como uma casta privilegiada de intelectuais, assim como em vários cantos do mundo. Cada grupo com uma incumbência pré definida, que consistia na salvação de uma parcela específica da humanidade. Entretanto, não éramos tratados como humanos. Aliás, fomos perdendo, ano a ano e pouco a pouco, o que nos definia como tal. 

As descobertas feitas na área tecnológica foram mais que surpreendentes, pois não faltavam os recursos que sempre nos foram negados. O dinheiro de nossos impostos, enfim estava sendo aplicado, mas apenas para atender aos abastados, aos relevantes, aos notórios em saber e seus familiares até a terceira geração. Mesmo idosos, inválidos, ou com algum grau de deficiência, ainda que pertencessem à elite mencionada, foram deixados para trás. Eu não tinha mais ninguém. Se eu soubesse, se tivesse a informação do que estava para acontecer, teria adotado o máximo possível de alguns que me eram caros. Um sentimento de culpa me amargava a alma, mas a vigilância era implacável e o suicídio impraticável. Não se preocupavam com o nosso bem estar, mas o bem estar que poderíamos proporcionar a eles e ao batalhão de serviçais que os mantinha acolhidos e seguros. Eu tinha que ter um propósito, já que era obrigada a permanecer viva.

Mês a mês, o nível de tolerância do ar era testado e as notícias só pioravam. Ainda que Fermi nunca tenha feito tal afirmação, seu “paradoxo” sobre a viabilidade de viagens interestelares, vinha sendo mencionado com certa frequência e eu já intuía no que poderia advir disso. 

Aos poucos, o arrocho a que nos submetiam foi sendo afrouxado. Comíamos melhor, nos davam suplementos, dormíamos melhor e chegamos até a comemorar alguns aniversários. Estávamos envelhecendo e não haviam mais nascimentos. Pelo menos, não que tivéssemos conhecimento. Do lado de fora, ninguém havia sobrado para nos substituir ou perpetuar a espécie humana. Conversávamos pouco entre nós, mas as novidades que chegavam nos dava certa esperança. Não só nós, mas inúmeros cientistas exilados ao redor do planeta, também faziam avanços inestimáveis. Chegou a hora de começarmos a trocar figurinhas.

Sabíamos que não estávamos sós no universo. Ao longo dos anos, recebemos algumas visitas, devidamente aparamentadas e que passavam por um rigoroso protocolo de descontaminação. Várias vezes ouvi conversas sobre a Área de Teste e Treinamento no condado de Lincoln, na parte sul de Nevada - a famosa Área 51. O incidente em Roswell também foi mencionado em algumas conversas mais descontraídas.  Aos poucos, nossos visitantes não faziam mais questão de esconder que eram, ou melhor, foram da CIA e que o desenvolvimento e teste de aeronaves experimentais e sistemas de armas faria parte, em algum momento, de nossas futuras atribuições. Ao menos para nós, tinha ficado claro nossa função ali. Estavam desenvolvendo os modelos de Bunker desde a década de cinquenta e alternativas de exploração extraterrestre, ou nossa eventual saída do planeta, mas talvez não resistíssemos até lá.

Levei anos, até saber que extensos túneis nos conectavam por debaixo da terra para outros Bunkers. Os mais comportados, e que apresentavam resultados relevantes, chegavam a visitar alguns. Fiquei abismada com a ingenuidade que nos cegou por anos. Inúmeras teorias da conspiração chegaram aos meus ouvidos e instigaram meu imaginário, mas nada que se comparasse ao que vi, ouvi, provei e testei. Se houvesse um Raio-X que registrasse o que havia por debaixo da terra, poderia tentar definir o intrínseco conglomerado de silos: com víveres, sementes, plantações, acervo literário, musical, artístico, inclusive com obras inéditas sendo produzidas. Todos estavam lá, mas alguns estavam falecendo e para isso eu não tinha as respostas. Por enquanto.

Estava mais velha, afinal trinta anos haviam se passado. Meus companheiros agora eram minha família e até os guardas, de certa forma, tinham se tornado parte dela. No entanto, estávamos mais dispostos do que nunca, e isso era estranhamente fascinante. Senti desejo, algo que havia suprimido e substituído por fórmulas matemáticas que, quando bem sucedidas, assemelhavam-se a um orgasmo, ao menos para mim. Contudo, não fui a única a ter a mesma sensação crescente e quase pecaminosa. Cabe acrescentar que, além do Papa e de alguns líderes religiosos mais influentes e pacíficos do mundo, a religião foi extirpada de nosso convívio. Melhor assim. Depois de tudo, quero crer que aprendemos a gerenciar riscos e conter danos. Há poucos anos que nossas celas não tinham mais trancas – “A resiliência e a conformidade foram atualizadas com sucesso”. Talvez, por isso, gemidos e sussurros perturbavam as noites insones dos mais pudicos. 

Eu não sabia que ainda podíamos engravidar. Talvez pelos suplementos que nos davam, pela comida balanceada, pelo ar puro... Definitivamente essa não era minha área, mas podíamos. Cientistas, camareiras,... Não importava a intelectualidade, a casta ou a idade avançada. Passado o constrangimento inicial, as vidas que começaram a despontar nas barrigas que cresciam eram motivo de alegria e renovo ao nosso confinamento. Contudo, quanto mais nos aproximávamos dos nove meses, mais o desespero de talvez não poder vê-los crescer, nos apavorava. Formamos uma espécie de clube, pois engravidamos quase no mesmo período. Nos ensinaram a tricotar e a fazer crochê, como entretenimento. Fomos monitoradas, assistidas e acompanhadas a cada semana. Era exaustivo, mas, devido às circunstâncias, compreendido. Tinha uma vaga ideia de quem era o pai, na verdade, não me importava muito com isso. Certamente havia maneiras mil de identificá-lo com tantos equipamentos e mentes brilhantes naquele lugar. Recursos não faltavam e assim, aceitamos, passivamente, quando nossos bebês foram levados para exames laboratoriais e de DNA, mas eles nunca mais voltaram. 

Não cheguei a conhecê-lo. Não sabia se tinha sido menino ou menina. Nenhuma de nós chegou a saber. Nos deram ansiolíticos. Psicólogos nos acompanharam e algumas foram trancadas em suas celas, por tempo indeterminado. Fui uma delas. Recusei-me a trabalhar; fiz greve de fome; sabotei pesquisas. A dor era insuportável. Infinitamente maior que qualquer dor que eu já houvesse sentido. Sequer nos deixaram os enxovais que tecemos com tanto carinho. Só um vazio enorme. A esperança se foi e não consegui me recuperar. Nunca mais soube das outras e, por muito tempo, não soube mais de mim.

Um dia fui despertada. Estava numa enorme sala branca, em uma espécie de berço com uma cúpula de vidro sobre mim. Parecia uma incubadora individual, como tantas outras dispostas a minha direita e a minha esquerda. Tentei levantar minha cabeça para ver se podia enxergar algo a mais, mas não sentia meus braços e pernas, não exatamente. Um alarme soou de onde eu estava e um casal vestido com roupas imaculadamente brancas se postou nas laterais. Tinham placas com leds em suas cabeças, mas achei que fosse algum tipo de comunicador. Apertaram um botão no painel abaixo dos meus pés e a cúpula se abriu. Meus sinais vitais foram checados, ajudaram-me a sentar e a sair dali. Enquanto era amparada, perguntei:

- Há quanto tempo estou aqui?

- Vinte anos.

As vozes soaram metalizadas, mas atribui ao meu torpor. Estava fraca.

- Não pode ser. Isso é muito tempo. Eu não sobreviveria tanto tempo assim. Poderiam me dar um espelho?

Enquanto o homem se afastava, percebi que a placa em sua cabeça se estendia por toda a parte occipital. Passei a mão pela minha e senti algo gelado. Virei a moça com uma força que estava longe de sentir e, tanto a cabeça dela quanto uma parte do meu antebraço, também tinham dispositivos similares.

- O quê fizeram comigo! Onde está meu bebê? – gritei. 

Poderia ficar mil anos dentro daquela bolha esquisita, mas jamais esqueceria da vida que cresceu nove meses dentro de mim. Eu o ouvi chorar!

O rapaz se aproximou rapidamente e injetou uma substância em meu braço, o que ainda tinha carne. Parecia uma pequena pistola, mas não se tratava de uma injeção com um “sossega leão”, mas um ativador de neuroenzimas. As sinapses eram avassaladoras. Vinte anos introjetados em segundos me atualizaram sobre os últimos vinte anos não vividos. Meu bebê estava no pacote de informações, mas eu não sentia a dor, a angústia ou a raiva que deveria sentir. Fomos modificados. 

As pesquisas tinha avançado e tomado forma, corpo e substância. Tudo havia sido engendrado por inúmeras outras mentes brilhantes, assim como eu também costumava ser identificada. Fomos separados em pacotinhos, para depois unirem nossos subprodutos, como uma enorme caixa de Playmobil costumava ser. Nossa comida, bebida, roupas tecnológicas, o ar que respirávamos, o confinamento em células, nossas criações..., Tudo fez parte de uma enorme adaptação para o que estava prestes a vir. Sairíamos do planeta.

Possibilidades haviam sido tratadas com zelo todo especial, e eu tinha feito a maior parte do trabalho. Usei a Equação de Drake. Na época, apenas um argumento probabilístico usado para estimar o número de civilizações extraterrestres ativas em nossa galáxia, a Via Láctea. Cheguei ao ponto de ter chances possíveis de estabelecer comunicação. Consegui, mas ainda não tínhamos desenvolvido tecnologia suficiente para explorar o além. Não a vinte anos atrás.

Agora tudo fazia sentido. Creio que o choque sináptico foi uma espécie de tributo ao empenho e efetividade dedicados para o sucesso da missão que estava prestes a ser iniciada. Os bebês fizeram parte do processo. Um sortilégio para a produção de cobaias humanas para a adaptação aos corpos otimizados. Aparentemente, morreram no processo, mas os resultados eram visíveis nas demais incubadoras. Pernas, braços, colunas, troncos inteiros, caixas cranianas, olhos... Todos tinham uma parte biônica específica para o desempenho a que foram destinados na Intrepdus.

O capitão Ellias Synclair, seria o comandante da frota de 751 naves que partiriam da Terra em poucos meses e eu fui cronometricamente despertada, pois seria fundamental na missão.

Havia um resquício de sentimentos em mim. Flashes que me atormentavam durante as madrugadas. Um apertar de botão, instalado no painel do meu braço esquerdo, poderia injetar facilmente uma substância que anulasse tais inconvenientes. Todavia, não sei se por um erro técnico, por uma suposta expressão da tal misericórdia divina, ou por castigo, não funcionava. Queria ter amamentado. Queria tê-lo segurado só um pouquinho, mas agora meus braços poderiam causar repulsa a um jovem de vinte anos. Sou apenas parte humana, uma androide que mal sabe se partes internas também foram substituídas. Tinha o privilégio de transitar pelos inúmeros setores e áreas mais restritas, e numa dessas, encontrei alguns dos meus antigos companheiros. Também modificados, contentaram-se com o novo propósito de fazer parte da nova era. Não sei bem se tinham se agarrado a uma nova perspectiva para suas vidas, ou se foram quimicamente condicionados a isso, o fato é que não me negaram o pedido. 

Não sabia bem o que procurar, mas durante o pouco tempo que me permitiram o acesso aos arquivos, encontrei meu nome facilmente disponível na listagem dos cientistas dispostos em um painel por ordem alfabética. Tudo estava bem desenvolvido e dispositivos que ainda não haviam sido criados, quando fui apagada, agora estavam ali para facilitar minha busca. Um nano chip continha minhas informações desde que havia me formado em física. Interessante. Uma garota cheia de espinhas e óculos de aros grossos já fazia parte do esquema multibilionário de um futuro insólito. Tudo estava ali, nos mínimos detalhes, menos o que eu queria saber. Parecia que já sabiam que eu poderia fuçar algo sobre meu bebê e o destino que tinham dado a criança. A menos um túmulo, ou cinzas deveria ter restado dele, mas não havia nenhum registro. Agradeci e voltei para meu posto. Não poderia demonstrar frustração. Éramos vigiados 24/7, exceto quando desligaram as câmeras para me dar suporte. No fundo, acho que todos tínhamos um resquício de humanidade, ou não haveria o que perpetuar.

Partiríamos à hora zero da semana seguinte. Um frenesi controlado pairava no ar. As equipes seriam formadas por dois representantes de cada grupo de cientistas e suportes técnicos. Medicina, engenharia, nutrição, enfermagem, direito, física, química, biologia,... Todos estariam representados em cada nave, inclusive os das artes cênicas, música e demais segmentos. Outra forma de gerenciamento de riscos e controle de danos. Seriam 751 naves, mas nada garantia que todas encontrariam seu destino promissor. Como um último pedido antes de nossa partida, solicitei que fosse implantado um dispositivo em minha nuca, de onde eu poderia acessar minhas memórias. Não foi negado.

Partimos como fogos de artifício. Da escotilha blindada, pude ver partes da nave sendo deixadas para trás, como um último legado ao lixo que acabou com o planeta. Uma tristeza melancólica surpreendeu meus sensores. Queria que o lixo humano, que éramos obrigados a carregar, queimasse na explosão quando atingimos a velocidade de 28.440 km/h para o empuxo. Estava na Intrepidus I e minha cadeira ficava ao lado do super comandante, o líder supremo de todos. Acessei minhas memórias e um pequeno sorriso poderia ser visto em meu rosto caso alguém estivesse prestando atenção. Imaginei que eu era a tenente Uhura na Enterprise (de Star Trek – USA/2001), e o cara de 120 anos ao meu lado, conservadíssimo numa embalagem de quarentão, seria o comandante James Tibérius Kirk, mas era o almirante Ellias Synclair. Eu também não era de se jogar fora. Fui recauchutada para suportar os anos que passaram e os que estavam por vir. Synclair foi um dos que vieram com a equipe da CIA, anos atrás, para se inteirar de todas as fases da pesquisa, e acabou ficando mais tempo que o necessário. Lembro que tínhamos estreitado nossa relação, mas é só uma vaga lembrança.

Atingimos a velocidade de dobra e logo entramos num buraco de minhoca. Nossas expectativas eram imensas. Tão logo encontrássemos o outro planeta com vida inteligente, poderíamos enfim ter a tão sonhada liberdade. Contudo, não sabíamos se seríamos bem vindos. Os recebemos em nosso planetinha, mas a recíproca seria a mesma? Sim, um pouco antes de sair do ar, foi-nos revelado que eles estiveram entre nós, antes e depois de Cristo, com breves interlúdios entre as duas primeiras guerras, na revolução industrial e durante a bolha de 2008. Nunca absorvemos seus conselhos, mas guardamos, ou melhor, escondemos sua tecnologia para proveito dos poucos que estavam fazendo agora o caminho contrário. Esperávamos ser bem recebidos.

Infelizmente, nem todos conseguiram sair do buraco de minhoca. Estávamos agora numa galáxia desconhecida e os instrumentos não revelavam muita coisa. Tínhamos que hibernar, ou os suprimentos não chegariam junto conosco ao agora improvável destino. O painel marcava 3.187, algo inimaginável para uma garota do subúrbio do Rio de Janeiro, que passou pelos anos 90, e cujos alunos gostavam de Pop coreano. De minha cadeira, lembrei seus últimos momentos de meu dispositivo. Jamais os esqueceria, bem como de meu filho. 

De repente a nave começou a oscilar. Todos os dispositivos de hibernação foram acionados para um despertar coletivo. A equipe entorpecida chegava aos seus postos para colocar o protocolo de emergência em ação. Estávamos sendo sugados para a órbita de um planeta semelhante a Terra, e a força gravitacional era tanta que podia nos desintegrar. O almirante mandou desligar, os motores evidenciando que sería inútil resistir. Os demais tripulantes das naves restantes, passavam por angústia semelhante e nossa comunicação foi cortada. Seria a hora da verdade. Foi um longo caminho até ali, mas nada nos havia preparado para o encontro final.

Ellias me olhava com um ar de despedida e emitiu uma mensagem do tipo “Foi bom tê-los conhecido”, mas eu não acreditava que seria nosso fim. 

Aterrissamos tão suavemente, que parecia que um colchão de nuvens havia amortecido nossa descida. Todas as 538 naves pousaram sem qualquer avaria. Antes de nos aventurarmos para o exterior, fizemos um minuto de silêncio por aqueles que não conseguiram e ativamos nosso dispositivo para sair. Primeiro Synclair, depois eu e em seguida o restante da torre de comando. Não arriscaríamos a vida dos demais. Ainda tínhamos combustível para bater em retirada, ou morrer tentando. 

Os demais comandantes se concentraram com seus respectivos staffs logo abaixo da prancha de descida. Ao longe, semelhantes a nós, uma versão mais jovem de humanos, nos aguardavam a uma distância cautelar. Caso fossem realmente mais evoluídos, já deveriam conhecer nossa real natureza humana. Um deles se aproximou vagarosamente em nossa direção. Parecia conhecer qual nave estava no comando e, com surpresa, o ouvi dizer, em português, “Bem vindos. Estávamos muito preocupados com a demora e lamentamos a grande perda que tivemos”.

- Como assim, tivemos? – perguntei olhando atônita para Synclair.

- Meu filho! Até que enfim!

Meus olhos não estavam preparados para aquilo e meus ouvidos também não.

- Estamos todos aqui e muito bem. A expedição foi um sucesso, mas não conseguimos nos comunicar, pois uma chuva de meteoros atingiu nossos dispositivos externos. Temos muito a desenvolver pai. A Terra continua a mesma. Teve dois mil anos para se refazer, e se comportou muitíssimo bem.

- Venha filho. Quero, enfim, apresentá-lo à sua mãe.

- Adam, essa é a doutora em física quântica da qual lhe falei. Vocês têm muito a conversar.


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